12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

www.nead.unama.brA carroça a<strong>de</strong>rnara, com <strong>um</strong>a das rodas meio fora do eixo, e os burros,presos ao correame e aos varais abatidos, resfolegavam largamente, comestremeções espaçados <strong>de</strong> toda a courama.O pior é que o próprio carroceiro, cuspido para o chão, raspara a poeira e seestatelara ao lado, a verter sangue da cabeça, as mãos meio enclavinhadas, o peitoa arquejar sob a camisa aberta.Magotes <strong>de</strong> curiosos iam e vinham enquanto dois homens <strong>de</strong> maior iniciativatratavam <strong>de</strong> recolher a vítima a <strong>um</strong>a casa próxima e <strong>de</strong> levantar os animais.Válidos, prestantes bons homens! Surgiram <strong>de</strong> repente da massa amorfa,como os que sabem querer e mandar. E eu era da massa amorfa, imprestáveldistraída, hesitante. Ó céu, cada dia me reservas <strong>um</strong>a h<strong>um</strong>ilhação!Depois, que, vinda a polícia e o carro da assistência, o bon<strong>de</strong> pô<strong>de</strong> continuara viagem, os passageiros consternados ainda pormenorizavam o ocorrido,explicavam o <strong>de</strong>sastre, discutiam as culpas. Quanto a mim, conservava-me quieto,com a visão pasmada daquele homem caído no chão, a <strong>de</strong>rramar sangue na poeira,e do triste do motorista que parecia fulminado <strong>de</strong> estupor, na balorda prostração doanimal tocado <strong>de</strong> raio.Nicolau catucou-me <strong>de</strong> repente no braço. Voltei-me para ele como quem<strong>de</strong>spertava.— "Mas!... Quer que lhe diga?" (recomeçou) "não estou <strong>de</strong> acordo com osenhor."E tinha <strong>um</strong> arzinho entre provocador e mofento.— "Comigo?! Em que?!..."— "Nesse negócio <strong>de</strong> reticências. A mim me parecem indispensáveis. Aquestão está naquilo que se preten<strong>de</strong> dizer ou sugerir."E por aí foi, a traçar com o indicador o <strong>de</strong>senho dos arg<strong>um</strong>entos. Dei-lhesempre razão até o termo do discurso e da linha. "Sim. Claro. Sim! Pois não. Sim,sim!"Afinal, disse <strong>um</strong> a<strong>de</strong>us veloz a esse espírito gentil e corri a <strong>um</strong> café, on<strong>de</strong> fuitomar a minha xícara em silêncio e em penitência, e reatar os fios inacabáveis do meuperene diálogo comigo mesmo — com o único indivíduo que não se aborrece quandoo contrario, com o único indivíduo que me aborrece quando o não quero contrariar.RUÍDOS E RUMORESAs almas têm <strong>um</strong>as irradiações pouco observadas — sem nada <strong>de</strong> com<strong>um</strong>com a transmissão <strong>de</strong> pensamento, o magnetismo e análogas complicações etéreas,ódicas e místicas.Não há <strong>um</strong>a ciência (e ainda bem, arre!), mas há <strong>um</strong>a arte, <strong>um</strong>a pequenaarte sutil sobre a caça das irradiações da personalida<strong>de</strong>, através dos r<strong>um</strong>ores e dasvozes.Tenho uns vizinhos esquisitos, <strong>um</strong> casal velho que vive fechado em casa eraramente se <strong>de</strong>ixa ver. Trabalhando ou lendo no meu gabinete, ouço vozes,passos, tosses, assoa<strong>de</strong>las arrastamentos <strong>de</strong> móveis, bater <strong>de</strong> pregos, — tudoespaçado e abafado, passando através das pare<strong>de</strong>s como vagas mensagens <strong>de</strong> <strong>um</strong>mundo sigiloso.50

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!