www.nead.unama.brpeixe virá, nem <strong>de</strong> que espécie há <strong>de</strong> ser caso venha; não sabe nada. Espera. É <strong>de</strong><strong>um</strong>a imparcialida<strong>de</strong> absoluta."— "Em todo caso atalhei, sabe que o rio é piscoso. E a imparcialida<strong>de</strong>, aí,quer dizer simplesmente que qualquer <strong>um</strong> serve."— "Sim. Mas o peixe, se não pegasse no anzol, seria imortal? Não teria <strong>de</strong>morrer logo adiante?"— "Dizem que eles têm o sestro <strong>de</strong> viver muito; até duzentos anos,conforme.,'— "E você acredita isso? Quem é que contou os aniversários do peixe? E<strong>de</strong>pois, olhe aqui, e <strong>de</strong>pois que vem a ser <strong>um</strong> século ou dois diante da imensida<strong>de</strong>do tempo."— "Alto lá, nós não vivemos a imensida<strong>de</strong> do tempo, Barbosa. Com esseartifício metafísico, se tem justificado muita pose <strong>de</strong> espíritos in<strong>um</strong>anos e muitamonstruosida<strong>de</strong> material. Nós vivemos <strong>um</strong> minuto! Esse minuto é que <strong>de</strong>ve ser anossa medida. Tudo que o exce<strong>de</strong> é imensurável. E, sendo imensurável, é sagrado."— "Ahn..."— "Mas, falando sério, você não precisa ter esse trabalho <strong>de</strong> justificar o seugosto. Nada <strong>de</strong> repreensível na pesca, nem mesmo na caça. É lei do mundo que asespécies <strong>um</strong>as às outras se exterminem, por necessida<strong>de</strong>, por esporte, por prazer,por passar o tempo, é lei do homem que combata as outras espécies todas e aprópria. Que lhe havemos <strong>de</strong> fazer? Observo-lhe, simplesmente, que a sua filosofiapiscatória po<strong>de</strong>ria justificar também <strong>um</strong>a larga parte da moral corrente nas relaçõesh<strong>um</strong>anas. Lança-se o anzol, fica-se à espera. Conheci <strong>um</strong> mercador que, fisgando ealeijando o freguês, não se <strong>de</strong>sculpava por outra forma: Veio porque quis! Nãoobrigo ninguém a comprar."— "Mas está muito direito" (replicou Barbosa). "Ele tinha razão. Eu, dono <strong>de</strong><strong>um</strong> negócio, daria o preço que bem enten<strong>de</strong>sse às minhas coisas."— "Você não o faria, Barbosa."— "Faria, sim, e você também."— "Pois, se eu o fizesse, seria <strong>um</strong> espertalhão como qualquer outro."Barbosa amuou, resmungou, e creio que só a sua sensatez e bonomia <strong>de</strong>animal forte, o impediu <strong>de</strong> levar adiante a contenda. Separamo-nos sem nosencarar. Fiquei penalizado com esse primeiro fio partido na teia <strong>de</strong> seda quevínhamos tecendo há tantos anos. Por <strong>um</strong> fio roto vai-se às vezes o tecido inteiro.Todo o mal está em se falar <strong>de</strong>mais.O que vale <strong>de</strong>veras, <strong>de</strong>veras, nos indivíduos, não são as idéias, que mudam,que ondulam, que o menor sopro <strong>de</strong> interesse ou paixão modifica, é o fundoin<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> bonda<strong>de</strong> que neles exista. E esse fundo mesmo, e preciso que não sepretenda apurar com fúrias <strong>de</strong> análise! Não é senão <strong>um</strong> pouco menos mudável eincerto, neste perpétuo <strong>de</strong>venir em que tudo o que vive se res<strong>um</strong>e n<strong>um</strong> equilíbriomomentâneo e precário <strong>de</strong> elementos errantes e fluidos.Devemos crer nesse fundo, sem o examinar com insistente rigor. A nossaboa vonta<strong>de</strong> o faz crescer. Acreditar que ele existe é corroborar-lhe a existência. Anossa fé transfun<strong>de</strong>-se no íntimo dos outros como <strong>um</strong>a levedura vivaz. E assim cada<strong>um</strong> <strong>de</strong> nós é <strong>um</strong> pouco criador; criador das mais doces coisas do mundo.Os homens <strong>de</strong> bem são geralmente melhores do que a sua própria lógicafaria supor. Há indivíduos excelentes que falam como cínicos ou malvados.A palavra não foi dada a todos os homens para encobrir os seuspensamentos: foi dada à maior parte para encobrir a falta <strong>de</strong> pensamento. Felizes os10
www.nead.unama.brque ainda têm pensamentos que encobrir! A maioria pensa à medida que fala. Anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> falar é que a obriga a pensar <strong>um</strong> pouco. E há pior: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>falar a obriga por vezes a dizer coisas que nunca teria pensado.Era preciso falar muito menos. O silêncio seria a nossa melhor cura. E seriafreqüentemente a melhor das satisfações que pudéssemos dar <strong>de</strong> nós, em nossairremediável enfermida<strong>de</strong>.No silêncio germinam as forças heróicas. No silêncio con<strong>de</strong>nsam-se as forçasinvencíveis. O silêncio é a túnica invisível e pesada das almas inquebrantáveis,s<strong>um</strong>idas na profundida<strong>de</strong> triste da sua clarividência e da sua pieda<strong>de</strong>.Silence and Secrecy! — palavra <strong>de</strong> Carlyle que <strong>de</strong>via ser a divisa das almasreligiosas, isto é, das almas h<strong>um</strong>anas.Os amigos <strong>de</strong>viam estar juntos apenas para se sentirem viver <strong>um</strong> ao outro,mantendo entre si esses largos silêncios falantes que são o que há <strong>de</strong> mais expressivona linguagem do amor. A linguagem do amor é <strong>um</strong>a brosladura vã <strong>de</strong> palavras sobre<strong>um</strong> fundo uniforme <strong>de</strong> sentimento. Para que sobrecarregar a brosladura? Para quearriscar <strong>de</strong>senhos supérfluos que po<strong>de</strong>m comprometer irremediavelmente o tecido? Alinguagem apropriada seria musical, a meia voz, lenta como <strong>um</strong> cantus planusenvolvido pela melancolia suave que banha as felicida<strong>de</strong>s efêmeras.O mundo com todas as suas complicações miseráveis e a nossapersonalida<strong>de</strong> mundana e aparente, com todas as suas pretensões, e imbecilida<strong>de</strong>s,mistificações e parlapatices, <strong>de</strong>veriam <strong>de</strong>saparecer, como f<strong>um</strong>o varrido por <strong>um</strong> ventopuro e purificador, diante do milagre <strong>de</strong> duas almas que <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> se querem,—milagre! Coisa incompreensível e estupefaciente, nesta raça <strong>de</strong> macacos famélicos eobscenos. E seria como se cada <strong>um</strong>a dissesse para a outra, sem dizer nada: "Eismeaqui. Tal como sou, eis-me aqui: <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> lodo com duas asas. Amemo-nos,pelas nossas asas. Mas em silêncio, chut! Em si-lên-ci-o... Basta o sopro <strong>de</strong> <strong>um</strong>apalavra vã para que essas asas se rompam como teias <strong>de</strong> aranha!Etre méconnu memê par ceux qu'on aime, é est la coupe d'amert<strong>um</strong>e et lacroíx <strong>de</strong> la vie... escreveu Amiel com o seu sangue.Dentro do silêncio, a compreensão mútua, <strong>de</strong>spindo os incômodos véus dapalavra exterior e dos conceitos ordinários, e mesmo da palavra interior, po<strong>de</strong>riaass<strong>um</strong>ir a forma serena <strong>de</strong> <strong>um</strong>a il<strong>um</strong>inação. De <strong>um</strong>a clarida<strong>de</strong> difusa e divina. Paraalém da lógica tardígrada das magras aparências, das reflexões esterilizantes.—Po<strong>de</strong>ria. Mas!...O HOMEM QUE FUMAVou <strong>de</strong>ixar o hábito <strong>de</strong> ler no bon<strong>de</strong>, hábito estúpido. Ver o homem viver émais interessante do que ler as histórias do que ele faz e pensa, (ou pensa quepensa.) É certo que no bon<strong>de</strong>, geralmente, salvo n<strong>um</strong>erosas exceções, vai quieto esor<strong>um</strong>bático. Mas on<strong>de</strong> quer que esteja, e como quer que esteja respirah<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>. E os seus gestos e momos mais fugitivos são <strong>de</strong>buxos <strong>de</strong>scosidos dogran<strong>de</strong> jogo <strong>de</strong> cena que faz a dramaticida<strong>de</strong> da história."Todo ser h<strong>um</strong>ano é para mim <strong>um</strong> templo, e eu gostaria mais <strong>de</strong> distinguir ostraços originais, as leves pinceladas que aí se encontram, do que <strong>de</strong> ver o famosoquadro da Transfiguração <strong>de</strong> Rafael." Esta opinião <strong>de</strong> Sterne em sua ViagemSentimental, é justamente a minha. Honra a Sterne. — Só divirjo <strong>de</strong>le em que nãogosto apenas dos traços originais, mas <strong>de</strong> todos. Aliás, no fundo, cada homem ésempre <strong>um</strong>a síntese original, <strong>um</strong> composto único, <strong>um</strong> exemplar sem parelha. Anossa visão grosseira ou a nossa necessida<strong>de</strong> e se<strong>de</strong> <strong>de</strong> catalogação é que nos11