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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brnormativa, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> operações mentais anteriores ou presentes. A gran<strong>de</strong><strong>de</strong>scoberta instantânea tornou-se impossível. O <strong>de</strong>licioso milagre só se revela a quemconfia, franciscanamente, na l<strong>um</strong>inosa estupi<strong>de</strong>z do seu instinto e dos seus sentidos,e ingenuamente se lhes abandona, como o pássaro se <strong>de</strong>ixa librar nas suas asas.Por isso, <strong>um</strong> imenso repositório <strong>de</strong> beleza jaz inexplorado e ignorado nomundo e na vida. Quanta mulher feia por <strong>de</strong>finição não é por natureza <strong>um</strong>a coisaformosa! Quanto rosto irregular, escabroso, macilento, não guarda, <strong>um</strong> poucochinhomais além <strong>de</strong>sses aci<strong>de</strong>ntes, dissimulado como <strong>um</strong> seixo branco no fundo <strong>de</strong> <strong>um</strong> rio,<strong>um</strong>a harmoniosa, surpreen<strong>de</strong>nte disposição fundamental <strong>de</strong> linhas, <strong>de</strong> relevos e <strong>de</strong>contornos! E a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> beleza que não se vê porque o objeto em si mesmo é<strong>de</strong>sprezível ou repugnante! Um charco é <strong>um</strong>a imagem intelectual e oratória <strong>de</strong>dissolução, <strong>de</strong> paralisia, <strong>de</strong> morte, <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência; é <strong>um</strong> foco pestilento, <strong>um</strong>a chagaaberta na terra, tapada <strong>de</strong> moscas, <strong>de</strong> vermes, <strong>de</strong> batráquios: <strong>um</strong> horror "porconseqüência". Uma cobra — puh! Medonha! Entretanto, olhemos para isso tudocomo <strong>um</strong>a criança, com a atenção e a curiosida<strong>de</strong> nuas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a criança que nãoconhece nada, não sabe nada, não teme nada. O charco talvez nos apareça, cheio <strong>de</strong>azul, como <strong>um</strong> buraco da terra sobre <strong>um</strong> abismo sem fundo, todo lavado <strong>de</strong> clarida<strong>de</strong>e povoado <strong>de</strong> n<strong>um</strong>es joviais. A superfície da água, aqui lisa, ali borbulhante, além complacas e refegos <strong>de</strong> nateiro grosso, ora arrepiada pelo vento, ora quebrada por <strong>um</strong>bicho que se mexeu, toda betada <strong>de</strong> sombras movediças e <strong>de</strong> reflexos morrentes,golpeantes, explosivos, filiformes, maculares, difusos, — como se andasse ali adissolver-se <strong>um</strong>a taxada <strong>de</strong> l<strong>um</strong>inosida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> negruras e <strong>de</strong> cores, po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong>retalho fresco e maravilhoso <strong>de</strong> beleza arrancado ao monturo da realida<strong>de</strong> intelectiva.A cobra, essa é positivamente <strong>um</strong> objeto encantador. Vê-la enrodilhar-se éapreen<strong>de</strong>r a niti<strong>de</strong>z perfeita da imagem, aliada quase paradoxalmente à cambiantecontínua. Vê-la caminhar é ter a impressão <strong>de</strong> <strong>um</strong> liquido que se solidificouconservando a proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> escorrer.Vai tão sutil e estreitamente adaptada aos altos e baixos do terreno, que sediria que a cobra não existe, é <strong>um</strong> simples movimento ondulatório do solo, <strong>um</strong>fragmento uniforme <strong>de</strong> sismo, <strong>um</strong>a estilha perdida e <strong>de</strong>slizante <strong>de</strong> terremoto. Essecorpo sem membros parece também não ter ossos, e apenas se percebe que éformado <strong>de</strong> anéis ou forma anéis à medida que se move, e que esses anéis se<strong>de</strong>smancham, mal se <strong>de</strong>senharam em outros que vão <strong>de</strong>svanecer-se <strong>de</strong> igualmaneira: <strong>um</strong> <strong>de</strong>vaneio maluco objetivado.É <strong>um</strong> pau que se fez cipó e <strong>um</strong> cipó que parece querer voltar aos enlaces eaos balanços com as ramas. Irritado, arroja o bote com a fulminante rapi<strong>de</strong>z e afatalida<strong>de</strong> mecânica <strong>de</strong> <strong>um</strong> galho seco atirado pela raiva súbita da rajada. Como setivesse barbatanas e asas invisíveis, bóia, nada, voa pela superfície da terra, e,quando se diria que lhe vai fugir, mergulha por ela <strong>de</strong>ntro.Vejamo-la em repouso: é <strong>um</strong>a obra esquisita <strong>de</strong> tapeçaria, com <strong>de</strong>senhostão bem arabescados e cores tão bem distribuídas, que os nossos olhos seespreguiçam como ela e, como ela o nosso prazer se enrodilha e se esquece nassuas próprias roscas, e sonha.Disse Boileau, sentenciosamente, como sempre:Il n'est pas <strong>de</strong> serpent ni <strong>de</strong> monstre odjeur,Qui, par l'art imité, ne puísse plaire aux yeux,— mas quais são os monstros odiosos para os meus olhos? Não têm ódios nemamores. Tudo é natureza, tudo é espetáculo, tudo é necessário, tudo é expressão damultiplicida<strong>de</strong> sem fim na unida<strong>de</strong> substancial do infinito mistério e da infinita beleza.24

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