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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brSaí quase a correr, e o casaco se me enganchou pelo bolso à maçaneta daporta. Libertei-me, empurrei a porta com <strong>um</strong> safanão, e ela, voltando, soltou <strong>um</strong>relincho tão triste, que me senti subitamente envergonhado da minha estúpidaimpaciência.Que covardia e que ingratidão ser bruto com as coisas! É preciso, aocontrário, amá-las, no recanto em que vivemos, como as boas protetoras einalteráveis amigas. O aspecto or<strong>de</strong>nado, limpo, benévolo e tácito dos objetos queme ro<strong>de</strong>iam, no meu quarto, parece refletir às vezes algo que não é bem <strong>de</strong>stemundo: <strong>um</strong> ambiente <strong>de</strong> estampa, <strong>um</strong>a atmosfera <strong>de</strong> história, <strong>um</strong> casulo <strong>de</strong>intimida<strong>de</strong>s intangíveis, <strong>um</strong>a ilusão <strong>de</strong> permanência e <strong>de</strong> espiritualida<strong>de</strong> — enfim,<strong>um</strong> sonho, <strong>um</strong>a doçura, <strong>um</strong> perf<strong>um</strong>e.Ao tomar o bon<strong>de</strong>, porém, já eu pensava em coisas muito diversas daquelesinci<strong>de</strong>ntes. De modo que não sei porque fiz meta<strong>de</strong> da viagem tão sombrio, a olharpara o mundo com <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> terror inerte. A estupi<strong>de</strong>z e o mal da vida se merevelavam com a evidência <strong>de</strong> <strong>um</strong> aci<strong>de</strong>nte brutal, como <strong>um</strong> sinistro imenso que seacabasse <strong>de</strong> produzir, ali, <strong>de</strong> repente, sob meus olhos.Hei <strong>de</strong> cons<strong>um</strong>ir os anos que me restam, como tantos que já passaram, afazer duas e quatro vezes por dia este mesmo trajeto, a percorrer estas mesmasruas, estas mesmas esquinas, estes mesmos postes, entre as mesmas caras, aseternas caras indiferentes insidiosas, malignas, sornas, fátuas, soberbas, hostis.Hei <strong>de</strong> ir todos os dias à repartição, ver a cara regulamentar do chefe, ver ascaras dos meus cinco ou seis auxiliares, <strong>um</strong>a tola outra escarninha, outra fútil efinória, outra bovinamente resignada e mortiça. E não hei <strong>de</strong> topar muitas vezes naminha frente com alg<strong>um</strong>a cara aberta e sincera, alg<strong>um</strong>a cara il<strong>um</strong>inada e boa,<strong>de</strong>sfranzida e cordial, que me olhe firme e <strong>de</strong> chapa com uns olhos direitos e claroscomo duas espadas, límpidos e quentes como duas chamas.Meu Deus, como pu<strong>de</strong> viver até hoje <strong>de</strong>ste jeito! Meu Deus como é que hei<strong>de</strong> viver ainda, sabei-me lá até quando, nesta triturante estupi<strong>de</strong>z e nesta abjeçãoignominiosa! Matai-me, senhor, matai-me logo. Ou então, dai-me <strong>um</strong>a sorte naloteria, que me permita sair por esse mundo, sem cuidados, livre, errante, como ohomem que per<strong>de</strong>u a sombra, durante os primeiros momentos <strong>de</strong> sua peregrinação."Ia engolfado nestes pensamentos amarelos, quando subiu e veio sentar-se ameu lado o Aurélio <strong>de</strong> Moura. C<strong>um</strong>primentou-me com afabilida<strong>de</strong> mais larga do quea habitual. Acolhi-o com prônubos alvoroços.Auré1io perguntou-me solícito pelas minhas coisas, passando-me o braçopelo ombro, com <strong>um</strong> sorriso <strong>de</strong> páscoa. Deixei-me abraçar, comovidamente, econversamos.Este rapaz é dos que parecem apostados a pensar, no miúdo e no grosso,<strong>de</strong> modo radicalmente diverso do meu; mas esta circunstância, que em outrasocasiões me quizilava, então se me tornou mais <strong>um</strong> motivo <strong>de</strong> satisfação, como <strong>um</strong>bom molho ajuntado a <strong>um</strong> prato já <strong>de</strong> si excelente. Concedi tudo a Aurélio, peloprazer <strong>de</strong> o ver trabalhar em liberda<strong>de</strong>. As coisas vulgares e as coisas estrambóticasque ele dizia, tudo me soava <strong>um</strong>a doce música."Fala, Aurélio! Fala, fala tudo quanto quiseres. Agrada-me pensar que é paramim só que tu falas, que o teu espírito veio verter no meu a esp<strong>um</strong>a generosa doseu mosto vivo — <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> confidência sem gravida<strong>de</strong> e sem segredo, masindiretamente complexa e escancarada.Fala Aurélio! Achas que os postes <strong>de</strong> fios elétricos <strong>de</strong>viam ser pintados <strong>de</strong>escarlate? Muito bem. Achas que o Brasil precisa urgentemente ser invadido peloargentarismo estrangeiro, que é necessário matar todos os leprosos e que as63

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