12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brDá-se bem com o sistema, e a socieda<strong>de</strong> ainda melhor. Ganha esta <strong>um</strong>homem afável, serviçal, maneiro, <strong>de</strong> fácil e macio contato, simples <strong>de</strong> utilizar.Multipliquem-se estes homens exemplares por mil, e veja-se que incalculávelbenefício não seria, que harmônica estabilização <strong>de</strong> <strong>um</strong> tipo social indígena, queprecioso reforço <strong>de</strong> cidadãos bem construídos, normalizados, estandardizados, semmistérios e sem surpresas, sólidos, garantidos, <strong>de</strong> uso limitado, mas seguro epreciso, — como a louça inglesa, como a cutelaria <strong>de</strong> Manchester, como o presuntoholandês, como o óleo <strong>de</strong> fígado <strong>de</strong> bacalhau, como o fósforo Jonkonpings, como ascamisas do Porto!Foi essa multiplicação <strong>de</strong> <strong>um</strong> tipo mo<strong>de</strong>sto, mas viável e bom que fez aquelacoesão e aquela estabilida<strong>de</strong> magnífica da socieda<strong>de</strong> britânica, — o seu núcleoresistente, a sua massa harmônica e firme, a <strong>de</strong>slocar-se através da história com oímpeto regular <strong>de</strong> <strong>um</strong> imenso exército em marcha.Suponham-se agora estes in<strong>um</strong>eráveis Cesários preocupados todos comfabricar idéias e esmaltá-las sob formas graciosas e cortantes. Que calamida<strong>de</strong>!Ganharíamos, talvez, alg<strong>um</strong>as jóias do espírito, mas, em troca, que multidão <strong>de</strong>intelectuais neurastênicos, incertos, cáusticos, insociáveis, prisioneiros eternos <strong>de</strong> simesmos, <strong>de</strong>spidos <strong>de</strong> tolerância e <strong>de</strong> benignida<strong>de</strong>, sacrificando tudo por <strong>um</strong>a frase<strong>de</strong> espírito, inadaptáveis a todo esforço com<strong>um</strong>, inimigos <strong>de</strong> toda disciplina obscurae <strong>de</strong> todo <strong>de</strong>votamento discreto e silencioso, e enfim gran<strong>de</strong>s criadores efetivos <strong>de</strong>mal-estar, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteligência e <strong>de</strong> estéreis, inacabáveis veleida<strong>de</strong>s e agitações noseio da massa e no das moças!MÃEPobre mulher, aquela boa e sincera mãe que vi ontem, tão mansa, tãoentregue ao seu pequenino!Era bonita, mas como que o ignorava. Estava tão <strong>de</strong>spreocupada no bon<strong>de</strong>como se estivesse em sua casa. 'Trazia o filhinho ao regaço, e brincava-lhe com<strong>um</strong>a das mãozinhas, fazendo-a saltar, arremessando-a e abaixando-a, aospequenos tapas, como <strong>um</strong>a bola. O pequeno ria-se <strong>de</strong> quando em quando, e a cadarisada o rosto da mãe tomava <strong>um</strong>a expressão forte, escultural <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong> plena eremansosa.A certo momento, pegou a criança pelo tronco, pô-la em pé sobre os joelhos,e começou a sacudi-la como a pregar-lhes sustos. Fazia-lhe, ora, <strong>um</strong>a cara <strong>de</strong>surpresa cômica, arregalando os olhos; ora, <strong>um</strong>a cara <strong>de</strong> cólera, carregando assobrancelhas, afuzilando o olhar; ora, <strong>um</strong>a cara <strong>de</strong> choro <strong>de</strong>sconsolado, em quetodos os músculos se relaxavam e as pálpebras e os cantos da boca <strong>de</strong>scaíam.Jogral do seu pequerrucho, essa mãe se esquecia <strong>de</strong> si, se <strong>de</strong>spojava <strong>de</strong>todas as preocupações habituais, concentrava toda a sua vida naquele ser único,pequenino e fragílimo. Era <strong>um</strong> simples brinquedo em po<strong>de</strong>r do seu bebê, —brinquedo todo cheinho <strong>de</strong> amor, como outros o são <strong>de</strong> serragem.Mas, por que, <strong>de</strong>uses imortais e impossíveis! Por que seria necessário queessa mãe, res<strong>um</strong>indo o mundo em seu filho, trabalhasse tão obstinadamente porgravar nele os gestos eternos da loucura h<strong>um</strong>ana? Gestos <strong>de</strong> fúria, <strong>de</strong> terror, <strong>de</strong>cupi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong> <strong>de</strong>speito, <strong>de</strong> ciúme, — toda a mímica do inferno mundano, — formaspara ele ainda vazias, mas nas quais se irá pouco a pouco vertendo e solidificando asubstância do seu pequeno Eu rarefeito e disperso?Ama-o como a <strong>um</strong> anjo, e luta por fazer <strong>de</strong>le apenas <strong>um</strong> <strong>de</strong>stes vasos <strong>de</strong>miséria, <strong>de</strong> impureza e <strong>de</strong> sofrimento!77

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!