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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brAi! Por muito pobre que seja a imaginação dos malfazejos, os distúrbios queela consegue promover são pequena coisa diante do mal que todos fazemos unsaos outros pelo simples fato <strong>de</strong> existir.Não há pior aci<strong>de</strong>nte do que ocupar <strong>um</strong> lugar no espaço. Um simples fio <strong>de</strong>cabelo caindo <strong>de</strong> <strong>um</strong>a cabeça po<strong>de</strong> ser para alguém como o raio <strong>de</strong>struidor partindodo punho <strong>de</strong> Arimã. Vivemos assim <strong>um</strong>a eterna e terrível mitologia. Participamos danatureza dos <strong>de</strong>uses, ao menos para o mal. Só para o mal. A vida é a angústia doterror difuso e permanente.RETICÊNCIASEncontrei-me hoje no bon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois do almoço, com o Nicolau Coelho.Como eu lhe dissesse, <strong>um</strong> dia, que lera com prazer a sua crônica sobre finados,<strong>de</strong>sse dia em diante se aproximou <strong>de</strong> mim, e não me vê sem que me venha apertara mão. Ainda hoje pagou a minha passagem.Conheço Nicolau <strong>de</strong>s<strong>de</strong> menino, fui amigo <strong>de</strong> seu pai, professor gratuito <strong>de</strong><strong>um</strong> dos seus irmãos, e nunca se julgara obrigado a usar <strong>de</strong> cortesias comigo. Passeia ser alguém para ele no dia em que lhe elogiei <strong>um</strong>a crônica, a ele que tantas e tãoaplaudidas tem escrito, a ele carregado <strong>de</strong> glórias.Nicolau, vendo-me no último banco, ergueu-se do seu e <strong>de</strong>sfechou-se <strong>de</strong> lá.Sacou <strong>de</strong> cinco tiras <strong>de</strong> papel e disse, com modéstia:— "Isto é curtinho... Gostaria que lesse, preciso da sua opinião."Fixei os meus olhos nos seus.— "Precisa da minha opinião?"— "Sim pois..."— "Mas isso é grave, meu amigo. Então a minha opinião vale?"— "Muito."— "Nesse caso, eu necessitaria ler com vagar, com toda a atenção."— "Mas, eu tenho <strong>de</strong> levar o original à folha. É curtinho. Lerá n<strong>um</strong> momento."Li. Li e não achei mal. Ao contrário. Certa harmonia agradável e constante,harmonia <strong>de</strong> forma, harmonia <strong>de</strong> fundo, feitas <strong>de</strong> pequenas audácias <strong>de</strong> pensamentoe <strong>de</strong> expressão, difíceis <strong>de</strong> orquestrar. Notei apenas <strong>um</strong> exagero <strong>de</strong> sinais sintáticos,travessões, virgulas, pontos-e-vírgulas, pontos finais, e sobretudo, reticências.O abuso das reticências me é particularmente enervante (a não ser quandoentram, n<strong>um</strong> sistema personalíssimo <strong>de</strong> notações, compreensível em certosindivíduos muito irregularmente "individuais".) Ponham quantas forem necessáriaspara indicar suspensão ou transição inesperada. Mas este cost<strong>um</strong>e <strong>de</strong> <strong>de</strong>rramar aopé <strong>de</strong> cada período <strong>um</strong>a série <strong>de</strong> pontinhos, para <strong>de</strong>notar que a frase é aguda, queali há coisa, que a passagem envolve malícia ou profundida<strong>de</strong> — não, não.O leitor (sempre inteligente) irrita-se por não se lhe <strong>de</strong>ixar o gosto <strong>de</strong><strong>de</strong>scobrir por si mesmo as sutilezas, as intenções, os valores velados. E <strong>de</strong>pois oautor acaba por botar reticências em tudo, porque é difícil que <strong>um</strong> autor não vejacoisas a realçar em cada <strong>um</strong> dos seus períodos. Afinal, a função dos pontinhos<strong>de</strong>saparece, e on<strong>de</strong> eles não estão é que a gente vai ver se <strong>de</strong>sentoca o melhor.48

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