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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brobriga a converter as semelhanças em i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e as analogias em semelhanças,a criar espécies e gêneros para ver o indivíduo, única realida<strong>de</strong> tangível, único<strong>de</strong>pósito real <strong>de</strong> h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> vivente e vibrante.Viajei ao lado <strong>de</strong> <strong>um</strong> homem que, pela casca, <strong>de</strong>via ser negociante <strong>de</strong> secose molhados. Era, <strong>de</strong> fato. Cheirava a suor, tinha os <strong>de</strong>dos grossos e encardidos,trazia <strong>um</strong> casaco <strong>de</strong> casimira cinzenta semeado <strong>de</strong> respingos, coscorões e tintas <strong>de</strong>varias cores. Contudo, carregava relógio com <strong>um</strong>a grossa ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> ouro, guardavana pupila a chispa da in<strong>de</strong>pendência e, enfim, tinha esse ar <strong>de</strong> cavaleirogarbosamente escarranchado em cavalgadura mansa, tão próprio dos homensclassificados e prósperos.Mascava <strong>um</strong> toco <strong>de</strong> charuto, soltando baforadas na cara dos vizinhos, entreos quais havia senhoras <strong>de</strong> várias ida<strong>de</strong>s, formatos e cores. Não lhe ocorria sequera idéia <strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse incomodar. Isso me irritou, e figurei-me logo esse mesmohomem, em mangas <strong>de</strong> camisa, por trás do balcão a <strong>de</strong>sfazer-se em mesuras comos habitues do parati e em gatimonhas gentis com as cozinheiras.Portanto, <strong>um</strong> abjeto ganhador <strong>de</strong> níqueis? Um tipo que se fazcalculadamente macio e untuoso quando lhe convém, altaneiro e maroto quandonão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>? Não será bem isso. Para ele, ser paciente e obsequioso com afreguesia é <strong>um</strong>a forma <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>. Disto se ufana. Ensina essa virtu<strong>de</strong> ao caixeirinho,ensina-a aos filhos, e está candidamente plantado na convicção <strong>de</strong> que o Bem é<strong>um</strong>a coisa que logo se reflete na gaveta.No bon<strong>de</strong>, o Sr. Joaquim já não é <strong>um</strong> negociante, é <strong>um</strong> passageiro. Aí, jánão sente os limites que <strong>de</strong> ordinário lhe circunscrevem a personalida<strong>de</strong>, pungindolhea carne; dá liberda<strong>de</strong> ao corpo; reveste, como <strong>um</strong>a roupa larga, os gestos emodos comuns do passageiro.A este não lhe inc<strong>um</strong>bem senão três coisas: pagar a passagem, não f<strong>um</strong>arnos três primeiros bancos, e só ocupar o lugar <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pessoa — o que não é difícil,a menos que tenha <strong>um</strong> vol<strong>um</strong>e incapaz <strong>de</strong> redução à unida<strong>de</strong>, na aritmética dosbon<strong>de</strong>s. De resto, todos iguais perante o condutor e o motorneiro. Todos po<strong>de</strong>m, serbrutos, <strong>de</strong>ntro das regras, bastante amplas, que presi<strong>de</strong>m a vaga polícia dos carros.— O Sr. Joaquim está igualmente compenetrado <strong>de</strong>ste princípio, que da mesmaforma já se lhe incorporou à maquinalida<strong>de</strong> dos reflexos.Ora, quem estiver isento <strong>de</strong> culpa, esse lhe atire a primeira pedra! Todos,nesta vida, cada <strong>um</strong> a seu modo, não fazem senão aquilo que faz o Sr. Joaquim.Todos, no fundo, ven<strong>de</strong>iros amabilíssimos com a freguesia, e passageiros quef<strong>um</strong>am nos bon<strong>de</strong>s da vida muito à sua vonta<strong>de</strong>.On<strong>de</strong> estão a originalida<strong>de</strong> do Sr. Joaquim? Eis o que não pu<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir,mas tenho a certeza <strong>de</strong> que lá está, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, como <strong>um</strong>a pérola no ventre <strong>de</strong> <strong>um</strong>galo. Questão <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> paciência. — Há criaturas difíceis <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifrar. Sãoenigmas que a Vida compõe para os propor a Deus, o gran<strong>de</strong> matador <strong>de</strong> todas ascharadas.RUFINAEsquisita vaga <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>! Ontem, anteontem, nada vi no bon<strong>de</strong>: nada visenão Rufina, a moça que salvei <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>sastre iminente.A princípio, entrei a duvidar se ficara preso ao feitiço da sua pessoa, quetinia <strong>de</strong> vida e mocida<strong>de</strong>, se lhe guardara afeição apenas pelo fato <strong>de</strong> a tersocorrido. — Há no fundo <strong>de</strong> nossa alma <strong>um</strong> veiozinho <strong>de</strong> sentimento que fica12

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