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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brO condutor não lhe cobrou a passagem, mas fez parar o carro e obrigou ocantor a <strong>de</strong>scer, com tácita aprovação dos <strong>de</strong>mais passageiros. Quando se viu narua, o expulso abriu os braços para protestar, mas cambaleou e sentou-se no chão,gritando sonoramente, à maneira <strong>de</strong> insulto e <strong>de</strong> ameaça: "Portoghese! Vado dalpresi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>llo Stato!"Mas o bon<strong>de</strong> já ia longe. E os passageiros riam-se. E ria-se o condutor.Precisamente nesse momento, eu ficava sério, e aquele homem alegre e inofensivo,posto do veículo abaixo como <strong>um</strong>a lata velha, me começava a interessar. Era avítima simpática <strong>de</strong> <strong>um</strong> lote <strong>de</strong> imbecis. E eu no meio <strong>de</strong>stes.Um homem alegre, fosse qual fosse o combustível da sua alegria, <strong>de</strong>veraser olhado como em certas civilizações primitivas se olhavam os doidos, criaturassagradas, ou como os gregos consi<strong>de</strong>ravam os <strong>de</strong>votos <strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong> Dionísios,con<strong>de</strong>nsadores momentâneos <strong>de</strong>sse mistério <strong>de</strong> jovialida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> exaltação que emcertas épocas circula através das coisas, e preme os úberes da terra, e <strong>de</strong>sata asofertas do céu.Minha alma ficara lá para trás, junto daquele homem assoado para a ruapela austera comunida<strong>de</strong> do bon<strong>de</strong>. E minha alma lhe dizia:Ri, ri, ri, minha vitima, meu irmão. Brinca, tagarela, traquina à tua vonta<strong>de</strong>.Frui sem vergonha e sem cuidado este parêntese divino <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> loucuraalegre que se abre na miséria soturna da tua vida. Ri, ri, meu irmão, minha vítima.A tua risada não me alivia, mas vinga <strong>um</strong> pouco a minha ânsia recolhida <strong>de</strong>libertação impossível, pobre, torturado escravo que sou, mesquinho escravo dasRegras, dos Horários, dos Regulamentos, dos Códigos e das Necessida<strong>de</strong>s criadas.Ri, folga, berra, cabriola, papagueia, pragueje, insulta! E canta! Canta, nessaefusão <strong>de</strong> lirismo obscuro que sobe do mais fundo da nossa alma bruta, expressãosem palavra <strong>de</strong> alegria vital, inconsciente, expansiva, cósmica, alegria do gafanhotoque salta e voeja, da maritaca grita<strong>de</strong>ira e gloriosa, da água que foge às guinadasfervendo e brilhando, do fogo que dança o bailado da labareda, <strong>de</strong> tudo que não éesta nossa <strong>de</strong>sgraçada alma superficial <strong>de</strong> bicho domesticado e diminuído.Ri, ri, ri, com todo o teu ser, todo o teu sangue, a tua carne, para além ouaquém do Bem e do Mal, Homem! Pobre Homem, bom Homem, meu irmão.Ri, ri, ri, até que estoures <strong>de</strong> repente com o riso, como a cigarra a cantar, eacabes assim na mais bela das mortes, fulminado por <strong>um</strong>a explosão <strong>de</strong> vida!"Agora, ao rememorar esta minha o<strong>de</strong>, com a pena entre os <strong>de</strong>dos, já não meparece que tenha justificado bem a embriaguez, que afinal é <strong>um</strong> vício <strong>de</strong>testável.Embriaguez por embriaguez, é preferível <strong>um</strong>a consciência clara e <strong>um</strong> sentimentoprofundo e sutil das realida<strong>de</strong>s. Também isto é <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> bebe<strong>de</strong>ira; maslúcida, infinitamente matizada; e tem todo, o atrativo <strong>de</strong> <strong>um</strong> vício artificial."Se<strong>de</strong> duros, meus irmãos!" pregava Zaratustra, "e a verda<strong>de</strong> é que a durezaé <strong>um</strong> ingrediente da vida e <strong>um</strong>a condição <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m."Nada mais saboroso do que o diálogo <strong>de</strong> Tolstói com a sentinela doCremlim. Esta enxotava <strong>um</strong> mendigo <strong>de</strong> certo lugar on<strong>de</strong> não se permitia apermanência <strong>de</strong> estranhos. Tolstói aproxima-se, vê, sofre, e aborda o soldado,perguntando-lhe se não conhecia os versículos do Novo Testamento em que serecomenda tratar o próximo como a <strong>um</strong> irmão. Retruca o militar: "E o senhor nãoconhece o regulamento da praça? Pois eu o conheço."Palavra profunda! A primeira necessida<strong>de</strong> é c<strong>um</strong>prir cada <strong>um</strong> o seu <strong>de</strong>verparticular, o seu <strong>de</strong>ver concreto, positivo, limitado, pequenino.O <strong>de</strong>ver particular às vezes é duro, como pedra, como prego, duro comopau, mas é <strong>de</strong>le que se faz a or<strong>de</strong>m, a or<strong>de</strong>m que é edificação, que é obra, que é36

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