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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brpareceu-me que sem isso o meu agra<strong>de</strong>cimento não encaixaria perfeitamente com aamabilida<strong>de</strong> do homem. Por <strong>um</strong> instante, pensei em aceitar o lenço, mas prevaleceuo austero <strong>de</strong>ver, tirei o chapéu, agra<strong>de</strong>ci, e fui-me. O homem ainda me pediu<strong>de</strong>sculpa e ficou a olhar em redor, a ver se aparecia o legítimo dono.Segui o meu caminho a fruir esta agradável impressão — que ainda hámuito sentimento sadio e cordial por este mundo! A honestida<strong>de</strong> do ato, valha averda<strong>de</strong>, não era gran<strong>de</strong>. Os objetos transviados são quase sempre restituídos,quando <strong>de</strong> pouco importância. Mas a galantaria do gesto! Linda coisa, a galantaria.A honestida<strong>de</strong>, afinal, é <strong>um</strong>a obrigação. Tem <strong>um</strong> princípio passivo. É <strong>um</strong>a astúcia doegoísmo socializado, que evolveu para virtu<strong>de</strong>, como o réptil se fez pato. Mas agalantaria é soberana: impulso livre, ação <strong>de</strong> luxo e primor, dom incompulsório,fantasia espontânea do coração, scherzzo garboso e supérfluo da vonta<strong>de</strong> senhora<strong>de</strong> si mesma. — O excesso da medida justa vale a medida inteira.Ia eu a pensar estas coisas aprazíveis, n<strong>um</strong> passo vagaroso <strong>de</strong> quem vê quecarrega borboletas no ombro ou no chapéu e não quer afugentá-las. Ao entrar n<strong>um</strong>café, <strong>de</strong>i com o homem do lenço na minha frente. Notei que tinha o nariz vermelho.Sorriu-se, <strong>de</strong>scobriu-se e, inclinando a cabeça para <strong>um</strong> lado: — "Seu doutor, não temaí uns nicolaus que lhe sobrem, para eu tomar <strong>um</strong> pingado?" Dei-lhe os nicolaus.CANUDO-DE-PITOA manhã, hoje, era <strong>um</strong>a festa, e o meu bairro, todo em manchas aéreas efrescas <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s claras, telhados vermelhos, jardins ver<strong>de</strong>s, morros azulegos evioláceos a <strong>de</strong>rreterem-se na distância como caramelos, me divertia como <strong>um</strong>apaisagem refletida n<strong>um</strong>a bola <strong>de</strong> cristal. Eu não tinha senão olhos, enquanto obon<strong>de</strong> corria. "Corre mais <strong>de</strong>vagar, bon<strong>de</strong> do diabo! Que assim como vais se meatrapalha tudo. — Corre mais <strong>de</strong>pressa, bon<strong>de</strong> do inferno! Que assim lentamente a<strong>de</strong>sfilada das coisas mal se liberta da rigi<strong>de</strong>z e do peso."De repente, do meio da gran<strong>de</strong> nuvem escura <strong>de</strong> <strong>um</strong> velho bosque, saltoucomo <strong>de</strong> <strong>um</strong> capulho, <strong>um</strong>a nuvem amarela, a fron<strong>de</strong> arredondada <strong>de</strong> <strong>um</strong>a árvore <strong>de</strong>ouro. "Olhe, que lindo! "(disse eu ao meu vizinho mais chegado, o Sr. João Cesárioda Costa, capitalista, quarenta e oito anos). "Veja aquele ipê!" O meu vizinho <strong>de</strong>u<strong>um</strong>a olha<strong>de</strong>la e informou friamente: "Canudo-<strong>de</strong>-pito".O fato <strong>de</strong> se tratar <strong>de</strong> <strong>um</strong> canudo-<strong>de</strong>-pito, e não <strong>de</strong> ipê, ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> lei, influía<strong>de</strong>cisivamente na reação da sua sensibilida<strong>de</strong> ante aquele quadro fugente ealucinatório. O mundo, para ele, reduziu-se a <strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> conceitos, ou a <strong>um</strong>dicionário ilustrado. Costa não foi composto para comunicar diretamente com ascoisas, no absoluto momentâneo e original da sensação, nesse largo esurpreen<strong>de</strong>nte aquém da idéia e do pensamento, mais maravilhoso e menos tristedo que o Além por on<strong>de</strong> vagam os Fabianos.A civilização cada vez mais afasta os homens do contato imediato eregenerativo das coisas sensíveis. Só as enxergam <strong>de</strong> longe e <strong>de</strong> viés, através dostipos, mo<strong>de</strong>los, noções, <strong>de</strong>finições, poeira br<strong>um</strong>osa <strong>de</strong> abstração, sob a qual aintimida<strong>de</strong> fluente e jovial do mundo se <strong>de</strong>svanece, e a alma encantada da criaçãofoge como <strong>um</strong> Ariel zombeteiro. Diante <strong>de</strong> <strong>um</strong>a paisagem, não vêem a paisagem, mas<strong>um</strong>a coleção <strong>de</strong> objetos e <strong>de</strong> efeitos conhecidos e explicados, formando <strong>um</strong> conjuntovisual <strong>de</strong> acordo com meia dúzia <strong>de</strong> normas laboriosas. Diante <strong>de</strong> <strong>um</strong> ser vivo,<strong>de</strong>sarticulam as partes, (como se <strong>um</strong> ser vivo, como se as coisas tivessem narealida<strong>de</strong> partes) examinam, me<strong>de</strong>m, subdivi<strong>de</strong>m, espedaçam, e cada ato <strong>de</strong>sses<strong>de</strong>corre <strong>de</strong> <strong>um</strong>a idéia feita, <strong>de</strong> <strong>um</strong> critério preconcebido, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a prefiguração23

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