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www.nead.unama.brO que havia <strong>de</strong> bom nessa leitura era o emprego tenaz da vonta<strong>de</strong> n<strong>um</strong>objeto indiferente, ótimo exercício; era, <strong>de</strong>pois, o esquecimento <strong>de</strong> <strong>um</strong>asamofinações, porque é impossível conciliar-se a leitura atenta <strong>de</strong> <strong>um</strong>a série <strong>de</strong>receitas <strong>de</strong> assados e cabi<strong>de</strong>las com o remeximento <strong>de</strong> espinhos espirituais.Era, finalmente, a entrevisão liminar <strong>de</strong> <strong>um</strong> vasto mundo <strong>de</strong>sconhecido, omundo da Copa e da Cozinha, da pastelaria e das Artes afins; <strong>um</strong> mundo <strong>de</strong> ocupaçõese preocupações, <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alida<strong>de</strong>s, com sua história, seu tesourotradicional, sua literatura, sua arte, sua ética, sua ciência; <strong>um</strong> mundo que aí fervilha tãoperto do meu e ao qual eu andava alheio como se ele fosse Marte ou Saturno!Esta percepção da impermeabilida<strong>de</strong> dos diferentes planos da vida me caloufundo na alma, e eu me senti ainda mais pequenino.Se eu amanhã fizesse (mera hipótese) <strong>um</strong> poema forte, ou construísse <strong>um</strong>ateoria <strong>de</strong> mecânica, ou propusesse <strong>um</strong>a nova e fecunda maneira <strong>de</strong> interpretar ahistória, nada disso teria a mínima repercussão no mundo da Cozinha e da Copa;nem <strong>um</strong> eco sequer do meu nome chegaria até lá. A preparação do peru com farofacontinuaria a mesma; ou, se modificasse, havia <strong>de</strong> ser por ação <strong>de</strong> <strong>um</strong> dos íncolas,inovador <strong>de</strong> talento; e a alma do artista viveria em todo esse mundo largo mais vivae mais venerada do que a Divina Comédia ou o Discours <strong>de</strong> la Métho<strong>de</strong> ou o Nov<strong>um</strong>Organ<strong>um</strong> cá pelo nosso. E a sua glória não sofreria contestações nem eclipses,proclamada cada dia, através <strong>de</strong> tempos sem conta, por milhares <strong>de</strong> bocas verídicase gratas!E o nosso pobre mundo com<strong>um</strong> é todo assim, feito <strong>de</strong> mundinhosconcêntricos, que se articulam sem se confundir E nós, ai <strong>de</strong> nós! Preten<strong>de</strong>mos viver"cosmicamente!"RUFINAEncontrei-me hoje com o boticário, a quem não via <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a última vez quevira Rufina."Quem é aquela moça", lhe perguntei, "que, há coisa <strong>de</strong> duas semanas,viajou conosco neste bon<strong>de</strong>? Aquela morenota <strong>de</strong> olhos gran<strong>de</strong>s e úmidos? Aquela<strong>de</strong> bonitos <strong>de</strong>ntes? Aquela espigadinha, <strong>de</strong> branco, a quem você, saltando do carro,<strong>de</strong>itou <strong>um</strong>a olha<strong>de</strong>la xaroposa?"Fabiano custava-lhe recordar-se. Vincou a testa, cravou os olhos notejadilho, levou a unha do indicador para entre os incisivos, com a boca aberta.— "Uma gorda, <strong>de</strong> cabelo ondado?"— "Nada. Não ofenda."— "Não me lembro... Espere. Uma alta, <strong>de</strong> nariz gran<strong>de</strong>?"— "Já lhe disse que era morena, pequena, engraçada."Fabiano agitou-se, como que para sacolejar a caixa das lembranças, atirou<strong>um</strong>a perna para cima da outra, curvou o busto, agarrou o queixo, carregou o cenho."Diabo!" De repente, riu-se, <strong>de</strong>u-me <strong>um</strong>a tapona no joelho e exclamou:— "Já sei! Uma cabrochinha, não é isso?"Conservei-me calado, mandando em espírito, o idiota do boticário a todos osmil <strong>de</strong>mônios. Aliviado, voltei-me para ele, frio:38