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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brAcácio, Prudhomme e Homais eram homens <strong>de</strong> princípios ou <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais, aopasso que Cesário não tem convicções arreigadas: é <strong>um</strong> bom homem, arranjado,comodista, amigo da boa roupa, da boa mesa e da boa prosa, com ambiçõesmo<strong>de</strong>stas e com <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> tato instintivo do que lhe po<strong>de</strong> ser útil e agradável.Incapaz das parlapatices <strong>de</strong> Prudhomme, da compenetração respeitosa <strong>de</strong> si próprioque distinguia Acácio, e <strong>de</strong> azi<strong>um</strong>ados sectarismos à maneira <strong>de</strong> Homais.Apenas se encontra com eles no terreno do lugar-com<strong>um</strong>. Mas o lugarcom<strong>um</strong>não é privativo <strong>de</strong>stes ou daqueles, é a terra <strong>de</strong> ninguém on<strong>de</strong> todo omundo, uns mais amiú<strong>de</strong>, outros mais <strong>de</strong> longe em longe e mais a medo, faz assuas incursões e as suas colheitas.De resto será o lugar-com<strong>um</strong> coisa tão <strong>de</strong>sprezível? Não, o lugar-com<strong>um</strong> énecessário. Faz parte das forças da natureza. É da natureza do espírito h<strong>um</strong>ano anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cunhar <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> moeda divisionária das idéias, que possaandar pelas próprias mãos dos que não tenham capitais e que presta enormeserviço a toda a gente.Se quer encarar o caso na sua verda<strong>de</strong>ira latitu<strong>de</strong>, o ponto <strong>de</strong> vista escolar,estilístico, literário, é <strong>de</strong> <strong>um</strong>a insuficiência absoluta, e por sua estreiteza e vetustezbem merece figurar também na categoria dos lugares-comuns elegantes.O abuso <strong>de</strong>sse ponto <strong>de</strong> vista crítico e aristocrático vai espalhando nosespíritos inclinados às letras e às idéias <strong>um</strong> terror excessivo e doentio do ominosopecado. E com isso chega a criar freqüentemente <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> Acácios àsavessas, que repelem boas idéias por serem velhas, sem sempre forjar novas quesejam boas, e esquecem-se da corrente e <strong>de</strong>sempenada linguagem daconversação, e embrulham em formas rebuscadas os mais fugitivos e ambíguosfiapos <strong>de</strong> pensamento, como quem fizesse gaiolinhas <strong>de</strong> metal dourado paraguardar pernilongos.A gran<strong>de</strong> e imponente maioria dos h<strong>um</strong>anos não dá nenh<strong>um</strong> apreço àsidéias por si mesmas. Estas, quando caem na circulação geral, per<strong>de</strong>m toda a suavirtu<strong>de</strong> abstrata, empastam-se na grossa praticida<strong>de</strong> e na violenta concreteza dosvalores vitais imediatos. Descem do plano lógico para o biológico. Rousseau disseque pensar é <strong>um</strong> ato contra a natureza, e os atos contra a natureza ela os puneempeçando-os ou <strong>de</strong>sviando-os, reassimilando-os e recolocando-os na órbita dosseus próprios fins.As idéias, na marcha geral e normal da vida, têm <strong>um</strong> valor tão puramenteinstr<strong>um</strong>ental, oportunístico e subalterno como as armas, os utensílios, os aparelhose todas as coisas que prolongam os nossos meios naturais <strong>de</strong> ação. É preciso que<strong>um</strong> homem esteja pervertido pela literatura e análogas manias, para ter a fantasia <strong>de</strong>inventar idéias, pelo simples prazer <strong>de</strong> criar instr<strong>um</strong>entos originais. Se a faca e omartelo já foram inventados há milhares <strong>de</strong> anos, e prestam ótimo serviço, para queé que o Sr. Cesário havia <strong>de</strong> imaginar <strong>um</strong> traste novo e aperfeiçoado, só para cortaruns cipós ou para bater uns pregos <strong>de</strong> quando em quando? Não seria econômico.Enorme <strong>de</strong>sproporção entre o esforço e o resultado.Com <strong>um</strong> pequeno arsenal <strong>de</strong> lugares-comuns, Cesário está dispensado <strong>de</strong>gastar inutilmente largas somas <strong>de</strong> tempo e <strong>de</strong> trabalho. Põe a sua provisão no bolso,cada dia, conforme as necessida<strong>de</strong>s, e sai para os seus negócios, para os seusprazeres <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, para as suas <strong>de</strong>mandas, para a sua <strong>de</strong>scansada pescaria <strong>de</strong>proveitos possíveis, nas horas vagas. Surte-se com a suave facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> quemcompleta, em casa a sua toilette habitual, pondo meia dúzia <strong>de</strong> charutos na carteira,<strong>um</strong> lenço <strong>de</strong> sobressalente no bolso da calça, <strong>um</strong> canivete no bolsinho do colete.76

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