12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brmenor. Muito custou reconhecer-se que o homem é que é <strong>um</strong>a criança crescida.Entretanto, dir-se-ia que isso entra pelos olhos.Para as crianças ainda não crescidas, tudo é brinquedo.O brinquedo especializado é <strong>um</strong>a invenção que os gran<strong>de</strong>s fizeram para sedivertirem com eles e com as crianças. Estas muitas vezes, se vêem reduzidas aopapel <strong>de</strong> usufrutuárias, ou menos ainda, ao <strong>de</strong> guardas e conservadoras dos bonitosobjetos. Para elas, coitadas, tudo é brinquedo. Uma toalha enrolada, que se revestiu<strong>de</strong> <strong>um</strong> casaco velho, faz o papel <strong>de</strong> <strong>um</strong>a boneca perfeita, ainda melhor do que aprópria boneca perfeita. Um cabo <strong>de</strong> vassoura po<strong>de</strong> ser <strong>um</strong> cavalo sem rival, comvantagem <strong>de</strong> não impor ao dono sua raça, nem os aci<strong>de</strong>ntes da sua forma ou do seucaráter, mas com a capacida<strong>de</strong> preciosa <strong>de</strong> ser árabe ou ponney pangaré ou ruano,fuá ou poleiro, à vonta<strong>de</strong>. Uma galinha, <strong>um</strong> ferro <strong>de</strong> engomar, <strong>um</strong> grilo ou <strong>um</strong>a caixa<strong>de</strong> fósforos são divertimentos mais interessantes e <strong>de</strong> mais durável prestigio <strong>de</strong> queo macaco <strong>de</strong> pau que sobe por <strong>um</strong> cor<strong>de</strong>l, do que o trenzinho <strong>de</strong> ferro com túneis eestações, do que o palhaço que gira sobre o calcanhar <strong>de</strong> pinho e tilinta soalhas eguizos <strong>de</strong> lata.— Estas observações não são originais, mas apesar disso são justas.É verda<strong>de</strong> que os petizes recebem com ânsias esses presentinhos <strong>de</strong>festas, e fazem a propósito <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> r<strong>um</strong>or. É o atrativo da novida<strong>de</strong>. É a pressa<strong>de</strong> ver e experimentar. É o prazer <strong>de</strong> dizer "meu". É a tentação <strong>de</strong> fazer inveja aosoutros pequenos. É, sobretudo, a mímica do <strong>de</strong>sejo, do alvoroço, da cobiça, doegoísmo apropriador, que os gran<strong>de</strong>s lhes têm ensinado e que os pequenos vãoexecutando, n<strong>um</strong>a adaptação mecânica do sentimento confuso e alvorecente aosrecortes do gesto distinto e expressivo.As crianças amam acima <strong>de</strong> tudo a espontaneida<strong>de</strong> da sua própriaimaginação, que os brinquedos, quanto mais complicados e perfeitos, maisembaraçam. Ou então preferem a complicação extrema e sempre nova das coisasvivas. Se por natureza são assim, <strong>de</strong>via <strong>de</strong>ixar-se obrar a natureza. Mas os adultosquerem o artifício, todos os gêneros <strong>de</strong> artifício, e impõem-os às crianças,perturbando-lhes o viço da curiosida<strong>de</strong> espontânea e da livre investigação. Por issomesmo, a ciência é o último luxo da h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong>, sendo o seu primeiro <strong>de</strong>sejo.A ROUPA E O GESTOGosto <strong>de</strong> viajar no último banco. Vai-se mais resguardado <strong>de</strong> maçantes.Po<strong>de</strong>-se inspecionar o carro inteiro, quase sem ser visto. Não se vêem caras.Evita-se o risco <strong>de</strong> pagar a passagem para os amigos que não o são, epo<strong>de</strong>-se fazer aos amigos que o são a surpresa <strong>de</strong> lha pagar, n<strong>um</strong>a traição <strong>de</strong>licada,pelas costas, — o que, como fineza, tem na sua in<strong>de</strong>pendência <strong>um</strong> especialíssimosabor. — Por fim, po<strong>de</strong>-se f<strong>um</strong>ar sem a preocupação <strong>de</strong> ser incômodo a senhoras,por que muito raramente vão senhoras no último banco e dá-se a coincidência <strong>de</strong>não haver outro <strong>de</strong>pois do último.Aliás, <strong>de</strong>ixo <strong>de</strong> f<strong>um</strong>ar perto <strong>de</strong> senhoras, não por <strong>um</strong>a particular <strong>de</strong>ferência,mas apenas para não me incomodar a mim mesmo. Saborear <strong>um</strong> cigarro é prazertão leve e tão fino, que o simples pensamento <strong>de</strong> que alguém no-lo possa estaramaldiçoando amarga os gorgomilos e embacia a transparência azulejante dasespirais.Apesar <strong>de</strong> preferir ordinariamente o último, fui hoje para o primeiro, e fiz todaa viagem voltado para o resto do carro. Não influiu nisto o fato <strong>de</strong> eu envergar o meunovo terno cinzento e <strong>de</strong> estrear <strong>um</strong>a comburente gravata <strong>de</strong> listras amarelas efiletes encarnados.14

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!