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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brtodas a mesma concepção aproximativa das coisas, <strong>de</strong>formante masagradavelmente fácil, ampla e satisfatória.A primeira prepara o viveiro das verda<strong>de</strong>s exatas e necessárias <strong>de</strong> amanhã;a segunda alarga o domínio das verda<strong>de</strong>s agradáveis e convencionais provisóriaspara uns, perpétuas para a maior parte.Instinto <strong>de</strong> saber, instinto <strong>de</strong> poesia. Dois irmãos inimigos, que não po<strong>de</strong>mviver <strong>um</strong> sem o outro.Posta <strong>de</strong> parte essa parlenda, o fato é que a resposta da rosa mais meenamorou <strong>de</strong>la. Enfiei-a na botoeira, apesar <strong>de</strong> já meio fanada. — Precisei, paratanto, <strong>de</strong> <strong>um</strong> pouco <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão e atrevimento, pois nunca uso flores comigo, nemmesmo frescas. Audácia <strong>de</strong> carneiro. Atrevimento <strong>de</strong> cágado.Instalado no bon<strong>de</strong>, semicerrados os olhos, e sentindo na face a carícia <strong>de</strong><strong>um</strong>a pétala pen<strong>de</strong>nte, instiguei a minha interessante companheira a falar ainda,antes que alg<strong>um</strong> golpe <strong>de</strong> vento ou alg<strong>um</strong> encontrão a <strong>de</strong>spojasse da sua voz feita<strong>de</strong> cor e perf<strong>um</strong>e. Não se fez <strong>de</strong> rogada."Não sabes, amigo? Tal como aqui me vês, sou filho do conúbio do homeme da natureza... Tanto <strong>de</strong>vo o ser ao solo, ao sol, ao ar, como ao espírito, à arte e àmão h<strong>um</strong>ana.Sou <strong>um</strong> produto da terra e da civilização: duplamente flor <strong>de</strong> cultura.Sou ao mesmo tempo a glória <strong>de</strong> Flora e a mais perfeita das flores artificiais.Tendo o viço hereditário das rosas selváticas e a aura h<strong>um</strong>ana das rosas <strong>de</strong> papel e<strong>de</strong> tecido, armadas por magras mãos <strong>de</strong> operárias tristes, mãos febris <strong>de</strong> moçasnamoradas.O homem faz-me, cheio <strong>de</strong> suas vaida<strong>de</strong>s, seus <strong>de</strong>sejos, suas ambições,seus sobejos <strong>de</strong> carinhos, seu saber, seu gosto amável, paciente e caprichoso.Assim, <strong>um</strong>a infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> forças diversas vêm-se coor<strong>de</strong>nando e vêm colaborando,através dos séculos, na seleção das minhas formas, dos meus tons e dos meusolores— florindo e reflorindo em mim.De mim, pois, apren<strong>de</strong>, homem tolo e ingrato! A olhar a tua h<strong>um</strong>anida<strong>de</strong> nãotanto na sombria confusão dos seus galhos e ramas, como na vária e fugitivapermanência das suas flores, ou no perpétuo esplendor das suas graças transitórias.Ama-a com todos os seus vícios e brutezas, com todos os seus primores epulcritu<strong>de</strong>s.Não há vícios, não há primores, há só o homem. O homem e nada mais. Ohomem in<strong>um</strong>erável, incomportável e in<strong>de</strong>finível. O homem que te ultrapassa noespaço e no tempo, e cujos últimos limites partem do centro da terra e vão per<strong>de</strong>r-senas constelações.Perdoa-lhe tudo, tudo. Perdoa-lhe simplesmente. Sem gestos e sem frases.Perdoa-lhe mesmo na cólera e na angústia. Reserva-lhe ao menos <strong>um</strong>a promessa<strong>de</strong> perdão no infinito, até para o que não possas, até para o que não <strong>de</strong>vas perdoar.Se tudo, nele, coopera na produção <strong>de</strong>stes milagres <strong>de</strong> melindroso eincorruptível prestigio!Milagres em que o fugitivo se confun<strong>de</strong> com o permanente, e o encanto <strong>de</strong><strong>um</strong>a hora é <strong>um</strong> sorriso dos séculos.Passam as catedrais, esfarelam-se os granitos e os bronzes, <strong>de</strong>sagregamseos impérios, e as nações dissolvem-se, mas eu permaneço na minha <strong>de</strong>liciosainsignificância, Como a última confidência <strong>de</strong> ternura e <strong>de</strong> beleza que as geraçõeslegam <strong>um</strong>as as outras através dos abismos do tempo.Sou a obra mais duradoura do homem. Não há ferrugem nem verme, nemguerras nem sinistros que me atinjam.46

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