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Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

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www.nead.unama.brBoa prosa, o Antônio Palhares. É curioso como há indivíduos inteligentes,perspícuos e engraçados, perdidos na multidão que não aparecem nas crônicasimpressas, nem nas volantes e sonantes da gente que se conhece. De repente,sur<strong>de</strong>-nos <strong>um</strong> da obscurida<strong>de</strong> e da in<strong>de</strong>terminação do vasto mundo que<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhamos e ignoramos, — e é <strong>um</strong> bicho <strong>de</strong> compreensivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> senso, <strong>de</strong>espírito! Palhares é assim.Conversei com ele hoje pela manhã, e nem sei dizer como me divertiu.Valeu por <strong>um</strong> livro novo que eu abrisse e folheasse, vendo as gravuras, o índice, ostítulos <strong>de</strong> alguns capítulos, alguns relances <strong>de</strong> páginas. Quanta novida<strong>de</strong>, quantafrescura, quanto inesperado, e também quanto sabor <strong>de</strong> sincerida<strong>de</strong> libérrima e<strong>de</strong>spreocupada, nos seus dizeres <strong>de</strong> homem sem galeria presente nem futura!Queixei-me a Palhares dos inconvenientes da notorieda<strong>de</strong>. Não por mim,que sou <strong>um</strong> obscuro chapado e contente, mas por <strong>um</strong> amigo meu, que é <strong>um</strong>aespécie <strong>de</strong> terça parte minha, o qual muito tem sofrido por via <strong>de</strong>sse flagelo. O rapaznão po<strong>de</strong> mais isolar-se, meter-se consigo, per<strong>de</strong>r-se na fecunda anonímiamultitudinária que lhe permitiria o <strong>de</strong>scanso, o recolhimento, a respiração livre, aremo<strong>de</strong>lação dos hábitos, a cura das feridas sempre abertas pela esfregaçãomundana: é <strong>um</strong> escravo aflito e amarfanhado das relações, das amiza<strong>de</strong>s, doscompromissos, das idéias que outros formaram a seu respeito, das solicitações edos estímulos que por isso lhe vêm <strong>de</strong> todos os lados; e então pa<strong>de</strong>ce, e geme, e<strong>de</strong>sespera, porque <strong>de</strong>sejaria romper com o seu passado, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser o homemfrívolo, o homem vento, o homem-inundação que tem sido, para ser <strong>um</strong> homemconcêntrico e dono <strong>de</strong> si.Palhares ouviu-me, ouviu-me, e, afinal, perguntou:— "Mas esse moço é <strong>de</strong>veras <strong>um</strong>a inteligência sagaz, ou é <strong>um</strong>a <strong>de</strong>ssasgran<strong>de</strong>s inteligências bobas que há por esse mundo?"— "Sagacíssima."— "Pois não parece. Seria tão fácil libertar-se, isolar-se!"— "É o que se afigura à primeira vista."— "Precisa dos outros, efetivamente, para viver?"— "Não; isso, não; tem a sua in<strong>de</strong>pendência material bem segura."— "Então, não compreendo. Por que não se retira?"— "Impossível. Relacionadíssimo. Cheio <strong>de</strong> laços, que não se dissolvemsenão quando novos laços os submergem: <strong>um</strong> homem que se procura, se aprecia,se quer, se disputa, se admira. Encantador. Como romper? Como ter a energia <strong>de</strong>quebrar brutalmente esses laços? Como repelir, quando se tem <strong>um</strong> coração brando,<strong>um</strong>a revoada <strong>de</strong> carinhos e solicitu<strong>de</strong>s que nos cerca e nos assalta?"— "Não compreendo. Para <strong>um</strong> homem se isolar, não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>movimentos bruscos, nem <strong>de</strong> fuga. Para fazer o vácuo em redor <strong>de</strong> si,gradualmente, docemente, não há senão isto: ser bom."— "Mas ele o é. E <strong>de</strong>pois, ser bom é mais <strong>um</strong> motivo para criar afetos e<strong>de</strong>dicações em redor <strong>de</strong> si."— "Espere. Distingo. Ser bom, <strong>de</strong> <strong>um</strong>a bonda<strong>de</strong> pe<strong>de</strong>stre e regular, <strong>de</strong> fato,é <strong>um</strong> meio <strong>de</strong> criar afetos e <strong>de</strong>dicações em redor <strong>de</strong> si. Não é <strong>de</strong>ssa bonda<strong>de</strong> práticae hábil que eu falo. Eu falo da bonda<strong>de</strong> íntima, profunda, plena e sossegada, queprocura o bem nas próprias raízes do pensamento e da vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma que opensamento e a vonta<strong>de</strong>, quando se manifestam, já se manifestam comoconseqüências exteriores, mortiças, frias, aguadas e, dir-se-ia, indiferentes <strong>de</strong> <strong>um</strong>agran<strong>de</strong> realida<strong>de</strong> latente e central que não cura <strong>de</strong> exteriorida<strong>de</strong>s. Compreen<strong>de</strong>u?"30

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