www.nead.unama.brHá <strong>um</strong> conto <strong>de</strong> Gautier O Ninho <strong>de</strong> Rouxinol, on<strong>de</strong> figuram <strong>um</strong>as jovensestranhas, que unicamente comunicam com o mundo por meio dos sons. Todo ouniverso, para elas, se traduz em música, e só em música elas traduzem o quesentem e pensam.Realmente, não há nada que não se possa resolver em música, e é lícitoconceber-se <strong>um</strong> mundo em que fosse essa a linguagem universal das coisas e dasalmas. Sem irmos, porém, às alturas da imaginação, é fácil reconhecer que tudotrivialmente, em redor <strong>de</strong> nós, se manifesta por sonorida<strong>de</strong>s, ruídos e silêncios.Sabe disso toda a gente que dispõe da integrida<strong>de</strong> do seu aparelho auditivo.O que pouca gente sabe é como se po<strong>de</strong>m obter impressões novas, surpreen<strong>de</strong>ntese divertidas das coisas e das almas que nos ro<strong>de</strong>iam, — apenas aplicando o ouvidoà sondagem e interpretação dos sons.Nós vivemos pelos olhos. A estes confiamos quase exclusivamente a missão<strong>de</strong> observadores e testemunhas. O sentido auditivo reduzimo-lo quase a <strong>um</strong> simplespapel <strong>de</strong> serviçal obediente às <strong>de</strong>terminações da vonta<strong>de</strong>. Vemos tudo, mas sóouvimos o que queremos. É incrível a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que dispomos para eliminar asimpressões do ouvido, no meio do r<strong>um</strong>or infernal das ruas, do bruaá <strong>de</strong> <strong>um</strong> caféregurgitante <strong>de</strong> palradores.Ainda hei <strong>de</strong> escrever <strong>um</strong> artigo sério para <strong>um</strong> jornal sério, <strong>um</strong> artigocientífico, cheio <strong>de</strong> termos técnicos como <strong>um</strong> queijo cheio <strong>de</strong> saltões, a propugnar aeducação e a aplicação mais racionais das faculda<strong>de</strong>s auditivas. Quantos afluxos <strong>de</strong>sensações sistematicamente rejeitados, e que po<strong>de</strong>riam ser tão úteis á inteligência,e úteis à própria <strong>de</strong>fesa do indivíduo!E <strong>de</strong>pois, se a moda pegasse, se começássemos todos a fazer <strong>um</strong> uso maisconsciente, mais constante e mais largo <strong>de</strong>sse aparelho receptor, seria impossívelque <strong>um</strong> gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> cidadãos não se insurgissem afinal, indignados,exigentes, furiosos, contra a pan<strong>de</strong>mônica, vertiginosa e martirizante barulheira dacida<strong>de</strong>, contra este caos sonoro que nos engole e nos aniquila.PALAVRAS CRUZADASVeio à minha frente, ontem à tar<strong>de</strong>, <strong>um</strong> passageiro engolfado n<strong>um</strong> sobretudoenorme e n<strong>um</strong> largo jogo <strong>de</strong> palavras cruzadas. Espiei <strong>um</strong> pouco por cima, o homempercebeu o meu movimento, voltou-se, reconheci-o: era o meu ex-vizinho EulálioPeixoto, professor <strong>de</strong> Matemática e <strong>de</strong> conformida<strong>de</strong>.— "Pois até você, Peixoto!"— "É para você ver, Felício. Mas quem po<strong>de</strong> resistir! Todo o mundo vive àsvoltas com isto. Ainda hoje vi <strong>um</strong>a senhora, com <strong>um</strong> livro aberto, no bon<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ntrodo livro ia <strong>um</strong> retalho <strong>de</strong> papel — era o jogo. Tenho <strong>um</strong> conhecido que traz o seu<strong>de</strong>ntro do chapéu. Outros o carregam na carteira e em qualquer momento <strong>de</strong><strong>de</strong>scanso, no bon<strong>de</strong>, no café, na esquina, lá se põem a <strong>de</strong>cifrar. Curioso! A que éque você atribui esta mania?"— "Gosto <strong>de</strong> quebrar a cabeça".— "Está enganado. Isso é o que menos influi no caso. Quantida<strong>de</strong><strong>de</strong>sprezível. A vida toda, toda, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as gran<strong>de</strong>s até às ínfimas coisas, é <strong>um</strong> tecido<strong>de</strong> quebra-cabeças.""Dirá você que são problemas repulsivos — uns tenebrosos, como a própriavida em si, outros atenazantes, como o do pão que se há <strong>de</strong> comer no mês que vem.52
www.nead.unama.brPerfeitamente! Mas, nesse caso, haveria <strong>um</strong>a infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passatempos <strong>de</strong>stemesmo gênero à nossa disposição — os problemas <strong>de</strong> aritmética e álgebra, oxadrez, o soneto, as ações h<strong>um</strong>anas, o acróstico... veja você, o acróstico tãoaparentado com isto, e tão mais interessante!"Não, o prazer do entretenimento é o que menos influi nesta epi<strong>de</strong>mia. Eleexiste, sem dúvida, no fundo <strong>de</strong> todos estes exercícios, mas neutro, indiferente àoscilação e varieda<strong>de</strong> das aplicações."— "Mas, então, Peixoto, on<strong>de</strong> é que está o busílis?"— Eis aí o gran<strong>de</strong> problema das palavras cruzadas! Esse é que eu gostaria<strong>de</strong> ver discutido. Para mim, provisoriamente, o segredo só tem <strong>um</strong>a explicação, <strong>um</strong>asó: contágio mental.— "Mas como explicará você o contágio, por sua vez?"— É outra questão. O contágio existe, é evi<strong>de</strong>nte, manifesta-se por milformas. Sempre existiu. A moda nunca foi outra coisa que <strong>um</strong> nome diverso <strong>de</strong>ssefenômeno.O joguinho apareceu <strong>um</strong> dia, lá na América do Norte, como <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses mildivertimentos com que os jornais engabelam o público. Ou porque tivesse <strong>um</strong>afeição mais atraente, ou porque o jornal que o inventou fosse <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação,ou porque se anunciassem prêmios convidativos, a coisa teve êxito, <strong>de</strong>spertou osêmulos e os imitadores, — e eis a epi<strong>de</strong>mia armada, a alargar-se por toda <strong>um</strong>aregião, por todo <strong>um</strong> país, transpondo os mares, saltando em portos distantes,explodindo em todos gran<strong>de</strong>s centros, voando a todos os recantos do mundo."É a própria, a propriíssima curva <strong>de</strong> todas as epi<strong>de</strong>mias — explicou Peixotocontinuando. — Há <strong>um</strong> primeiro foco, lento, hesitante, dúbio. Repetem-se os casos,nas vizinhanças. E, à medida que se repetem, a intensida<strong>de</strong> sobe. Há <strong>um</strong> momento<strong>de</strong> máxima intensida<strong>de</strong> e máxima expansão. A epi<strong>de</strong>mia alastra-se."Depois, vão-se extinguindo aos poucos os mil focos espalhados, bambeia afúria do mal, os casos voltam a ser mais brandos, mais incertos, e tudo acaba como<strong>um</strong> incêndio rápido que lambesse e queimasse todas as folhas e gravetos secosdisseminados por <strong>um</strong> mato ver<strong>de</strong>, morrendo afinal aos pedaços, por falta <strong>de</strong>alimento e <strong>de</strong> vento."Peixoto fez-me ver em seguida como o contágio mental vai alargando, emtodas as suas formas, o seu campo <strong>de</strong> expansão.Em outros tempos que não vão tão longe, cada país era <strong>um</strong> campo restrito<strong>de</strong> ressonâncias, e <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses campos havia outros, igualmentequase fechados — as classes, as categorias sociais. Um sapateiro da Ida<strong>de</strong> Médiaestava muito mais longe <strong>de</strong> <strong>um</strong> magistrado, na mesma cida<strong>de</strong>, do que hoje <strong>um</strong>fazen<strong>de</strong>iro <strong>de</strong> Mato Grosso se acha <strong>de</strong> <strong>um</strong> professor <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>lberg.As modas, outrora, levavam muito mais tempo a ir <strong>de</strong> Paris à província, doque, hoje, <strong>de</strong> Nova York ao Extremo Oriente. Demais, propagavam-se em linhahorizontal — <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certas classes; hoje propagam-se tanto no sentido horizontalcomo no vertical — entre as gentes colocadas em posição semelhante e entre asque ocupam qualquer outra posição na escada ascen<strong>de</strong>nte ou <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte.O contágio, hoje, envolve tudo. Tudo po<strong>de</strong> transformar-se repentinamenteem mania coletiva. Outrora, havia epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> misticismo, <strong>de</strong> guerra ou <strong>de</strong> suicídiolimitadas a certas regiões. Hoje, toda a vida universal ten<strong>de</strong> a ser <strong>um</strong>a sucessão <strong>de</strong>epi<strong>de</strong>mias. Há epi<strong>de</strong>mias universais <strong>de</strong> dança, epi<strong>de</strong>mias esportivas, epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong>53