12.07.2015 Views

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

Memorial de um Passageiro de Bonde - Unama

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

www.nead.unama.brO mo<strong>de</strong>sto verda<strong>de</strong>iro não é o que se envergonha das suas vaida<strong>de</strong>s, éaquele que lhes dá expansão, reconhecendo-as, porém com bonomia como tais,sem lhes emprestar outros nomes, nem estar com ro<strong>de</strong>ios e mentirolas. Somente,possuir a clara consciência <strong>de</strong>las é automaticamente reduzi-las. Dar-lhes expansão,assim, é rarefazê-las. É torná-las exteriores, superficiais e passageiras, como <strong>um</strong>suor, como escamazinhas eruptivas da pele, como secreções, coisas que aeconomia orgânica <strong>de</strong> <strong>um</strong> corpo são, normalmente engendra e rejeita. Uma limpeza,<strong>um</strong>a "catársis", <strong>um</strong> arejamento, <strong>um</strong> alívio.Gozar as próprias vaida<strong>de</strong>s com sincera e inocente imprudência é o melhormeio <strong>de</strong> lhes sentir a vacuida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> as tornar inócuas, <strong>de</strong> acabar por <strong>de</strong>sprezá-las eperdê-las. Permitir-lhes que levantem o vôo é <strong>de</strong>ixar que se vão embora.Alegrar-se alguém abertamente com os seus pequenos triunfos é <strong>um</strong> modoamável <strong>de</strong> se confessar bem gratificado. Saudável fusão <strong>de</strong> bonomia, conformida<strong>de</strong>e <strong>de</strong>sprendimento: modéstia, enfim; a boa, a legítima, a pura. A única.Todo o mal da vaida<strong>de</strong> está nos sentimentos e nos cálculos que se lheajuntam, que a mascaram, a pervertem, a envenenam, a entranham na alma,hipertrofiando-a, dando-lhe por vezes a figura hidrópica <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s austeras, <strong>de</strong>ssasque merecem lápi<strong>de</strong>s em latim. — É assim que se formam esses veneráveiscavalheiros amargos que santamente o<strong>de</strong>iam todas as manifestações brilhantes ealadas da vida, esses gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sambiciosos que se vingam em todo o mundo <strong>de</strong>não po<strong>de</strong>rem confessar ambições, esses perpétuos caluniadores que enxameiam ez<strong>um</strong>bem, como varejeiras pesadas e tontas <strong>de</strong> sânie, em redor <strong>de</strong> cada <strong>de</strong>sgraçadocujo nome não ficou soterrado como o <strong>de</strong>les na própria impotência.Nietzsche teve razão — o que alg<strong>um</strong>as vezes lhe acontece por maneirafulmínea — quando disse que as paixões, em seu estado puro, são boas. Apenashaverá nisso exagero. São boas porque são naturais, porque são o próprio homem.O que as torna más, corrompendo-as envilecendo-as, é a hipocrisia, que asdissimula intensificando-as no entanto; que as enfeita por fora, como serpentes, masdá-lhes o veneno e a insídia; que as oculta e as <strong>de</strong>svia <strong>de</strong> seus fins imediatos, clarose geralmente saudáveis, para as pôr ao serviço <strong>de</strong> afetos nobres e <strong>de</strong> longos,tenazes e engenhosos ressentimentos.Menos ousado, Augusto Comte apenas reconhece à vaida<strong>de</strong> — <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>aprovação — direitos <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> na sua moral sociocrática; mas...... Mas que Nietzsche! Que Comte! Que Fulano ou Beltrano! Antes <strong>de</strong> todoseles, o Eclesiastes havia proclamado, para todo o tempo, que tudo é vaida<strong>de</strong> nestemundo.Dessa e <strong>de</strong> outras afirmações se tirou apressadamente a ilação <strong>de</strong> que ocristianismo nascente votava <strong>um</strong> ódio entranhando à vida. Mas ele não fazia senãopôr o <strong>de</strong>do na latejante verda<strong>de</strong>, na dolorosa e re<strong>de</strong>ntora verda<strong>de</strong>. Era <strong>um</strong>alibertação e <strong>um</strong> alívio que ele trazia: tornaram-no <strong>um</strong> torvo con<strong>de</strong>nador da vida. Era<strong>um</strong>a reação contra o formalismo, a pedantaria, a artificiosida<strong>de</strong> hipócrita do judaísmoliteralizante e manhoso, <strong>um</strong>a revolta do espírito, <strong>um</strong>a insurreição <strong>de</strong> veracida<strong>de</strong>heróica, alegre triunfal da nossa miséria".Sim, tudo é vaida<strong>de</strong>; sim, o homem é mau; sim, somos o verme da terra.Pois, sejamos vaidosos, sejamos maus, sejamos vermes, francamente, <strong>de</strong> cara<strong>de</strong>scoberta, <strong>de</strong> alma leve, com a lavada e impu<strong>de</strong>nte sincerida<strong>de</strong> da flor e da fera, àluz do Sol e à face <strong>de</strong> Deus, na perpétua h<strong>um</strong>ilda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>um</strong>a confissão total etranqüila! Não queiramos converter velhacamente a larga realida<strong>de</strong> com<strong>um</strong> da nossapobreza em falsas opulências <strong>de</strong> exceção. Quem se abaixa é que será exaltado: sóquem se reconhece tal qual é, ou tal qual somos, achará em si mesmo a verda<strong>de</strong>ira42

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!