ComentárioTiagoBartolomeuCostaUm movimentoque seja seuNo início a cena está vazia. Os intérpretes <strong>de</strong>morarão a chegar aopalco, vindos da plateia, on<strong>de</strong> estavam sentados, iguais aosespectadores. Despirão as roupas casuais que trazem eembrulhar-se-ão em puídos cobertores laranja. E ficarão por ali, a<strong>de</strong>ambular, à <strong>espera</strong> que algo aconteça. À <strong>espera</strong> que seja não otempo coreográfico, mas o tempo emocional a ditar as regras, as frases, osmovimentos e a estrutura.É <strong>um</strong> processo <strong>de</strong> permanente início aquele que se estabelece em “Out ofcontext – for Pina”, peça que <strong>Alain</strong> <strong>Platel</strong> assinou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse mon<strong>um</strong>entoque foi “Pitié!”, criado a partir da obra <strong>de</strong> Bach, “Paixão segundo São Mateus”(CCB e Teatro Nacional São João, 2009). Aos bailarinos já não lhes é pedidoque se esgotem em cada movimento, como aconteceu em outras peças <strong>de</strong><strong>Platel</strong>. O prazer, mesmo que físico, tem que ser interior antes <strong>de</strong> ser exterior.E é por isso que esta é <strong>um</strong>a peça on<strong>de</strong> não existe lógica pré-<strong>de</strong>terminista quecondicione o significado do que fazem, promovendo, antes, <strong>um</strong>a intençãoexploratória do potencial do movimento sem objectivos.A peça não é tanto <strong>um</strong>a homenagem a Pina Bausch, que morreu no Verão<strong>de</strong> 2009, no sentido <strong>de</strong> referência directa e explícita, como o é enquantoreconhecimento do percurso aberto pela coreógrafa. Percebe-se isso pelomodo como os bailarinos encontram <strong>um</strong> espaço individual <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>um</strong>aestrutura que os agrega. E ainda pela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalharem essaindividualida<strong>de</strong> não apenas no plano físico, mas no plano emocional.A relação <strong>de</strong> proximida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ntificação que Pina procurava instituir nassuas peças, eventualmente mais evi<strong>de</strong>nte na série criada a partir <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s –on<strong>de</strong> se incluiu Lisboa em “Masurca Fogo” (1998) –, está aqui presente noconvite explícito à observação e à partilha. À observação dos corpos que selibertam nas linhas <strong>de</strong> <strong>um</strong> movimento também ele mais <strong>de</strong>sprendido, maisfísico sem ser gutural, como muitas vezes o foi. À partilha <strong>de</strong> referências,visuais, coreográficas e musicais, iniciadoras <strong>de</strong> <strong>um</strong> processo <strong>de</strong> construçãoreferencial com<strong>um</strong>.<strong>Alain</strong> <strong>Platel</strong> <strong>de</strong>senha linhas que se emaranham a partir dos percursos <strong>de</strong>cada bailarino, <strong>de</strong>volvendo-lhes o que são notórias distinções físicas,diferentes modos <strong>de</strong> intervir e <strong>de</strong> agir perante o movimento. Ass<strong>um</strong>indo essecomo o único material passível <strong>de</strong> ser trabalhado, o coreógrafo belgaabandona as arqui-estruturas que estiveram na base <strong>de</strong> trabalhos anteriorespara apresentar <strong>um</strong>a peça que não é menos política nem menos implicada doque as anteriores. Talvez o seja, até, mais do que as outras.Ao reclamar o primado do movimento como o ponto <strong>de</strong> convergência entreo seu olhar, a funcionalida<strong>de</strong> do intérprete face ao movimento e o significadoque o espectador lhe atribui, <strong>Platel</strong> liberta a peçaA peça vive <strong>de</strong>sseimpon<strong>de</strong>rável, <strong>de</strong>sseambicioso <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>nos fazer acreditarna surpresa<strong>de</strong> qualquer intenção moralista ou <strong>de</strong>finitiva. Eliberta-se também, enquanto autor, <strong>de</strong> <strong>um</strong> peso<strong>de</strong>scritivo que sempre ten<strong>de</strong>u a carregar as suaspeças <strong>de</strong> <strong>um</strong>a “feérie” insana. Essa <strong>de</strong>cisão, maisou menos intuitiva – ou instintiva – ou mais o<strong>um</strong>enos estratégica reclama para o seu discurso odireito à reconstrução. Ou seja: evi<strong>de</strong>ncia o <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> não dar as fórmulas por garantidas.Há, em todo este processo, <strong>um</strong>a dimensão <strong>de</strong>clarificação do próprio significado primário do gesto, obe<strong>de</strong>cendo a estruturaa <strong>um</strong> apaziguamento em relação à suficiência do movimento. Uma suficiênciaque advém <strong>de</strong> <strong>um</strong>a distinção entre o essencial e o acessório, entre asdiferentes camadas <strong>de</strong> leitura que <strong>um</strong> movimento po<strong>de</strong> conter, entre osespaços em branco, propositadamente por preencher, entre <strong>um</strong>a sequência eoutra. Em s<strong>um</strong>a, <strong>um</strong> <strong>de</strong>sejo intrínseco <strong>de</strong> habitar a estrutura em vez <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixara estrutura cons<strong>um</strong>ir o movimento. Será por isso que, ao longo doespectáculo, vamos encontrar zonas que po<strong>de</strong>ríamos apelidar <strong>de</strong> “terra <strong>de</strong>ninguém”, on<strong>de</strong> os bailarinos po<strong>de</strong>m explorar o <strong>de</strong>sequilíbrio sugerido pelaspermanentes ac<strong>um</strong>ulações <strong>de</strong> personagem e realida<strong>de</strong>. Ou ainda quando é aprópria estrutura da peça que se permite <strong>um</strong>a invasão/contaminação poroutros elementos, exteriores, que ocupam a cena e alteram o centro <strong>de</strong> acção.Essa introdução, sempre diferente em cada apresentação, não apenasvalida a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> permanente início, como força <strong>um</strong>a <strong>de</strong>fesa do que se passaem palco naquele momento.E “Out of context - for Pina” vive <strong>de</strong>sse impon<strong>de</strong>rável, <strong>de</strong>sse ambicioso<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> nos fazer acreditar na surpresa. Quando os bailarinos interpretam– na sequência-chave da peça – <strong>um</strong> conjunto <strong>de</strong> canções pop, como se fossempoemas que carecem <strong>de</strong> <strong>um</strong>a voz, ou mensagens importantes que nãoquerem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer passar, fazem-no, <strong>de</strong> facto, ass<strong>um</strong>indo não apenas olado paródico, mas o verda<strong>de</strong>iro dramatismo da universalização e dageneralização vazia dos discursos políticos, simbólicos ou amorosos.É pela reclamação <strong>de</strong> <strong>um</strong> outro espaço, não necessariamente <strong>novo</strong> nemoriginal, mas <strong>um</strong> que possam chamar seu, que este espectáculo batalha. Amemória <strong>de</strong> Pina estará presente aí, mais como inspiração do que comoreverência, nesse inconformismo que funciona como atrito no interior damáquina, pesada e po<strong>de</strong>rosa, mas necessariamente mutante.Cada <strong>um</strong> dos bailarinos, <strong>de</strong>senvolvendo <strong>um</strong>a gestualida<strong>de</strong> que, por vezes,se vê espelhada n<strong>um</strong> outro corpo, outras vezes contrariada, muitas vezesampliada, contribui para esse território imaginário on<strong>de</strong> a peça po<strong>de</strong> existir.O convite que é lançado assenta n<strong>um</strong> princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação que é, n<strong>um</strong>aprimeira fase, lúdico, <strong>de</strong>pois se torna mais introspectivo, logo <strong>de</strong>poisespeculativo, e alg<strong>um</strong>as vezes errante. Mas sempre como <strong>um</strong> balão a precisarpermanentemente <strong>de</strong> ser soprado, expectante. E será, talvez, por isso, quecada convite feito em palco não é artificial, não é dramatúrgico, não éficcional. É <strong>um</strong> convite para que, juntos, se possa começar.No fim, como se tudo o que aconteceu não tivesse passado <strong>de</strong> <strong>um</strong>ahipótese, o palco volta a ficar vazio.“Um dosgran<strong>de</strong>sobjectivosda dança éconseguir serseambicioso eencontrar <strong>um</strong>modo diferente<strong>de</strong> comunicar.Era isso queaconteciaentre mim ePina. Nuncafalámos <strong>de</strong>dança ou <strong>de</strong>arte no geral.Falávamos <strong>de</strong>outras coisas”PEDRO ELIASPorque nem sempre éevi<strong>de</strong>nte em que momentose pe<strong>de</strong> ao espectador queacompanhe a viagem...Há <strong>um</strong> momento na peça em que RomeuRuna pergunta se alguém querdançar com ele. A primeira vez queo tentámos foi em Hamburgo, duranteo Tanzkongress [congresso mundial<strong>de</strong> dança que acontece <strong>de</strong> dois emdois anos]. Havia mil pessoas a assistir,todas elas a viver da dança, fossea escrever, a coreografar, a pensar oua dançar. E, perante essa simples pergunta,ninguém veio ter com ele. Issofoi chocante, mesmo para os bailarinos.Ali estavam eles, vivos, em frentea outras pessoas que pugnam por<strong>um</strong>a dança também ela viva, e quandoalguém lhes perguntou, ninguémapareceu. As pessoas com quem falei[noutras apresentações] e que aceitaramir ao palco disseram que o faziamporque não aguentavam queninguém fizesse nada. Em Bruxelashouve <strong>um</strong> espectador que tirou a roupa,ficando igual aos intérpretes.Isso não se po<strong>de</strong> controlar.Não, nunca se sabe. É <strong>um</strong> momentomuito frágil. Mas se ninguém vier, aquestão fica, e fica também a culpa<strong>de</strong> ninguém ir.A peça está cheia <strong>de</strong> momentos<strong>de</strong>sses, quase catárticos...... e a catarse nunca chega.Pois não, mas isso não impe<strong>de</strong>que existam zonas que vivem<strong>de</strong> <strong>um</strong>a relação no presentee, por isso, irrepetível com asexpectativas do espectador,<strong>de</strong>nunciando assim aincompletu<strong>de</strong> do movimento.Assim sendo, quando acha quePina Bauschmorreu noverão <strong>de</strong> 2009.<strong>Alain</strong> <strong>Platel</strong>não quis fazerlhe<strong>um</strong>ahomenagem,mas tê-lacomoreferência10 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon
po<strong>de</strong> dizer que <strong>um</strong>a peça estápronta?Neste caso, <strong>de</strong>z dias antes da estreia.Mas, às vezes, só quatro ou cinco diasantes. Quando estreia é porque estáperto do fim, e só sobram <strong>de</strong>talhes.E, <strong>de</strong>pois da estreia, não mudo as coisas.Não vejo que <strong>um</strong>a peça possamudar radicalmente <strong>de</strong>pois da estreia.Mas muda muito em termos <strong>de</strong>presença ao longo das apresentações.E isso não se po<strong>de</strong> prever completamente.E lida como com essaincompletu<strong>de</strong>?Esta peça toca em zonas muito profundasque, na altura da estreia, nãoo sentimos. Hoje, quando olho paraela, percebo que sou responsável por“isto”, sou consciente do que fiz. Maso modo como ela se tornou <strong>um</strong>a entida<strong>de</strong>viva, não sei qual foi.Descobre coisas no seu trabalhoquando o vê?Sim, pelo modo como as pessoas falam<strong>de</strong>le. Tanto interna como externamente.Tenho a minha própriafantasia quando vejo o espectáculo,vejo o que os bailarinos fazem, massó percebo o que querem dizer atravésdo efeito que as pessoas dizemque teve nelas. Por isso, po<strong>de</strong> ser interessanteler, por vezes, sobre o quese fez. Nem sempre, mas às vezes.Ainda se po<strong>de</strong> surpreen<strong>de</strong>r peloque escrevem e dizem sobre oque não tinha pensado fazer ounão tinha previsto?Claro. Durante os ensaios a minhamãe, que tem 80 anos, veio ver a peça.Estávamos a <strong>um</strong> mês da estreia. Eestávamos ainda a trabalhar a paisagemsonora, quando o microfone caiue ouvimos <strong>um</strong> baque, seguido <strong>de</strong> <strong>um</strong>“tic-tic”, e ela disse que se lembrava<strong>de</strong> sons <strong>de</strong> guerra que ouvia durantea noite. Isso fez-me olhar para aquelemomento <strong>de</strong> modo diferente. Eu chamo-lhe“o efeito Iraque”. Algo muitodistante no <strong>de</strong>serto on<strong>de</strong> há <strong>um</strong>aguerra a <strong>de</strong>correr. Era só <strong>um</strong> som <strong>de</strong>que eu gostava e agora tinha <strong>um</strong> significado.Isso foi <strong>um</strong>a surpresa.Mas a peça está cheia <strong>de</strong>zonas <strong>de</strong>ssas, on<strong>de</strong> é ainterpretação do espectadorque activa os sentidos domovimento.FRANS BROODEu gosto muito do modo como a peçacomeça, e os bailarinos também, masera a sequência que mais me assustava.Não tinha <strong>um</strong>a ligação com ela,era muito severo, não me pareciabem. Não sei o que a faz funcionar,mas há <strong>um</strong>a forma muito fria <strong>de</strong> seconstruir, que não cabe em nada doque fiz, nem se compromete com oprazer que se po<strong>de</strong> ter, ou dar, no início<strong>de</strong> <strong>um</strong>a peça.Porque instala <strong>um</strong>a ari<strong>de</strong>z e<strong>um</strong>a frieza no movimento queo vai obrigar a <strong>um</strong>a justificaçãopela acção ao invés <strong>de</strong> seguir<strong>um</strong> esquema formal <strong>de</strong>narrativida<strong>de</strong>?Sim, é <strong>um</strong> movimento muito frio o<strong>de</strong>sta peça. Isso, e o lado técnico,preocuparam-me. O que procureiconstruir foi <strong>um</strong>a paisagem feita apartir dos movimentos <strong>de</strong> cada intérprete,on<strong>de</strong> se produzissem encontros.Cada movimento tem a sua história,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> quem o faz. Nãoé transmissível, mesmo que em certosmomentos [os bailarinos] possam estara fazer a mesma frase.Ou possam, em momentosmusicais distintos, uns maisclássicos, outros mais pop,reagir da mesma maneiraporque, afinal, são o mesmocorpo.Exactamente. Eu não mo<strong>de</strong>lo aquelescorpos. Dou-lhes liberda<strong>de</strong> para exploraremas i<strong>de</strong>ias, i<strong>de</strong>ias que nemsempre são precisas. Vendo-os vou<strong>de</strong>scobrindo mais e mais. É isso quegostava que acontecesse a quem vê apeça. Não sei se estamos sempre certosdo lugar que cada <strong>um</strong> vai ocupar.Há pessoas com as quais se po<strong>de</strong> irmuito longe e outras não. Alguns po<strong>de</strong>mdar mais que outros, porque têminspiração ilimitada, e outros têm <strong>um</strong>outro tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta e exploração.Como escolhe os bailarinos?É frequente as pessoas escreveremme,como aconteceu com RomeuRuna. Mas a maioria das pessoas nestapeça conheci-as através <strong>de</strong> audições,que também não são a melhorforma <strong>de</strong> conhecer pessoas.Mas não procura <strong>um</strong>a coisaespecífica?Têm que ser boas pessoas, simpáticase que não gostam <strong>de</strong> confronto. Têmque ser muito bonitas em palco, etêm que dançar, o que é raro <strong>de</strong> encontrar,especialmente em bailarinoscontemporâneos. As pessoas queremfalar sobre isso, não querem dançar.Eu gosto <strong>de</strong> <strong>um</strong>a certa timi<strong>de</strong>z, <strong>de</strong><strong>um</strong>a certa reserva. Isto combinadocom a alegria criada pelo movimentoé a comunicação perfeita. Já trabalheicom pessoas que gostavam <strong>de</strong> conflitose já não consigo. Há intérpretesque conseguem encontrar inspiraçãoem conflitos, isso não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> meimpressionar, mas entristece-me.Descobri que ser simpático é muitocompensador porque torna toda aatmosfera mais doce, calma e leve.Tenho bailarinos que são muito provocadores,mas <strong>um</strong>a coisa não contradiza outra, porque é feito comamor, porque querem levar toda agente para a frente, e não iniciar <strong>um</strong>abatalha.Desliga-se das peças que faz?Não, é muito difícil. É como lhe dizia:às vezes surpreendo-me com o quefiz. Pergunto-me como cheguei ali.Mas é verda<strong>de</strong> que não as acompanhoem todas as <strong>de</strong>slocações. E mesmoque possa ver alg<strong>um</strong>as coisas erradas,sei que os bailarinos são capazes <strong>de</strong>resolver o problema. Afinal, são elesque ali estão, mesmo quando é muitoaborrecido fazer <strong>um</strong>a peça cinquentaou cem vezes. Quando estou comeles, é muito divertido estarmos juntos.Espero que não pareça que osestou a controlar.MGMT1ª PARTE SMITH WESTERNS18 DEZ CAMPO PEQUENO23 MARÇOCOLISEU LISBOANESTE NATAL TODOS VÃO ACHARO SEU PRESENTE UM ESPECTÁCULOBILHETES: FNAC, WORTEN, CTT, EL CORTE INGLÉS, MEDIA MARKT, AGÊNCIA ABEP,SALAS DE ESPECTÁCULOS, TICKETLINE 707 234 234 | WWW.TICKETLINE.PT | M/6Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 11