seu meio <strong>de</strong> expressão no cinema,a plataforma i<strong>de</strong>al para criar a sua projecçãoda realida<strong>de</strong>.Dentro <strong>de</strong>ssa matriz, cria, durantea década <strong>de</strong> 50, filmes cujos contextossociais não estarão longe dos da durarealida<strong>de</strong> italiana, em que a sua tocantecapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>espera</strong>nça e revalidaçãoespiritual perante as dificulda<strong>de</strong>saproximam-no <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vertentecatólica do movimento. Contudo, seráainda neles que Fellini começará aser contestado como <strong>um</strong> dissi<strong>de</strong>nte eacusado, nas palavras do arg<strong>um</strong>entistae teórico Cesare Zavattini (n<strong>um</strong> testemunhopresente na exposição), <strong>de</strong><strong>de</strong>struir o neo-realismo ao abdicar <strong>de</strong>qualquer análise política em “A Estrada”(1954), obra-prima que revela oenorme talento cómico da sua mulher,Giuletta Masina, n<strong>um</strong> filme focado nas<strong>de</strong>sventuras <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vertente pobre eru<strong>de</strong> do espectáculo <strong>de</strong> rua. “Existetoda <strong>um</strong>a ambiguida<strong>de</strong> no cinema <strong>de</strong>Fellini”, diz-nos Sam Stourdzé, “alguémformado na escola do neo-realismoe que trabalhará durante <strong>de</strong>zanos com todas as suas figuras. Maspor fim, acabará por guardar <strong>um</strong>a relaçãoambígua com a realida<strong>de</strong>.”O interesse <strong>de</strong> Fellini, mais do quen<strong>um</strong> mero retrato <strong>de</strong> <strong>um</strong>a vivêncialigada a <strong>um</strong> contexto histórico e político,estará no fascínio do olhar h<strong>um</strong>anopelas formas <strong>de</strong> celebração doprazer e do entretenimento, tanto nosseus espectáculos como na recriaçãomediática <strong>de</strong> imagens para o olharpúblico — algo logo anunciado em “OSheik Branco” (1952), o seu primeirofilme (a história <strong>de</strong> <strong>um</strong>a jovem perdidaem Roma que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> conhecer arealida<strong>de</strong> por trás da sua estrela preferida),e que atinge o seu ponto altoem “A Doce Vida” (1960).Para Stourdzé, Fellini surge nessefilme como “o observador privilegiadodo período da vida romana entre1950 e 1960, em que as maiores ve<strong>de</strong>tasmundiais <strong>de</strong> cinema vivem emRoma e os fotógrafos vêm fotografálasn<strong>um</strong> ambiente <strong>de</strong> <strong>de</strong>boche e festapermanente.” Através da imprensada época apresentada na exposição,vemos que vários episódios do filmesão retirados da realida<strong>de</strong> romana: opasseio <strong>de</strong> Jesus-Cristo <strong>de</strong> helicópterosobre a cida<strong>de</strong>, <strong>um</strong>a sessão fotográfica<strong>de</strong> Anita Ekberg na Fonte <strong>de</strong> Trevi,o polémico striptease <strong>de</strong> <strong>um</strong>a actrizno bar “Rugantino”, ou os casos <strong>de</strong>aparições milagrosas nos arredoresda cida<strong>de</strong>. N<strong>um</strong>a das cenas mais marcantes,Fellini reproduz a coberturatelevisiva <strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>sses falsos milagres,o retrato da agitação e do circomediático <strong>de</strong> <strong>um</strong>a imagem que secomprova inexistente. O realizadormarca, então, o absurdo do fascínioh<strong>um</strong>ano por ilusões fictícias, validadaspor <strong>um</strong>a plataforma mediáticaque <strong>de</strong>fine, no seu vazio, a <strong>nossa</strong> percepçãoda realida<strong>de</strong>.Para Stourdzé, “Fellini alimenta-sedirectamente da realida<strong>de</strong> para criaras suas personagens e as cenas dosfilmes, sendo que a sua criação acabapor ultrapassar a realida<strong>de</strong> para <strong>de</strong>poisalimentá-la <strong>de</strong> <strong>novo</strong>.”Um caso paradigmático do retornodo espectáculo felliniano sobre a vidaé a adopção do termo “paparazzi”.“No caso dos ‘paparazzi’, foi Fellinique os colocou no filme com esse nomee que <strong>de</strong>pois se adoptou na realida<strong>de</strong>.É <strong>um</strong> mecanismo <strong>de</strong> vai-e-vementre a realida<strong>de</strong> e a sua criação.”O interesse pela agressivida<strong>de</strong> dos“paparazzi” como centro <strong>de</strong> <strong>um</strong>a indústria<strong>de</strong> ilusões revelou-se tambémno interesse pela sua estética. “FelliniPara ele, a culturapopular é <strong>um</strong>a fonte<strong>de</strong> inspiração,algo que vai dasnovelas gráficasao rock’n’roll,passando pelosjantares <strong>de</strong> rua,os <strong>de</strong>sfilese as paradas <strong>de</strong> circo”Sam Stourdzé,comissáriotinha <strong>um</strong> fascínio pela criação da estética<strong>de</strong> fotografias roubadas queaparece então nos fotógrafos em Roma,<strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>ira revolução quequebrou todos os códigos”, diz o comissário.A personagem fellinianaDesencantado com a sua realida<strong>de</strong>, àsemelhança das suas personagens,Fellini vê-se perdido e <strong>de</strong>sinspirado.A partir daí, inaugura o que Stourdzéapelida <strong>de</strong> “<strong>um</strong> cinema mais introspectivo,<strong>um</strong> mundo fantasista e imaginárioque qualificamos <strong>de</strong> ‘felliniano’”.“8 1/2” (1963), o filme que vemda crise, acabou por ser a tábua <strong>de</strong>salvação pessoal do realizador, obraprimaon<strong>de</strong> irá expor as dúvidas sobreo seu papel na vida e no cinema, colocandosonho e realida<strong>de</strong> no mesmoplano. Mastroianni, o seu alter-ego, éo veículo <strong>de</strong> Fellini como estrela dosseus próprios filmes, ro<strong>de</strong>ado das projecçõesque irão criar <strong>um</strong> cinema <strong>de</strong>visões fora <strong>de</strong> qualquer tempo.Começa então o <strong>de</strong>sfile das suaspersonagens, o espelho das fantasiasdo realizador e das suas i<strong>de</strong>alizaçõesdramáticas. Na exposição, testemunhamosas cartas e os rostos <strong>de</strong> milhares<strong>de</strong> pessoas chamadas por Fellinie que seriam mais tar<strong>de</strong> escolhidaspara as participações nos seus filmes.O realizador recebe-as no seu estúdio,enquanto estas tentam comprovar oque dizem pela sua aparência: “eu sou<strong>um</strong> Fellini”. Segundo Stourdzé, “sabemosque, nos filmes, existem <strong>um</strong>asérie <strong>de</strong> personagens fellinianas, masnão sabíamos que as personagensexistiam, a esse ponto, na realida<strong>de</strong>,e que iam ter espontaneamentecom Fellini.” Daí, o cineastaimporá a sua direcção: <strong>um</strong>a psicologiaunicamente reflectidan<strong>um</strong>a marcada caracterização e<strong>um</strong>a interpretação focada nasexpressões faciais e corporais.É a montagem final do circofelliniano, vista nas experiênciasalucinogénias <strong>de</strong> “Julietados Espíritos” (1965), na recriaçãobarroca <strong>de</strong> “Fellini - Satyricon”(1969), no <strong>de</strong>sfile <strong>de</strong>“Roma” (1972) ou na recriação<strong>de</strong> memórias em“Amarcord” (1973) — Fellinibuscando outra dimen-Váriosepisódios <strong>de</strong>“A Doce Vida”foramretirados darealida<strong>de</strong>romana: opasseio <strong>de</strong>Jesus-Cristo<strong>de</strong> helicópterosobre Roma,Anita Ekbergna Fonte <strong>de</strong>Trevi (foto), ostriptease <strong>de</strong><strong>um</strong>a actriz nobar“Rugantino”...são, visões que parecem vir da viagem<strong>de</strong> G. Mastorna, a história do homemque <strong>de</strong>scobriu o além e que Fellininunca conseguiu adaptar ao cineman<strong>um</strong> filme só.Dentro <strong>de</strong>sse universo, a exposiçãodá <strong>de</strong>staque a <strong>um</strong>a das obsessões dorealizador: a mulher felliniana, <strong>um</strong>aalternância entre a mulher doce e <strong>um</strong>corpo animalesco. “‘A Cida<strong>de</strong> das Mulheres’(1980) é <strong>um</strong> filme <strong>de</strong>le quepassou <strong>de</strong>spercebido”, diz Stourdzé,“mas é on<strong>de</strong> vemos Fellini a mostrarsemuito, alguém cuja obsessão cinematográficaé refazer o mesmo filme,mas dando sempre à mulher <strong>um</strong> lugaressencial.” As formas super-h<strong>um</strong>anasdas mulheres <strong>de</strong> Fellini (<strong>de</strong>senhadasnos esboços dos seus sonhos por sugestãodo seu psicanalista) encontrarama sua personificação i<strong>de</strong>al emAnita Ekberg, actriz <strong>de</strong> “A Doce Vida”,e mais tar<strong>de</strong> exploradas nas figuras<strong>de</strong> mulheres maternais, amantes ouprostitutas. Segundo Fellini: “A prostitutaé o contraponto essencial damãe italiana. Não se po<strong>de</strong> conceber<strong>um</strong>a sem outra.” O seu papel masculinoseria posteriormente confessadono rídiculo <strong>de</strong> “Casanova” (1976), <strong>um</strong>homem que não consegue amar asmulheres por amar, por sua vez, <strong>um</strong>aimagem que criou <strong>de</strong>las.Fellini, hojeO espectáculo das imagens <strong>de</strong> Fellininão marcou apenas as possibilida<strong>de</strong>sda expressão cinematográfica, mastambém <strong>um</strong> reconhecido público quesempre se alimentou da sua fantasia.Contudo, e por os seus filmes serem,como poucos, encenações pessoais<strong>de</strong> <strong>um</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vida, a sua influêncianoutros autores ainda se mostra difícil<strong>de</strong> clarificar. Um resultado trágicoe fértil da adopção do seu universorevelou-se em “Nove” (2009) <strong>de</strong> RobMarshall, recriação musical <strong>de</strong> “8 1/2”.“Trata-se mais <strong>de</strong> <strong>um</strong>a recriação históricaque pega na comédia musicalfeita na Broadway”, diz Stourdzé. “Ésempre difícil fazer remakes, sobretudofilmes tão majestosos e complicadoscomo ‘8 1/2’, ou tentar transformá-lon<strong>um</strong> sucesso popular <strong>de</strong>2010.” Quanto à influência noutrosrealizadores: “Begnini cresceu com apresença <strong>de</strong> Fellini mas o seu cinemanão é exactamente felliniano, tal comoo lado barroco <strong>de</strong> Almodóvar émais espanhol que italiano. Julgo quenão encontraremos a herança <strong>de</strong> Fellinin<strong>um</strong> só cineasta, mas sentimosque, em todos eles, houve <strong>um</strong> momentoem que <strong>um</strong> filme <strong>de</strong> Fellini osmarcou particularmente, como ‘81/2’, ‘A Doce Vida’, ‘Roma’, ou filmesmais académicos como ‘A Estrada’.São obras que marcaram a história docinema.”Um dos realizadores mais interessantesda actualida<strong>de</strong>, o tailandêsApichatpong Weerasethakul, vencedorda Palma <strong>de</strong> Ouro <strong>de</strong>ste ano, afirmourecentemente à revista britânica“Sight & Sound” a sua admiração porFellini, cuja cassete <strong>de</strong> “8 1/2” viu repetidamentenos seus inícios. “É verda<strong>de</strong>que a sua relação com o onirismoencontra-se sempreancorada n<strong>um</strong>a certarealida<strong>de</strong>, tal como Fellini”,afirma Stourdzé.“Os seus filmes surgemsempre na forma <strong>de</strong> <strong>um</strong>afábula, remexendo-a entreo doc<strong>um</strong>entário e aficção, <strong>de</strong> forma ténue,através do sonho.” Umafórmula que ainda se encontrarána base da arteque melhor encarna a expressãodos nossos sonhos,e à qual Fellinisoube dar <strong>um</strong>a efusiva,sentida e tocante representaçãoda vida.34 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon
E nos cofres nasceram sementesCódigos, fechaduras que só se abrem com duas chaves – a sala dos cofres do edifício do BNU,na Baixa lisboeta, vai abrir hoje como o <strong>novo</strong> espaço <strong>de</strong> exposições do MUDE. On<strong>de</strong> até há poucoesteve dinheiro estão agora sementes. Alexandra Prado Coelho (texto) e Enric Vives-Rubio (fotografia)No dia em que choveu tanto que aBaixa <strong>de</strong> Lisboa inundou, os donosdos restaurantes andavam aflitos atentar salvar ca<strong>de</strong>iras e mesas, a retirarágua com a ajuda <strong>de</strong> bal<strong>de</strong>s, e afalar para a televisão, lamentando osestragos. Ali ao lado, na Rua Augusta,longe das câmaras <strong>de</strong> televisão, alg<strong>um</strong>aspessoas entravam noutra cave.Mas o que vinham era muito diferente,e não tinha nada a ver com a inundação– alg<strong>um</strong>as saíam da cave comdinheiro, outras com jóias, outrascom objectos <strong>de</strong> valor, doc<strong>um</strong>entosimportantes, outras com coisas cujovalor só elas percebiam.Raras vezes a sala dos cofres do antigoedifício do Banco Nacional Ultramarinotinha assistido a tanta azáfama.Mas naquele dia do final <strong>de</strong> Outubrochegava ao fim <strong>um</strong> ciclo, e a Caixa Geral<strong>de</strong> Depósitos, ainda utilizadora doespaço, comprometera-se a esvaziá-loe a entregá-lo aos <strong>novo</strong>s proprietários,a Câmara Muncipal <strong>de</strong> Lisboa e o Museudo Design e da Moda (MUDE).Hoje a sala forte, <strong>de</strong> grossas portascom códigos que têm que ser introduzidosà mão e que permitem rodaras gran<strong>de</strong>s manivelas, a sala que guardoutantas riquezas e segredos, reabrecom os cofres novamente cheios– só que <strong>de</strong>sta vez não terão dinheiro,títulos do Tesouro ou barras <strong>de</strong> ouro.Desta vez vão ter sementes.“Sabendo que a Caixa iria sair, começámosa pensar como é que reabriríamosos cofres”, conta BárbaraCoutinho, a directora do MUDE. “Comjoalharia, moda, peças mais espectaculares<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign? Pareceu-nos queeste lugar exigia da <strong>nossa</strong> parte <strong>um</strong>aafirmação mais forte.” O que é quehoje tem tanto valor como o dinhei-O que é que hojetem tanto valorcomo o dinheiro?O que é que é tãoimportante quemereça ser guardadon<strong>um</strong> cofre? Foi comperguntas comoestas que BárbaraCoutinho chegouà i<strong>de</strong>ia das sementese à exposição quehoje inauguraHoje a salaforte, <strong>de</strong>grossasportas comcódigos quetêm que serintroduzidos àmão, a salaque guardoutantasriquezas esegredos,reabre com oscofresnovamentecheios – só que<strong>de</strong>sta vez nãoterão dinheiroÍpsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 35