LivrosFicçãoSanguena arenaVinte e cinco anos <strong>de</strong>poisda publicação, “Meridiano<strong>de</strong> Sangue” permanece <strong>um</strong>dos mais <strong>de</strong>stemperadosrepositórios <strong>de</strong> violência naficção americana. RogérioCasanovaMeridiano <strong>de</strong> SangueCormac McCarthy(trad. Paulo Faria)Relógio D’ÁguammmmmVe<strong>de</strong> o tradutor. Épálido e malnutrido.O seu nome vem emletras pequenas, oseu cheque emalgarismos anões.Especialmente noscasos do inglês e dofrancês - querequerem especialização mínima - oprocesso <strong>de</strong> tradução segue <strong>um</strong>curso <strong>de</strong> bocejante monotonia: otradutor lê o livro, consulta odicionário, c<strong>um</strong>pre o prazo, queixasedo pagamento, volta ao princípio.Depois temos os escalões superiores,em que <strong>um</strong> impulso vocacionalprece<strong>de</strong> o acto, em que as exigências(e a competência) são maiores, emque o trabalho <strong>de</strong> sapa envolve lermais do que o livro, em que oproduto final c<strong>um</strong>pre mais do que osmínimos olímpicos. E ainda <strong>de</strong>pois -não acima, mas ao lado, n<strong>um</strong>extremo paralelo <strong>de</strong> intransigentemarginalida<strong>de</strong> - temos os animaisraros, que encaram a tradução damesma forma que os discípulos <strong>de</strong>Stanislavsky encaram arepresentação: as pessoas que nãose limitam a ler toda as fontessecundárias e a visitar todos os sítiospertinentes, mas que tambémengordam quarenta quilos ou vivemseis meses n<strong>um</strong>a gruta, conforme asnecessida<strong>de</strong>s.Paulo Faria, cuja relação com aobra <strong>de</strong> Cormac McCarthy po<strong>de</strong> sereufemisticamente qualificada como“especial”, é <strong>um</strong> dos mais curiososrepresentantes nacionais datradução pelo “Método”. Depois <strong>de</strong>“Suttree” o ter levado a Knoxville,Tennessee (on<strong>de</strong> jogou bilhar comamigos <strong>de</strong> infância do autor), nãosurpreen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>scobrir que apesquisa para “Meridiano <strong>de</strong>Sangue” envolveu passar <strong>um</strong> ano nosudoeste americano, a aprimorarcom diligência a arte <strong>de</strong> domarcavalos e chacinar índios.Esta é, na verda<strong>de</strong>, a sua segundatradução do mesmo livro. N<strong>um</strong>RETNA LTD./CORBISprefácio tipicamente idiossincrático,sugere a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o acto setransformar n<strong>um</strong>a cerimóniaperiódica, “até que a minha palavrae a <strong>de</strong> McCarthy sejam <strong>um</strong>a só”. Ajulgar pela mais recente encenaçãodo ritual, as perspectivas sãoanimadoras. A tradução melhora aanterior, não através <strong>de</strong> ajustesdiscretos mas <strong>de</strong> tranformaçãoradical. Poucas frases permanecemiguais. Parece ter havido <strong>um</strong>aintenção <strong>de</strong>liberada <strong>de</strong><strong>de</strong>sformalizar a dicção, tornando osaMa<strong>um</strong>MedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelentecoloquialismos mais ásperos, menosafectados (talvez a única falha datradução <strong>de</strong> 2004). Um “diabos melevem” é promovido a “rais mepartam”; <strong>um</strong> “on<strong>de</strong> é quevossemecê faz tenções <strong>de</strong>”transforma-se em “adondé que ‘tása pensar”; <strong>um</strong> “Vossemecê per<strong>de</strong>usenas trevas, disse o velhote” éagora <strong>um</strong> “Per<strong>de</strong>ste-te nas trevas,disse o velho” (houve, aliás, <strong>um</strong>afirme, mas não total, purga <strong>de</strong>“vossemecês”). O balanço final dasalterações é claramente positivo,ainda que a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vírgulascontinue a exce<strong>de</strong>r a do original, eque alguns refinamentos pareçamsupérfluos, como a expansão <strong>de</strong>“mariquinhas” para “mariquinhaspé-<strong>de</strong>-salsa”.Convém salientar que osmariquinhas pé-<strong>de</strong>-salsa são a pioraudiência possível para “Meridiano<strong>de</strong> Sangue”, que permanece, vinte ecinco anos <strong>de</strong>pois da publicação, <strong>um</strong>dos mais <strong>de</strong>stemperadosrepositórios <strong>de</strong> violência da ficçãoamericana. O romance percorre o38 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon
Na sua segunda tradução<strong>de</strong> “Merediano <strong>de</strong> Sangue”,Paulo Faria sugerea possibilida<strong>de</strong>, n<strong>um</strong> prefáciotipicamente idiossincrático,<strong>de</strong> o acto se transformarn<strong>um</strong>a cerimónia periódica:“até que a minha palavra e a<strong>de</strong> McCarthy sejam <strong>um</strong>a só”trilho caótico <strong>de</strong> <strong>um</strong> rapaz semnome, convenientemente chamado“o rapaz”, que nas primeiras páginasé alvejado, assaltado e encarcerado,antes <strong>de</strong> se juntar a <strong>um</strong> gangue <strong>de</strong>mercenários li<strong>de</strong>rados por JohnGlanton e pelo juiz Hol<strong>de</strong>n,contratado pelas autorida<strong>de</strong>smexicanas para exterminar osapaches que aterrorizam a região. Oprojecto é executado comexorbitante entusiasmo, e o ganguesemeia <strong>um</strong> pequeno holocausto àsua passagem, ac<strong>um</strong>ulando escalpesnão apenas <strong>de</strong> índios, mas <strong>de</strong> tudo oque mexa.Começamos brandamente,encontrando alguém “com o crâniofracturado n<strong>um</strong>a poça <strong>de</strong> sangue”, econtinuamos n<strong>um</strong>a gincanaprogressiva <strong>de</strong> cães mortos, olhosvazados, raparigas violadas,peregrinos castrados, árvores <strong>de</strong>crianças mortas, e garrafas <strong>de</strong>mescal com cabeças a boiar. Temostambém <strong>um</strong> massacre comanche:“passavam as lâminas em volta docrânio <strong>de</strong> vivos e mortos semdistinção e erguiam ao alto asperucas sanguinolentas e acutilavama esmo os cadáveres <strong>de</strong>spidos,arrancavam membros, cabeças,esventravam os estranhos torsosbrancos e seguravam nas mãosalçadas gran<strong>de</strong>s punhados <strong>de</strong>vísceras, orgãos genitais, algunsselvagens tão lambuzados <strong>de</strong> sangueque quase parecia terem-se espojadona sangueira que nem cães, e algunslançavam-se sobre os moribundos esodomizavam-nos com altos bradospara os companheiros”. Temosalg<strong>um</strong> intrépido materialenvolvendo bebés: “<strong>um</strong> dos<strong>de</strong>lawares emergiu do f<strong>um</strong>o com <strong>um</strong>bebé <strong>de</strong>spido a baloiçar <strong>de</strong> cadapunho e acocorou-se junto a <strong>um</strong>anel <strong>de</strong> pedras que <strong>de</strong>limitava <strong>um</strong>monturo e ergueu-os peloscalcanhares, primeiro <strong>um</strong>, <strong>de</strong>pois ooutro, e bateu-lhes com a cabeçacontra as pedras, <strong>de</strong> modo que osmiolos jorraram pela fontanela n<strong>um</strong>vómito sanguinolento”. Eencontramos <strong>um</strong> insólito churrascoh<strong>um</strong>ano: “tinham-lhes trespassadoos tendões dos calcanhares comlança<strong>de</strong>iras afiadas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iraver<strong>de</strong>, e eles pendiam, cinzentos enus, acima das cinzas mortas dasbrasas on<strong>de</strong> os tinham assado até ascabeças ficarem carbonizadas e oscérebros lhes borbulharem noscrânios e o vapor lhes jorrar dasnarinas em jactos sibilantes. Viamse-lhesas línguas puxadas para forada boca e presas com pausaguçados, cravados <strong>de</strong> lado a lado, etinham-lhes cortado as orelhas eaberto rasgões no tronco com lascas<strong>de</strong> siléx, até as entranhas lhespen<strong>de</strong>rem sobre o peito”.O que fazer com tudo isto? Asinterpretações críticas <strong>de</strong> McCarthyten<strong>de</strong>m a concentrar-se na suavisível, e visivelmente circunscrita,colecção <strong>de</strong> influências retóricas (aIlíada, o Antigo Testamento, “MobyDick”, Faulkner), a especular sobredúbios alicerces filosóficos(gnosticismo, niilismo) e a encaixarnervosamente tudo o resto à sombra<strong>de</strong> <strong>um</strong> conveniente pessimismoantropológico.Um foco na prosa parecea<strong>de</strong>quado, porque apesar <strong>de</strong> algunsdifusos transportes líricos soarem asocasionais notas falsas, ela continuaa ser o gran<strong>de</strong> e incontestável trunfo<strong>de</strong> McCarthy: <strong>um</strong>a prosa <strong>de</strong>amplitu<strong>de</strong> épica, capaz <strong>de</strong> adulterarmesmerizantes cadências bíblicascom <strong>um</strong> barbudo lirismo sulista, ecapaz <strong>de</strong> inspirados momentos <strong>de</strong>observação - o cavalo que <strong>de</strong>sfalece“com <strong>um</strong> suspiro pne<strong>um</strong>ático”, osabutres “em posturas <strong>de</strong> exortação,como pequenos bispos escuros”.Visl<strong>um</strong>bram-se alguns sinais datendência para a imprecisão que seagravou nas obras mais recentes - a“carcaça <strong>de</strong> <strong>um</strong> qualquer animalmorto”, “<strong>um</strong>a qualquer criaturamisteriosa”, “<strong>um</strong>a qualquer regiãoinferior do mundo”, etc. - mas essaimprecisão parece aqui <strong>um</strong>anecessida<strong>de</strong> estrutural, a únicaforma <strong>de</strong> captar o que a narraçãochama a “<strong>de</strong>mocracia óptica” <strong>de</strong><strong>um</strong>a paisagem <strong>de</strong>solada, informe eprovisória, em que “ toda apreferência se torna fruto docapricho”.Mas qualquer diálogo sobre“Meridiano <strong>de</strong> Sangue” estácon<strong>de</strong>nado a traçar círculosconcêntricos à volta do seu fulcro, ojuiz Hol<strong>de</strong>n. Harold Bloom chamoulhea “mais aterradora criação daliteratura americana” e, por <strong>um</strong>a vezna vida, a sua histeria hierarquizanteparece justificada. Como Ahab, ojuiz vai anexando lentamente <strong>um</strong>romance que pertencia a terceiros,submetendo a narrativa a <strong>um</strong>aespécie muito particular <strong>de</strong>possessão <strong>de</strong>moníaca. As suasorigens estão envoltas em nevoeiromístico, e McCarthy ac<strong>um</strong>ula osportentos até ao limite daambiguida<strong>de</strong>: com mais <strong>de</strong> doismetros <strong>de</strong> altura, sem <strong>um</strong> únicocabelo no corpo, exímio dançarino,tocador <strong>de</strong> rabeca, fazedor <strong>de</strong>pólvora, geólogo, jurista,multilingue, albino, pedófilo erigorosamente amoral, o juiz é <strong>um</strong>acriatura que não <strong>de</strong>via sobreviverdois segundos fora dos limitesseguros <strong>de</strong> <strong>um</strong> medíocre filme <strong>de</strong>terror sobre o Diabo na Terra. Mas aprosa vai suportando os exageros edistorções, até que o juiz a usurpa, eo coração violento <strong>de</strong> “Meridiano <strong>de</strong>Sangue” começa a pulsar ao seuritmo. No <strong>de</strong>serto, entre os bárbarosque o seguem, vai pregando <strong>um</strong>evangelho marcial: “Antes <strong>de</strong> ohomem surgir, a guerra já estava à<strong>espera</strong> <strong>de</strong>le. O ofício supremo à<strong>espera</strong> do seu supremo artífice”. Ojuiz apresenta a sua teologia como<strong>um</strong>a verda<strong>de</strong> que prece<strong>de</strong> todas asfalsida<strong>de</strong>s morais, <strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>sobre a única a verda<strong>de</strong>ira religiãoh<strong>um</strong>ana.A intenção <strong>de</strong> McCarthy pareceser a construir <strong>um</strong>a mitologiainvertida. “Meridiano <strong>de</strong> Sangue” éblasfemo, no sentido literal dotermo; é <strong>um</strong>a anti-Bíblia. A Bíblia émencionada por alg<strong>um</strong>aspersonagens, mas o único exemplaré transportado brevemente por <strong>um</strong>analfabeto, como <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong>talismã: <strong>um</strong>a âncora moral no meioda <strong>de</strong>solação, mesmo para quemnão tenha acesso ao conteúdoverbal. “Meridiano <strong>de</strong> Sangue”, pelocontrário, apropria e <strong>de</strong>ssacraliza aretórica do Livro Sagrado,utilizando-a para pregar <strong>um</strong> caoseterno, n<strong>um</strong> Universo pré<strong>de</strong>terminadopara a <strong>de</strong>vastação.Entre massacres e sermões, o juiz<strong>de</strong>monstra <strong>um</strong>a insólita curiosida<strong>de</strong>naturalista, doc<strong>um</strong>entandopacientemente a fauna e flora locais,e preenchendo <strong>um</strong> ca<strong>de</strong>rno comesboços <strong>de</strong> relíquias e artefactosrecuperados (que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>strói).Quando questionado sobre esteprocesso, justifica-o com <strong>um</strong>a<strong>de</strong>formada versão do métodocientífico “Tudo o que existe nacriação sem o meu conhecimentoexiste sem o meu consentimento”. Éo manifesto <strong>de</strong> <strong>um</strong> psicopatavisionário, mas também a confissão<strong>de</strong> <strong>um</strong> autor omnipotente que, comoMilton, não resistiu à tentação <strong>de</strong>entregar ao diabo as melhores frases.Apercebemo-nos que o juizHol<strong>de</strong>n é o centro do romance,porque o romance age como o juizHol<strong>de</strong>n: equilibrado entre oratóriainflacionada e brusca brutalida<strong>de</strong>,preservando esteticamente aquiloque vai <strong>de</strong>struindo, <strong>de</strong>sprezandoqualquer forma <strong>de</strong> autonomia, nãopermitindo existência semconsentimento. E quando nasúltimas páginas, encontramos o juiza dançar no palco <strong>de</strong> <strong>um</strong> saloon,“colossal e pálido e glabro, qualenorme criança”, afirmando cominteira plausibilida<strong>de</strong> que “nunca vaimorrer”, sabemos que não está afalar <strong>de</strong> mera imortalida<strong>de</strong>; está afalar <strong>de</strong> posterida<strong>de</strong>.Um livro estruturalmenteru<strong>de</strong> (somos mergulhadose arrancados dos episódios<strong>um</strong> pouco como quem levacom bal<strong>de</strong>s <strong>de</strong> água frianas costas), sem <strong>um</strong>a únicapágina medianaAté quea morteos separaA velhice, a perversida<strong>de</strong>,a graça e a tortura familiarpor <strong>um</strong>a católica convertida,contemporânea <strong>de</strong> Greene eWaugh. Rui CatalãoMuriel SparkMemento MoriRelógio d’ÁguaTradutor: Miguel Serras PereirammmmmPara a época emque viveu, MurielSpark (1918-2006)tomou alg<strong>um</strong>as<strong>de</strong>cisõesestarrecedoras e<strong>de</strong>sconcertantes.Nascida emEdimburgo, <strong>de</strong> paiju<strong>de</strong>u e mãe anglicana, casa-se aos19 anos com <strong>um</strong> homem que mesesmais tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobre ser maníaco<strong>de</strong>pressivo.Três anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ixa ofilho Robin, o pai do seu filho,Sidney Spark, e a Rodésia, on<strong>de</strong>viviam os três. De regresso aInglaterra, trabalha para os serviçossecretos no último ano da IIÍpsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 39