Há um novo Alain Platel à nossa espera - Fonoteca Municipal de ...
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o? O que é que é tão importanteque mereça ser guardado n<strong>um</strong> cofre?Foi com perguntas como estas queBárbara Coutinho foi chegando à i<strong>de</strong>iadas sementes e à exposição que hojeinaugura, “Sementes Valor Capital”(até 20 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 2011).Dois homens, duas chavesMas antes <strong>de</strong> a explicarmos melhor,vamos conhecer a sala dos cofres.Quem nos guia é António Carneiro,funcionário da Caixa, que trabalhouaqui durante perto <strong>de</strong> dois anos, masque conhece há muito esta sala paraon<strong>de</strong> vinha muitas vezes substituir, nasférias, o colega que aqui trabalhava.Quem <strong>de</strong>scia as escadas <strong>de</strong>paravaem primeiro lugar com <strong>um</strong>a porta <strong>de</strong>vidro com elegantes gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> metal.Passada essa porta, n<strong>um</strong>a pequenamesa estava António Carneiro. Ocliente tinha já sido i<strong>de</strong>ntificado lá emcima, à entrada, mas ali voltava ai<strong>de</strong>ntificar-se, e seguiam então, clientee funcionário, cada <strong>um</strong> segurandoa sua chave, para a sala dos cofres.Pare<strong>de</strong>s e chão são <strong>de</strong> mármoreesver<strong>de</strong>ado. A luz vem <strong>de</strong> quadradosl<strong>um</strong>inosos encastrados no tecto. Tudoé rigoroso. Metálico. Ao fundo há<strong>um</strong> relógio negro e quatro portas comjanelas redondas – como se fossemsalas <strong>de</strong> interrogatório <strong>de</strong> alg<strong>um</strong>a políciasecreta do Leste da Europa. Eraaí que os clientes “podiam ter maisprivacida<strong>de</strong>, para contar os Títulosdo Tesouro ou ver doc<strong>um</strong>entos”, explicaAntónio Carneiro.A porta imensa da sala dos cofres,ao lado esquerdo <strong>de</strong> quem entra, estavaaberta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, <strong>de</strong> manhã cedo,António chegava e introduzia ocódigo. Havia clientes habituais. “Osdonos das casas <strong>de</strong> penhores vinhamtodos os dias. Alguns tinham aqui<strong>um</strong>a série <strong>de</strong> cofres”.Dois homens, duas chaves. A salados cofres reluz. Al<strong>um</strong>ínio a toda aaltura. 3500 cofres, cada <strong>um</strong> com doispequenos olhos – as fechaduras paraas duas chaves. Depois o cliente retiravaa caixa que se encontrava nointerior e sentava-se n<strong>um</strong>a das mesasa ver o conteúdo. António afastava-sediscretamente.A história do BNUA segurança aqui era absoluta. Quandoencomendou a casa-forte à empresabritânica Chubb, em 1964, por ocasiãodas obras que realizou no edifíciopara celebrar o seu centenário, o BNUquis o melhor: segurança, elegância,sofisticação. “Este é <strong>um</strong> lugar absolutamentesingular a nível internacional”,escreve Bárbara Coutinho n<strong>um</strong>texto <strong>de</strong> apresentação, “<strong>um</strong> exemplo<strong>de</strong> bom <strong>de</strong>sign que vamos preservarna sua integrida<strong>de</strong> e que abrimos agoraao público, tornando-o acessível atoda a cida<strong>de</strong> e a quem a visita.”Passada a porta gran<strong>de</strong> do cofre,existe à direita outra porta que dáacesso à zona <strong>de</strong> cofres maiores. “Sãocofres tipo dispensa, mais usados pelosmarchands <strong>de</strong> arte para guardarquadros ou peças <strong>de</strong> arte”, diz António.À esquerda, outra porta. “Aqui<strong>de</strong>positavam os vol<strong>um</strong>es”. Os clientestraziam as caixas – louças <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>valor, espólios <strong>de</strong> artistas – e <strong>de</strong>ixavam-nasnas prateleiras.Aí <strong>de</strong>ntro, na pare<strong>de</strong>, há mais <strong>um</strong>amanivela que abre <strong>um</strong>a pequena porta(há outra equivalente no lado dos cofresusados pelos marchands). É <strong>um</strong>asaída <strong>de</strong> emergência para quem, eventualmente,ficasse fechado na sala-forte.Não se dá por nada para, mas escon<strong>de</strong>ressas saídas, vinte dos cofres dapare<strong>de</strong> da sala-forte são falsos.Atravessamos a sala principal, saímospor <strong>um</strong>a portinha ao fundo eAntónio conduz-nos agora a <strong>um</strong>a zonaescura, on<strong>de</strong>, por entre cabos emaquinaria, se vê a entrada <strong>de</strong> maisalguns antigos cofres do tamanho <strong>de</strong>pequenas divisões <strong>de</strong> <strong>um</strong>a casa. Eraaqui que estavam guardados os valorespertencentes ao Estado, e reservas<strong>de</strong> ouro e bens das antigas colónias(o MUDE vai aproveitá-las como salas<strong>de</strong> reservas para as colecções <strong>de</strong> moda).O BNU, criado em 1864, foi durantemuitos anos o banco emissor<strong>de</strong> moeda para todas as provínciasultramarinas e tinha <strong>de</strong>pendênciasem África, na Índia, em Macau, e tambémem Londres e Paris.Abrindo os cofres como espaço <strong>de</strong>exposições, Bárbara Coutinho quervalorizar essa história. “Há aqui <strong>um</strong>ariqueza patrimonial que espelha a<strong>nossa</strong> história recente, a história dafinança e da própria Baixa. Percebe-seaqui a tercialização da Baixa, a importânciados bancos e do próprio BNU,sobretudo entre os anos 30 e os anos70 [o banco foi nacionalizado em 1974e em 1988 a Caixa Geral <strong>de</strong> Depósitostornou-se o principal accionista].”Des<strong>de</strong> a primeira hora que a intençãofoi a <strong>de</strong> preservar a sala dos cofres,“transformando-a n<strong>um</strong> lugar que contassea própria história, não <strong>de</strong> <strong>um</strong>aforma didáctica mas <strong>de</strong> <strong>um</strong>a formamais plástica, <strong>um</strong> lugar que servissecomo <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> jóia da coroa”.António Carneiro conduz-nos agorapor <strong>um</strong> labirinto – <strong>um</strong> corredorlongo e estreito, <strong>um</strong> caminho <strong>de</strong> rondaque permite dar a volta a toda azona dos cofres. Olhamos para o fundoe os corredores parecem-nos intermináveis,mas é <strong>um</strong>a ilusão causadapelos espelhos colocados em cadaesquina e que nos permitem ver quemvem atrás <strong>de</strong> nós mesmo quando apessoa ainda não dobrou a esquina.Percorremos o caminho <strong>de</strong> rondaaté sairmos mais <strong>um</strong>a vez na entradaprincipal para a zona dos cofres. Atrás<strong>de</strong> nós, na escadaria, está outro pedaçoda história do edifício que durantealg<strong>um</strong> tempo a própria Bárbara Coutinhonão sabia que estava ali. “Sabíamosque este painel existia, tínhamosvisto imagens <strong>de</strong>le, mas não tínhamosa certeza <strong>de</strong> on<strong>de</strong> estaria.”Estava aqui, atrás <strong>de</strong> <strong>um</strong>a pare<strong>de</strong>falsa que terá sido feita durante asobras <strong>de</strong> <strong>de</strong>molição do interior doedifício (que, em 2007, na altura daprimeira visita <strong>de</strong> Bárbara Coutinho,antes <strong>de</strong> a CML o ter comprado parainstalar o MUDE, estava n<strong>um</strong> estado<strong>de</strong> “abandono e ruína”). O painel apareceagora em toda a sua glória. É <strong>um</strong>apeça do pintor Guilherme Camarinha(1913-1994) em mosaico Donà, <strong>de</strong> Murano,que conta a Epopeia dos DescobrimentosMarítimos. Do lado esquerdo,do pequeno rectângulo querepresenta Portugal, partem caravelas,n<strong>um</strong> movimento que parece o <strong>de</strong><strong>um</strong>a banda <strong>de</strong>senhada, avançandopara a direita do painel, à medida queos navegadores avançam pelo mundo,encontram <strong>novo</strong>s povos, trocamofertas e conhecimentos. Quando apare<strong>de</strong> falsa saiu, o trabalho <strong>de</strong> Camarinhaestava impecável – e, aqui eali, a folha <strong>de</strong> ouro que cobre algunsdos mosaicos continua a brilhar.Sementes em riscoSementes, portanto. Os últimos dias<strong>de</strong> Outubro foram os da saída do dinheiro,das barras <strong>de</strong> ouro, dos valores.A semana que passou foi a da entradadas sementes (500 varieda<strong>de</strong>s),que estarão expostas em caixas <strong>de</strong>acrílico mandadas fazer especialmentepara caberem <strong>de</strong>ntro dos cofres.O MUDE teve dois parceiros principaispara a exposição – in<strong>espera</strong>dos sepensarmos que este é <strong>um</strong> museu <strong>de</strong><strong>de</strong>sign e moda: o Banco Português <strong>de</strong>Germoplasma Vegetal (BPGV) e a AssociaçãoColher para Semear – Re<strong>de</strong>Portuguesa <strong>de</strong> Varieda<strong>de</strong>s Tradicionais.São eles que fornecem as sementespara a exposição. Quando os contactoupela primeira vez, BárbaraCoutinho fez <strong>de</strong>scobertas que a surpreen<strong>de</strong>ram.Tinha <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início aintenção <strong>de</strong> mostrar não as sementesmais exóticas, mas as mais banais, <strong>de</strong>alimentos comuns. E percebeu queestas são raras. “Pensei que cada sementeexistisse em gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>mas não é assim. As associações explicaram-meque daquela semente sóTapado durante vários anos,<strong>um</strong> painel do pintor GuilhermeCamarinha (1913-1994) emmosaico Donà, <strong>de</strong> Murano, queconta a Epopeia dos DescobrimentosMarítimos, apareceagora em todo o seu esplendor“Hoje a prática<strong>de</strong> guardar sementesestá praticamente<strong>de</strong>saparecida”,lamenta. A maiorparte dos agricultoresusa sementeshíbridas, as que seven<strong>de</strong>m nas lojas eque, explica GraçaRibeiro da Colherpara Semear, exigemprodutos químicospara crescerem, e têm<strong>um</strong> ciclo <strong>de</strong> vida maiscurto. “Ao fim <strong>de</strong> <strong>um</strong>aou duas gerações jánão po<strong>de</strong>m serutilizadas, enquantoas das varieda<strong>de</strong>stradicionaissobrevivem muitotempo e era isso quegarantia antigamentea in<strong>de</strong>pendência dosagricultores”tinham <strong>de</strong>terminada quantida<strong>de</strong>.”É precisamente isso, confirma GraçaRibeiro da Colher para Semear. Aassociação in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, que existe<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2006, procura os agricultoresmais antigos, aqueles que ainda têmsementes das varieda<strong>de</strong>s tradicionaisportuguesas. “Hoje a prática <strong>de</strong> guardarsementes está praticamente <strong>de</strong>saparecida”,lamenta. A maior parte dosagricultores, sobretudo os mais jovens,usa sobretudo sementes híbridas,as que se ven<strong>de</strong>m nas lojas e que,explica Graça, exigem produtos químicospara crescerem, e têm <strong>um</strong> ciclo<strong>de</strong> vida mais curto. “Ao fim <strong>de</strong> <strong>um</strong>a ouduas gerações já não po<strong>de</strong>m ser utilizadas,enquanto as das varieda<strong>de</strong>stradicionais sobrevivem muito tempoe era isso que garantia antigamente ain<strong>de</strong>pendência dos agricultores”.A experiência do Banco <strong>de</strong> Germoplasma(integrado no Ministério daAgricultura) é mais antiga. Nasceu em1977 e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então tenta também recolhero maior número possível <strong>de</strong>espécies e <strong>de</strong> varieda<strong>de</strong>s. “Gran<strong>de</strong>parte dos materiais que temos no banco[mais <strong>de</strong> 100 espécies] já não estãoem produção. Antigamente haviamuito mais agricultores a usar varieda<strong>de</strong>stradicionais do que os que existemneste momento”, afirma AnaBarata, do BPGV.A substituição das varieda<strong>de</strong>s tradicionaispelos híbridos levou a que a<strong>nossa</strong> alimentação ficasse mais limitada.“Hoje as <strong>nossa</strong>s sementes estão aser procuradas por restaurantes e chefsque promovem <strong>um</strong>a dieta mais variada”,garante Graça Ribeiro. “Actualmentea população tem <strong>um</strong>a dietamuito restrita, e isso é negativo para asaú<strong>de</strong>.” Só <strong>de</strong> feijões nacionais existem400 varieda<strong>de</strong>s. “Se for ao supermercadoencontra cinco ou seis, na melhordas hipóteses. Está a ver a perda enormeque isso representa do ponto <strong>de</strong>vista do nosso património?”Quando se pôs a investigar o assunto,Bárbara Coutinho foi-se apercebendo<strong>de</strong> cada vez mais ligações. “Assementes estão na origem do cálculoe do próprio dinheiro.” E hoje, o facto<strong>de</strong> muitas <strong>de</strong>las se estarem a tornarraras faz com que sejam preservadasem bancos como o BPGV em Portugalou como o banco financiado por BillGates na Noruega, <strong>um</strong> autênticobunker que preten<strong>de</strong> preservar a origemda vida para o caso <strong>de</strong> <strong>um</strong> cenário<strong>de</strong> catástrofe mundial.Mas cada vez mais a tendência épara a preservação das sementes insitu, ou seja na terra, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m sercultivadas e mantidas no seu ciclo natural<strong>de</strong> vida. É isso que faz a Colherpara Semear, no seu terreno e com aajuda dos sócios, que plantam em terrenosagrícolas mas também em pequenashortas, quintais, jardins.O BPGV, que conserva muitas sementesem câmara <strong>de</strong> frio, começou tambéma seguir essa tendência. “O objectivoé tentar que os agricultores voltema produzir as varieda<strong>de</strong>s tradicionais,e eles estão abertos a isso”, diz Ana Barata.Há mesmo produtos que já renasceram,como a broa <strong>de</strong> milho <strong>de</strong> Arcos<strong>de</strong> Val<strong>de</strong>vez ou o feijão tarrestre.O MUDE organiza amanhã e domingo<strong>um</strong>a feira <strong>de</strong> produtos biológicos,com produtores que usam varieda<strong>de</strong>stradicionais e a partir <strong>de</strong> Janeiro vaiter painéis <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate “sobre <strong>um</strong> leque<strong>de</strong> assuntos que se abrem a partir daquie que entroncam em coisas tãodiferentes como a slow food.”Em Março, quando a Primavera começar,a exposição encerra, as sementesvoltarão para a terra, e oscofres que guardaram jóias, dinheiro,barras <strong>de</strong> ouro, segredos e sementes,ficarão à <strong>espera</strong> <strong>de</strong> novas riquezas –fiéis guardiões do que, na altura, oshomens acharem que é, no mundo,o valor mais importante.36 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon