Há um novo Alain Platel à nossa espera - Fonoteca Municipal de ...
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“O que é verda<strong>de</strong>? O que não é? É issoque faço: testo o modo como os outroslidam com a realida<strong>de</strong>.”Podia ser Joaquin Phoenix (ou o seurealizador, Casey Affleck) a falar <strong>de</strong>“I’m Still Here”, o falso doc<strong>um</strong>entáriosobre a muito falada “retirada” do cinemado actor para se <strong>de</strong>dicar a <strong>um</strong>acarreira musical <strong>de</strong> “rapper”. Masnão: é <strong>um</strong>a citação <strong>de</strong> Andy Kaufman,o lendário comediante <strong>de</strong>sconstrucionistaamericano que, na transiçãodos anos 1970 para os anos 1980, levoua “stand-up comedy” às fronteirasdo <strong>de</strong>sconforto. Kaufman – biografadosob os traços <strong>de</strong> Jim Carreyno filme <strong>de</strong> Milos Forman “Homemna Lua” (1999) - levava a sua arte aolimite <strong>de</strong> não se conseguir perceberon<strong>de</strong> terminava a “performance” eon<strong>de</strong> começava a realida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> estavamos limites (ou a essência) dapiada.Joaquin Phoenix seria, então, omais recente sucessor das experiênciasconceptuais <strong>de</strong> Kaufman, ao ponto<strong>de</strong> levar as suas explorações à possível<strong>de</strong>struição da sua carreira, emnome da reflexão sobre a natureza dacelebrida<strong>de</strong> e do <strong>de</strong>lírio mediáticoque a ro<strong>de</strong>ia. Durante quase doisanos, Phoenix retirou-se do olhar públicopara trabalhar n<strong>um</strong>a carreira <strong>de</strong>“rapper”, anunciada como modo <strong>de</strong>expressão verda<strong>de</strong>iro da sua arte, escapeda “persona” pública <strong>de</strong> “JoaquinPhoenix”, o actor <strong>de</strong> sucessonomeado para o Óscar.Nas primeiras imagens <strong>de</strong> “I’m StillHere”, o actor diz estar cansado <strong>de</strong>representar essa “personagem” queseria a versão “social” <strong>de</strong> si mesmo.As escassas aparições em público duranteeste período – inchado, barbudo,<strong>de</strong>sgrenhado, incoerente – culminaramn<strong>um</strong>a presença no “talk-show”<strong>de</strong> David Letterman (retomada no filme)que, para o bem e para o mal,marcou o actor como excêntrico, friqueganzado que se <strong>de</strong>ixara per<strong>de</strong>rna megalomania que a fama e o estrelatopermitiam. Subenten<strong>de</strong>ndo-se(mesmo que nunca dizendo-o publicamente)que Joaquin po<strong>de</strong>ria repetiro <strong>de</strong>stino trágico do irmão River, falecidoem 1993 sem nunca ter c<strong>um</strong>pridoo seu potencial.Ora, era precisamente essa fama eessa megalomania que Phoenix e oseu co-conspirador (e cunhado), CaseyAffleck, ele próprio actor aclamado,queriam <strong>de</strong>nunciar. O seu projectoperformativo <strong>de</strong> Phoenix e Affleckimplicava inverter os dados da situação.Em vez <strong>de</strong> fazer tudo para sustentara celebrida<strong>de</strong>, recusá-la, abandonara imagem pré-existente e partirem busca <strong>de</strong> <strong>um</strong> “segundo acto” (negando,no processo, a afirmação <strong>de</strong>F. Scott Fitzgerald: “não existem segundosactos nas vidas americanas”).N<strong>um</strong>a paisagem mediática dominadapela curiosida<strong>de</strong> insaciável evoyeurista das revistas cor-<strong>de</strong>-rosa,pelo ciclo noticioso imparável doscanais <strong>de</strong> notícias <strong>de</strong> cabo e da internet<strong>de</strong> banda larga permanentementeligada, n<strong>um</strong> mundo on<strong>de</strong> os “reality-shows”televisivos fazem ponto<strong>de</strong> honra <strong>de</strong> explorar o <strong>de</strong>sl<strong>um</strong>bramento<strong>de</strong> concorrentes capazes <strong>de</strong>tudo por 15 minutos <strong>de</strong> fama, comoseria encarada a sua recusa ass<strong>um</strong>ida,a sua tentativa <strong>de</strong> fugir ao mundo real?Falso doc<strong>um</strong>entárioA adaptação das técnicas <strong>de</strong> guerrilhaperformativa <strong>de</strong> Kaufman espelha<strong>um</strong>a verda<strong>de</strong>ira vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflectirsobre o que significa ser famoso hoje,o tipo <strong>de</strong> escrutínio que isso implica,a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escapar a esseolhar. E esse <strong>de</strong>sejo reflecte-se no “tudoou nada” que viu Phoenix pôr emrisco a sua carreira, sem re<strong>de</strong> <strong>de</strong> segurança,sem a certeza <strong>de</strong> que <strong>um</strong>avez revelada a verda<strong>de</strong>ira natureza daexperiência, houvesse retorno possível.(E só isso já merece que tiremoso chapéu a Phoenix.)Apresentar o resultado da experiênciasob a forma <strong>de</strong> doc<strong>um</strong>entárioé <strong>um</strong>a outra prova <strong>de</strong> inteligência,jogando com o facto <strong>de</strong> o género játer há muito <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> ser garantia<strong>de</strong> “realida<strong>de</strong>”/”veracida<strong>de</strong>”. A i<strong>de</strong>iado “falso doc<strong>um</strong>entário” não é nova– alguns dos exemplos pioneiros sãofilmes como “Coming Apart” (1969)<strong>de</strong> Milton Moses Ginsberg, ou “ThisIs Spinal Tap” (1984) <strong>de</strong> Rob Reiner -mas ao longo dos últimos anos tem-setornado n<strong>um</strong> elemento recorrente dagramática narrativa e visual do cinema“mainstream” e da televisão. Depoisdos múltiplos falsos doc<strong>um</strong>entários<strong>de</strong> Christopher Guest (“Waitingfor Guffman”, 1996, “Donos <strong>de</strong> Estimação”,2000, “A Mighty Wind”,2003), os filmes <strong>de</strong> Larry Charles comSacha Baron Cohen (“Borat”, 2006,e “Brüno”, 2009) trabalharam essagramática n<strong>um</strong>a linhagem directamenteherdada <strong>de</strong> Kaufman, diluindoas fronteiras entre ficção e realida<strong>de</strong>.Por seu lado, quase todos os “realityshows” rodados em exteriores(<strong>de</strong> “Survivor” às “Real Housewives”<strong>de</strong> on<strong>de</strong> quer que seja) explorama forma, e séries <strong>de</strong>ficção como “Uma FamíliaMuito Mo<strong>de</strong>rna” usam a estéticacomo parte integrantedo seu conceito.Mas tem sido <strong>de</strong>ntro docinema <strong>de</strong> género que aaparência formal <strong>de</strong> doc<strong>um</strong>entáriotem sidomelhor trabalhada. “OProjecto Blair Witch”(1999) <strong>de</strong> Daniel Myricke Eduardo Sánchezserviu como “matriz”retomada em filmescomo “Activida<strong>de</strong> Paranormal”(2009), <strong>de</strong>Oren Peli, “REC”(2007), <strong>de</strong> Ja<strong>um</strong>e Balagueróe Paco Plazaou “Diário dos Mortos”(2007), <strong>de</strong> GeorgeA. Romero, usando asconvenções do doc<strong>um</strong>entáriocomo amplificadorda lógica narrativado filme, mas sempre<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> <strong>um</strong> quadroass<strong>um</strong>idamente ficcional.Ora, a partir do momentoem que o próprio formato dodoc<strong>um</strong>entário po<strong>de</strong> ser manipuladopara apresentar <strong>um</strong>aficção, isso levanta nos espectadoresa dúvida metódica sobre averacida<strong>de</strong> daquilo a que estão aassistir. O que Affleck e Phoenix fazemé transpô-lo para <strong>um</strong> plano puramentedramático e realista, ass<strong>um</strong>idamentesério, mais próximo <strong>de</strong><strong>um</strong>a experiência radical como “Morte<strong>de</strong> <strong>um</strong> Presi<strong>de</strong>nte” (2006), <strong>de</strong> GabrielRange, jogando com a percepçãopública <strong>de</strong> que <strong>um</strong> doc<strong>um</strong>entário nãoé, já, <strong>um</strong> mero registo da realida<strong>de</strong>(como foi durante muito tempo entendido)mas apenas <strong>um</strong> outro tipo<strong>de</strong> mediação/tradução da realida<strong>de</strong>.A verda<strong>de</strong> da“I’m Still Here”, a experiência performativa <strong>de</strong> Joaquin Phoenix eMas, agora que sabemos que tudo é ficção,30 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon