Aos 83 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, o escritor alemãoGünter Grass (n. 1927), Nobel daLiteratura em 1999, <strong>de</strong>u como encerradaa sua obra literária com a publicação,há três meses, do terceiro vol<strong>um</strong>eda autobiografia, “Grimms Wörter.Eine Lieberserklärung” (AsPalavras dos Grimm. Uma <strong>de</strong>claração<strong>de</strong> amor) – cuja edição portuguesaestá prevista para 2011 (Casa das Letras).“Falta-me o ânimo para escrever.Acabou o meu prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>.Já escrevi tudo. Na minha ida<strong>de</strong>, já secomeça a ficar surpreendido quandochegamos à próxima Primavera. E eusei o tempo que <strong>um</strong> livro po<strong>de</strong> <strong>de</strong>morara escrever.” Esta confissão foi feitana noite da passada sexta-feira noE.T.A. Hoffmann Theater, em Bamberg– pequena cida<strong>de</strong> do Norte daBaviera –, perante <strong>um</strong> auditório <strong>de</strong>meio milhar <strong>de</strong> pessoas. (os bilhetespara assistir à leitura <strong>de</strong> alguns excertosdo último livro <strong>de</strong> Grass, pela vozdo próprio, e ouvir alg<strong>um</strong>as palavrassobre o autor e as razões que o levarama escrever <strong>um</strong>a autobiografia<strong>de</strong>dicada aos irmãos Grimm, custavamentre 9 e 16 euros; e estavamesgotados havia mais <strong>de</strong> <strong>um</strong>a semana.)Sobre o que vai então fazer, disse:“A ida<strong>de</strong> da reforma nunca chegapara <strong>um</strong> artista. Há sempre <strong>um</strong>a tentativa<strong>de</strong> se fazer <strong>um</strong>a coisa mais perfeita,nunca se fica contente com oresultado e temos sempre o sentimento<strong>de</strong> que o que se fez é insuficiente.Por isso, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos anosa escrever, vou mudar <strong>de</strong> ferramentas.Vou voltar a pintar. Quando estendoas mãos, vejo que elas aindanão tremem, por isso vou continuar.Vou começar por <strong>de</strong>senhar e pintarnovas ilustrações, e também a capa,para a reedição <strong>de</strong> <strong>um</strong> romance queme é muito querido e que foi publicadopela primeira vez há quase 50anos, ‘Hun<strong>de</strong>jahre’ [edição portuguesa“O Cão <strong>de</strong> Hitler”, o último vol<strong>um</strong>eda “Trilogia <strong>de</strong> Danzig”, iniciada como famoso “O Tambor <strong>de</strong> Lata”]. Estemeio século que entretanto passoupermite-me ter <strong>um</strong> outro olhar sobreo que então escrevi. Eu tinha 35 anos.Depois talvez vá fazendo o mesmopara os outros que se seguiram.” Emais tar<strong>de</strong>, à pergunta se iria voltara escrever poesia (Grass começou asua activida<strong>de</strong> literária como poeta,no chamado “Grupo 47”), disse aoÍpsilon que sim, que “com a ida<strong>de</strong> apoesia lhe chegava com mais facilida<strong>de</strong>”,que as palavras estavam “maissoltas”.Günter GrassPolítica e os irmãos GrimmA autobiografia <strong>de</strong> Günter Grass iniciou-secom o polémico vol<strong>um</strong>e “Descascandoa Cebola” (Casa das Letras,2007) – que <strong>de</strong>screve o período entre1939 e 1959 (data da publicação <strong>de</strong> “OTambor <strong>de</strong> Lata”) – e on<strong>de</strong> revela queaos 17 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> se alistara voluntariamentenas Waffen-SS (já este ano,n<strong>um</strong>a entrevista à “Spiegel”, disse queo alistamento não foi voluntário, comoaliás aconteceu a muitos jovensalemães à época). O homem que no<strong>de</strong>bate público sempre criticou ferozmenteos <strong>de</strong>feitos da Alemanha – quepreten<strong>de</strong>u ser durante mais <strong>de</strong> trintaanos <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong> “consciênciamoral da nação alemã” – não teve coragem,durante décadas, <strong>de</strong> se criticara si próprio. A sua “honestida<strong>de</strong> tardia”quase atingiu a dimensão <strong>de</strong> escândalonacional.A esse primeiro vol<strong>um</strong>e seguiu-se“A Caixa – histórias da câmara escura”(Casa das Letras, 2009), que abrangeo período entre 1959 e 1999 (ano emque lhe foi atribuído o Nobel). Paraeste livro, Grass arquitectou <strong>um</strong>a formanarrativa mais “soft”, <strong>de</strong> maneiraa que os assuntos tratados o <strong>de</strong>ixassema salvo <strong>de</strong> críticas in<strong>de</strong>sejadas, eapontou os focos narrativos, essencialmente,para a vida familiar, paraos seus problemas económicos, paraas mudanças <strong>de</strong> casa, para os casamentos,para os filhos. “A Caixa” encontradapor Grass (e porque é <strong>de</strong> <strong>um</strong>objecto que se trata, <strong>um</strong>a máquinafotográfica antiga) é <strong>um</strong>a espécie <strong>de</strong>instância autoral que il<strong>um</strong>ina as trevasdo seu passado – é <strong>um</strong> objecto bemao seu gosto, que mergulha nas águasturvas da história contemporânea aomesmo tempo que procura auscultaro <strong>de</strong>stino do Homem. Finalmente, oterceiro vol<strong>um</strong>e agora publicado,“Grimms Wörter. Eine Lieberserklärung”(As Palavras dos Grimm.Uma <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> amor), é sobretudo<strong>um</strong> contar sobre a sua intensa activida<strong>de</strong>política durante várias décadas,sobre a literatura, sobre a línguaalemã e a arte <strong>de</strong> contar histórias.Os irmãos Grimm, Jacob (1785-1863)e Wilhelm (1786-1859), recolheramdurante décadas as antigas narrativasque viviam apenas na memória populare no folclore alemão (apesar <strong>de</strong>muitas <strong>de</strong>las serem comuns, em diferentesversões, <strong>um</strong> pouco por toda aEuropa). A essas fábulas, que escreveramn<strong>um</strong>a linguagem directa, <strong>de</strong>ram<strong>um</strong>a roupagem literária <strong>de</strong> históriasinfantis, com <strong>um</strong>a temáticaexpurgada dos aspectos mais violentos,e sempre em redor <strong>de</strong> acontecimentosmágicos, <strong>um</strong> pouco à maneira<strong>de</strong> Hans Christian An<strong>de</strong>rsen. Ostemas focaram-se sobretudo na solidarieda<strong>de</strong>e no amor ao próximo.Grass confessou que cresceu “envolvidopor essas histórias”, e que foramelas que lhe <strong>de</strong>ram o gosto pela literatura,pela arte <strong>de</strong> contar e pelassubtilezas da língua.“Ainda em Danzig [cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong>Grass nasceu, actual Gdansk, na Polónia]cheguei a assistir, levado pelaminha mãe, a <strong>um</strong>a peça dos irmãosGrimm no teatro da cida<strong>de</strong>, por alturasdo Advento, era a história do ‘TomTh<strong>um</strong>b’. As histórias dos Grimm influenciaramtodo o meu trabalho criativo,e vivem nele. Por exemplo, esseTom Th<strong>um</strong>b que vi quando era aindatão pequeno, vive no Oskar Matzerath[o rapaz que se recusou a crescere que é o herói <strong>de</strong> ‘O Tambor <strong>de</strong> Lata’].E no romance ‘A Ratazana’ elesvai trocar a canetapelosMIGUEL MANSO“Falta-me o ânimopara escrever.Acabou o meuprazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>.Na minha ida<strong>de</strong>, jáse começa a ficarsurpreendido quandochegamos à próximaPrimavera”pincéisLUIS CORREAS REUTERSO escritor alemão Günter Grass publicou o terceiro vol<strong>um</strong>e da suaautobiografia. E <strong>de</strong>u por terminada a sua activida<strong>de</strong> literária, pelo menosem termos <strong>de</strong> romances. “Acabou o meu prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>.”Mas <strong>um</strong> artista não tem ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reforma, por isso vai mudar <strong>de</strong>ferramentas. José Riço Direitinho em Bamberg12 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon
estão <strong>de</strong>scritos como <strong>um</strong> ministro e<strong>um</strong> <strong>de</strong>putado que querem parar coma morte das florestas, originada pelaschuvas ácidas.”Mas on<strong>de</strong> é que é feita a ligação dosirmãos Grimm com a activida<strong>de</strong> políticae social da biografia <strong>de</strong> Grass?“Os Grimm viveram <strong>um</strong> período marcadopor mudanças radicais, querpolíticas quer sociais. Como eu, queassisti ao dividir e reunificar a Alemanha,ao erguer e ao cair do Muro <strong>de</strong>Berlim. O Liberalismo dava os primeirospassos no século XIX, havia trezentaspequenas cida<strong>de</strong>s divididas<strong>um</strong>as das outras política e economicamente.Quando eles tiveram a i<strong>de</strong>ia<strong>de</strong> fazer o Gran<strong>de</strong> Dicionário da LínguaAlemã, isso foi <strong>um</strong>a tentativa <strong>de</strong>unificação pela língua. Mas não sabiambem a tarefa a que tinham metidoombros.”Aqui <strong>um</strong> parêntesis: os Grimm começaramo dicionário em 1838, e comtodas as palavras e frases exemplificativas,à data da morte <strong>de</strong> JacobGrimm (1863), este tinha chegado àsexta letra do alfabeto. Foram precisasmais <strong>um</strong>as gerações <strong>de</strong> linguistaspara acabarem o trabalho, cujo últimovol<strong>um</strong>e foi publicado em 1961, 123anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter sido iniciado.“Uma das minhas intenções ao convocaros Grimm para a minha autobiografia”,diz Grass, “foi também a<strong>de</strong> os libertar <strong>de</strong>sta visão muito redutora,que muita gente tem, <strong>de</strong> que elesforam sobretudo uns colectores <strong>de</strong>fábulas do folclore germânico. Não,eles ensinaram-nos a contar históriase, sobretudo, a gostar <strong>de</strong> histórias. Eainda o gosto que tenho pelas palavras,mesmo por aquelas que já nãose usam mas que <strong>de</strong> cada vez que asoiço me parecem ressoar mais pertodo seu significado.”Sobre se o Nobel o tinha limitadona escrita, dando-lhe ainda mais responsabilida<strong>de</strong>social, disse: “De maneiranenh<strong>um</strong>a. Já não era importantepara mim. Esperei-o durante algunsanos, e quando mo <strong>de</strong>ram já não o<strong>espera</strong>va. Foi mais importante <strong>um</strong>prémio alemão, há muitos anos, dadopor colegas escritores, e n<strong>um</strong>a alturaem que eu atravessava momentos <strong>de</strong>dificulda<strong>de</strong>s económicas.” E quantoà responsabilida<strong>de</strong> e intervenção social,queixou-se: “A minha geraçãoparece ser a última que foi activa politicae socialmente. Os escritoresmais jovens, especialmente os da últimageração, parecem já não querersaber. Fazem mal, porque há cada vezmais temas on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam ser úteisintervindo. E muitas razões para ofazerem.”Depois do final da sessão, perto das22 horas, seguiu-se a habitual longafila para autógrafos e breves trocas <strong>de</strong>palavras. Tudo isto antes <strong>de</strong> GünterGrass c<strong>um</strong>prir <strong>um</strong>a tradição: comer<strong>um</strong>a sopa <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> todas as sessões,nem que seja quase meia-noite (comoaconteceu), com muitos poucos convidados,oferecida por quem o convidoupara a sessão <strong>de</strong> leitura. O Ípsilontambém esteve presente na InternationalesKünstlerhaus Villa Concordia,on<strong>de</strong> lhe perguntámos sobre o futurodo livro. “Não vai acabar. Vai ter <strong>um</strong>valor diferente, como antigamente.O <strong>de</strong> <strong>um</strong> objecto que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixaraos nossos filhos.”“Vou voltar a pintar.Quando estendoas mãos, vejo queelas ainda nãotremem, por isso voucontinuar”À pergunta se iria voltar aescrever poesia (Grass começoua sua activida<strong>de</strong> literária comopoeta), disse ao Ípsilon que sim,que “com a ida<strong>de</strong> a poesia lhechegava com mais facilida<strong>de</strong>”,que as palavras estavam“mais soltas”Ípsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 13