Po<strong>de</strong>-se julgar <strong>um</strong>FERNANDO VELUDO/NFACTOSVivemos tempos estranhos. Em tudoe no mundo dos livros também.Se por <strong>um</strong> lado o panorama é compostopor gran<strong>de</strong>s grupos editoriais,financeiramente po<strong>de</strong>rosos, queenglobam várias editoras (para nãofalar em livrarias, distribuidoras),por outro lado, quase todos os mesesnasce <strong>um</strong>a nova editora. E enquantose vai discutindo e-books,leitores <strong>de</strong> e-books e morte do livroimpresso, as livrarias vão sendoinundadas por <strong>novo</strong>s títulos. Consequentemente,o espaço e o tempo<strong>de</strong> exposição na livraria acaba porse ressentir. Os gran<strong>de</strong>s grupos po<strong>de</strong>musar técnicas <strong>de</strong> marketingmais agressivas, mas o que po<strong>de</strong>mfazer os in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes? Além docritério da escolha dos títulos a publicar,a outra resposta óbvia é apostarna imagem.Talvez seja cedo <strong>de</strong>mais para falar,mas parece que atravessamos<strong>um</strong>a pequena revolução no <strong>de</strong>sign<strong>de</strong> livros em Portugal. Há quemaposte na excelência dos materiaise há quem não se possa dar a essaluxo. Há quem trabalhe com pratada casa e quem encomen<strong>de</strong> capasa especialistas. O Ípsilon foi falarcom alguns daqueles que contribuempara que <strong>um</strong> olhar pelos expositores<strong>de</strong> <strong>um</strong>a livraria possa ser<strong>um</strong>a experiência.1. Coerência <strong>de</strong>spreocupadaA Livros <strong>de</strong> Areia nasceu em 2005,pela mão <strong>de</strong> Pedro Marques e JoãoSeixas, em Viana do Castelo. A quantida<strong>de</strong><strong>de</strong> títulos publicados <strong>de</strong>s<strong>de</strong>então é inversamente proporcional àqualida<strong>de</strong> dos mesmos. Poucos masbons. Com parcos recursos, sem possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> fazer os livros como gostariam,fazem-nos como po<strong>de</strong>m. Enão o fazem mal. Pedro Marques, queé também editor, faz as capas. Comformação em História da Arte, consi<strong>de</strong>ra-se<strong>um</strong> autodidacta nesse ofício.Se às vezes a palavra é olhada comestigma, para Pedro isso não é grave,porque está “em muito boa companhia.Um dos meus <strong>de</strong>signers favoritosé Quentin Fiore, autodidacta, quetrabalhou com o Marshall McLuhanem todos os livrinhos <strong>de</strong>le.”O trabalho é sempre feito a posteriori.Com o texto já em mãos, pensaa capa e executa-a. Tudo feito livro alivro, sem pensar n<strong>um</strong> <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> colecção.“Não posso ter <strong>um</strong> <strong>de</strong>sign seriadose tenho apenas dois livros porano.Corro o risco <strong>de</strong> as pessoas se esquecereme essa arma per<strong>de</strong>-se.”No entanto, há <strong>um</strong>a imagem reconhecívelnos Livros <strong>de</strong> Areia. Istoacontece por todas as capas obe<strong>de</strong>ceremapenas ao gosto pessoal <strong>de</strong>Pedro Marques. De influência surrealistae expressionista, como <strong>um</strong>a dassuas referências principais, RomanCieslewicz, o processo é o <strong>de</strong> recorrera bancos <strong>de</strong> imagens, juntar peçascomo n<strong>um</strong> puzzle, mas também distorcê-las,<strong>de</strong> tal forma que o resultadoseja reconhecível apenas enquantocapa da Livros da Areia. “A i<strong>de</strong>ia éservir o melhor possível o título e oautor. Mas se <strong>de</strong> facto há pessoas queacham que há <strong>um</strong>a imagem da editora,tanto melhor.”Os autores não se queixam, pelocontrário. Um caso curioso é o <strong>de</strong>Lázaro Covadlo, escritor argentino,que quis utilizar no seu país natal acapa feita por Pedro Marques para olivro “Criaturas da Noite”.A<strong>de</strong>pto do paperback, do livroportátil que se leva em viagem, quenão pesa, Pedro lamenta ainda assimnão ter possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar <strong>um</strong> melhoracabamento a alguns dos livros.“Se tivesse hipótese, teria feito o livro‘Da Treta’ com <strong>um</strong>a capa duracom sobrecapa, com <strong>um</strong>a fitinha, ouseja, <strong>um</strong> livro à antiga.” E não tempejo em admitir <strong>um</strong> pecado mortal,quando lembra a qualida<strong>de</strong> das ediçõesda Tinta-da-China: “Tenho muitainveja daquelas edições, gostavamuito <strong>de</strong> fazer livros assim, mas nãoposso.”Gosta, mas admite: “Essa não é aminha preocupação. A minha preocupaçãoé fazer livros baratos, como acabamento mais básico, colados,nem sequer têm ca<strong>de</strong>rnos.” Assim<strong>de</strong>scritos, imagina-se algo muito piordo que é. Porque com materiais baratostambém se produzem coisasboas. E a Livros <strong>de</strong> Areia não é o únicoexemplo.O trabalho <strong>de</strong> Pedro Marques nãose esgota na edição e no <strong>de</strong>sign. Emboraa <strong>um</strong>a escala que se po<strong>de</strong> dizeramadora (o que não significa falta <strong>de</strong>Andrew Howard Nos livros <strong>de</strong> ficção da Ahab, Andrew Howard, inglês que trabalha emPortugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993, quis fugir ao facilitismo da tipografia sobre imagem e enveredar antespelo caminho da união. “O texto torna-se imagem, em vez <strong>de</strong> ser <strong>um</strong> elemento separado.”Há quem aposte na excelência dos materiais e há quem não se possa dar a essa luxo. Há quemcontribuem para que <strong>um</strong> olhar pelos expositores <strong>de</strong> <strong>um</strong>a18 • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • Ípsilon
ENRIC VIVES-RUBIOqualida<strong>de</strong>), é também alguém quepensa e que luta por que se pense o<strong>de</strong>sign <strong>de</strong> livros. Tenta fazê-lo no seublogue (pedromarquesdg.wordpress.com) e nos artigos que vai publicandona Bang!, na Os Meus Livros e na Alice(clubalice.com). Não lhe interessamsó os <strong>de</strong>signers mas também oseditores responsáveis por revoluçõesno <strong>de</strong>sign editorial, como os francesesJean-Jacques Pauvert, MauriceGirodias e Eric Losfeld.“Um dos gran<strong>de</strong>s paradoxos da imprensacultural, no que diz respeitoao livro em Portugal, é que há <strong>um</strong>ainvasão das capas nos jornais e nasrevistas que é inversa à reflexão sobreelas.” É isto que quer combater como seu blogue e com o espaço que lhevão dando nas revistas.2. Do livro ao objectoQuando pensamos em bons exemplos<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> livros em Portugalé inevitável que o primeiro nome quenos vem à cabeça não seja o da Tintada-China.O mérito é todo <strong>de</strong>les e <strong>de</strong>Vera Tavares, responsável pelo logotipoe pelas capas da editora, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>o primeiro livro.Também na Tinta-da-China a linhagráfica não surgiu premeditadamente.“As coisas foram-se <strong>de</strong>finindo,”diz-nos Vera. Teve sempre liberda<strong>de</strong>artística e beneficiou <strong>de</strong> <strong>um</strong>a fortecompatibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gostos com a editoraBárbara Bulhosa. O facto <strong>de</strong> haverpessoas que i<strong>de</strong>ntificam <strong>um</strong>a coerênciagráfica virá, <strong>um</strong>a vez mais,do facto <strong>de</strong> ser a mesma pessoa a fazeras capas. Porém, para Vera é maisfácil ver essa coerência nas colecçõesdo que no catálogo geral.Mas se a Tinta-da-China causou tantoimpacto, isso não se <strong>de</strong>ve apenasàs capas. Tendo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investirnos acabamentos, não hesitouem dar aos livros dignida<strong>de</strong> especial.No catálogo encontram-se muitos livros<strong>de</strong> capa dura, com bons acabamentos,bom papel, <strong>um</strong>a embalagemluxuosa para <strong>um</strong> conteúdo que cost<strong>um</strong>acorrespon<strong>de</strong>r em qualida<strong>de</strong>.“Havia <strong>um</strong>a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> não fazerigual ao que se fazia,” admite Vera,mas o objectivo é o mais básico: queo livro “esteja nas livrarias, que aspessoas o vejam e comprem, porquea capa é bonita e o conteúdo é interessante.”Nesta busca pela capa perfeita,consi<strong>de</strong>ra fundamental a escolha dotipo <strong>de</strong> letra. É importante que a fontetipográfica se a<strong>de</strong>que ao conteúdoe quando a busca não traz resultadossatisfatórios, é a própria Vera que <strong>de</strong>senhaas letras. Por vezes volta a utilizá-las,até porque já tem “<strong>um</strong>a pastacom <strong>um</strong>a gran<strong>de</strong> colecção <strong>de</strong> letras,que não chegam a ser fontes,porque não as sei transformar emfonte. São só letras <strong>de</strong>senhadas.”Embora recuse a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que hálivros que, <strong>de</strong> tão bem trabalhados, setornam objectos, acaba por concordar,reticente, quando se fala na colecção<strong>de</strong> h<strong>um</strong>or dirigida por RicardoAraújo Pereira. Os livros <strong>de</strong>sta colecçãoacabam por ser objectos estranhosnas <strong>nossa</strong>s livrarias, porque não têmlombada. As capas e os ca<strong>de</strong>rnos estãocozidos, com o “esqueleto” à mostra.A i<strong>de</strong>ia foi da editora, Bárbara Bulhosa,que viu algo semelhante n<strong>um</strong> catálogo<strong>de</strong> <strong>um</strong>a feira literária. Fez fincapépara que a i<strong>de</strong>ia se concretizasse,porque é complicada <strong>de</strong> executar. GaranteVera: os livros são resistentes.“Foram feitos monos, que testámos eatirámos ao chão. É tão resistente como<strong>um</strong> livro <strong>de</strong> capa dura normal.” Etêm a vantagem <strong>de</strong>, por não teremlombada, se conseguirem abrir totalmentee manterem-se abertos em cima<strong>de</strong> <strong>um</strong>a mesa.Objectos ou não, os livros da Tintada-Chinasaltam à vista. Mesmo quandoos autores fazem exigências, Veraconsegue executá-las ao seu gosto eterminar com <strong>um</strong> produto que tema sua marca. A marca da Tinta-da-China.Vinda do mundo da publicida<strong>de</strong>,Vera Tavares tem formação em História.Como leitora e compradora,irrita-se quando <strong>um</strong> livro tem <strong>um</strong>acapa má. Mesmo assim, consi<strong>de</strong>raque em Portugal há cada vez maisbons exemplos no <strong>de</strong>sign <strong>de</strong> livros.3. Os profissionaisA par das editoras em que o trabalho<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign é feito <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> portas, háoutras que recorrem a ateliers profissionais.São casos disso as editoras dogrupo Almedina, com grafismo a cargoda Ferrand, Bicker & Associados(FBA), ou a editora in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,sediada no Porto, Ahab, com <strong>de</strong>signdo Studio Andrew Howard.Estes <strong>de</strong>signers trabalham por encomenda,mas a responsabilida<strong>de</strong>para com o produto final é a mesma.João Bicker, da FBA, explica-nos:“Trabalhamos sobre as i<strong>de</strong>ias expressaspor outros e procuramos interpretá-lasvisualmente. O essencial é aprocura do entendimento do texto,da maneira que melhor o dá a ler. Aescolha da tipografia a<strong>de</strong>quada, daforma do livro e da página, o processo<strong>de</strong> colocar as palavras e as imagensna forma que melhor as sirva.”Andrew Howard, inglês que trabalhaem Portugal <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1993, vê o processo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign como “a combinaçãoentre o conceptual e o material paracriar <strong>um</strong> objecto que tem <strong>de</strong> satisfazeras <strong>nossa</strong>s sensibilida<strong>de</strong>s intelectuaise tácteis.” E é isso que torna o<strong>de</strong>sign <strong>de</strong> livros, para Andrew, <strong>um</strong>dos mais completos trabalhos <strong>de</strong> <strong>de</strong>signgráfico.O processo começa sempre pelaleitura da obra. E no caso das capaspara a Ahab, livros <strong>de</strong> ficção, “o conteúdonão po<strong>de</strong> ser res<strong>um</strong>ido n<strong>um</strong>simples momento gráfico.”Por isso a leitura é fundamental,para perceber não só a história, maso seu universo e estilo.Para João Bicker “não há nada maisVitor Silva Tavares “Isto é <strong>um</strong>a editora pobre e funcionamos sempre com recursosmuito parcos.” Foi assim que começou a conversa com Vítor Silva Tavares, editor da &etc,editora que sempre se manteve à margem, <strong>de</strong> costas voltadas para o mercado. Há quase 38anos que faz livros com o mesmo formato, com os materiais mais baratos, e que ainda assimnão po<strong>de</strong>m ser ignorados, pelo projecto único que representamimportante do que a escolha da tipografia,das letras que darão a ler otexto. Cada tipo <strong>de</strong> letra carrega noseu <strong>de</strong>senho características formaise históricas que influenciam a leituraporque influenciam a forma do texto.”É importante ter em conta que aFBA, ao trabalhar com o grupo Almedina,tem em mãos muitos livros <strong>de</strong>ensaio, que pe<strong>de</strong>m <strong>um</strong>a abordagemdiferente da ficção.Nos livros <strong>de</strong> ficção da Ahab, AndrewHoward quis fugir ao facilitismoda tipografia sobre imagem e enveredarantes pelo caminho da união. “Otexto torna-se imagem, em vez <strong>de</strong> ser<strong>um</strong> elemento separado,” diz. Ou seja,Andrew Howard e João Bicker têmabordagens distintas, mas ambosconsi<strong>de</strong>ram crucial dar importânciaàs letras.A Ahab, com <strong>um</strong> ainda curto período<strong>de</strong> existência, já ganhou a atençãoda crítica e dos leitores que, alémda inquestionável qualida<strong>de</strong> literária<strong>de</strong> autores que Portugal <strong>de</strong>sconhecia,elogiam também o sólido projectográfico do Studio Andrew Howard. Ea colecção Minotauro, das Edições70, <strong>de</strong>senhada por João Bicker e AnaBoavida, recebeu prémios internacionais<strong>de</strong> <strong>de</strong>sign.Se estes dois ateliers estão a produzirboa parte do melhor <strong>de</strong>sign <strong>de</strong>livros que se faz em Portugal, comoolham para o trabalho dos outros?Andrew Howard acha que a percentagem<strong>de</strong> trabalhos bem feitos emPortugal não andará longe do queacontece pela Europa. Já João Bickeré mais crítico. Se é essencial fazer livrosque se <strong>de</strong>staquem nas livra-livro pela capatrabalhe com prata da casa e quem encomen<strong>de</strong> capas a especialistas. Eis alguns daqueles quelivraria possa ser <strong>um</strong>a experiência. Gonçalo MiraÍpsilon • Sexta-feira 17 Dezembro 2010 • 19