edição de 19 de dezembro de 2016
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última página<br />
Gogiya/iStock<br />
Então,<br />
é natal<br />
Stalimir Vieira<br />
Com a proximida<strong>de</strong> do Natal e do Ano<br />
Novo, chegam os jobs institucionais,<br />
alegria dos criativos. É a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
vivermos o nosso momento Schopenhauer.<br />
Viramos todos filósofos. Sem medo <strong>de</strong><br />
criarmos paradoxos, nessa fase tudo aquilo<br />
que ven<strong>de</strong>mos o ano inteiro per<strong>de</strong> a importância.<br />
E começamos uma entusiasmada<br />
doutrinação em torno do “verda<strong>de</strong>iro significado<br />
da vida”. Não é formidável? Vejam<br />
o caso do Tempo.<br />
Passamos o ano inteiro lembrando que<br />
tempo é dinheiro, <strong>de</strong> que não<br />
há tempo a per<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> que, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo<br />
<strong>de</strong> como usarmos<br />
o tempo hoje, pior, ou melhor,<br />
será o nosso tempo futuro (como<br />
ensinou o consultor do Conta-<br />
-Corrente na GloboNews: para<br />
nos aposentarmos, basta juntarmos<br />
um milhão <strong>de</strong> reais até os<br />
60 anos que passaremos a viver<br />
com cinco mil por mês...). Chega,<br />
porém, o Natal, e tudo isso<br />
per<strong>de</strong> a força <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> e nos<br />
<strong>de</strong>rretemos em teses que <strong>de</strong>smentem o que<br />
foi dito.<br />
Afirmamos, por exemplo, sem medo <strong>de</strong><br />
errar, que o valor do tempo não está na urgência<br />
dos minutos ou das horas, mas nos<br />
momentos <strong>de</strong> que <strong>de</strong>sfrutamos. A imagem,<br />
intencionalmente, não é a do momento em<br />
que um corretor fecha um belo negócio que<br />
lhe garantirá uma gorda comissão ou o <strong>de</strong><br />
um político embolsando vultosa propina.<br />
“Recuo os<br />
40 e poucos<br />
anos da<br />
minha vida <strong>de</strong><br />
publicitáRio<br />
e peRcebo que<br />
sempRe foi<br />
assim”<br />
Não, os momentos a que nos referimos<br />
não envolvem dinheiro, embora ocorram<br />
em casas bem mobiliadas e efusivamente<br />
iluminadas, como convém à ocasião natalina;<br />
os personagens estejam bem alimentados<br />
e corretamente vestidos; ninguém<br />
transpareça viver apertos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m financeira,<br />
como estar pendurado no cheque especial,<br />
estar renegociando as mensalida<strong>de</strong>s<br />
da escola dos filhos ou procurando emprego<br />
há seis meses. Tudo se passa como se vivêssemos<br />
simplesmente sob a égi<strong>de</strong> do sublime<br />
escambo <strong>de</strong> amor. Não é lindo? Fico<br />
pensando se po<strong>de</strong>ria ser diferente. Recuo<br />
os 40 e poucos anos da minha vida <strong>de</strong> publicitário<br />
e percebo que sempre foi assim.<br />
O chamado espírito natalino funciona<br />
como uma espécie <strong>de</strong> mal disfarçada expiação<br />
do capitalismo. Embora, curiosamente,<br />
ninguém dê coisa nenhuma para ninguém.<br />
Nenhum negócio anuncia: “Aproveite. Pague<br />
qualquer fatura entre o<br />
Natal e o Ano Novo que os juros<br />
serão dispensados”. Não.<br />
A mensagem melosa e virtuosa<br />
convive mansamente com<br />
os juros <strong>de</strong> 315% ao ano. Aliás,<br />
quem algum dia sentiu <strong>de</strong> perto<br />
essa realida<strong>de</strong> tem <strong>de</strong> concordar<br />
com o Tempo, quando ele diz<br />
“eu passo rápido”, “eu não perdoo”...<br />
Fico imaginando se nós, fingindo-nos<br />
<strong>de</strong> sonsos, resolvêssemos adotar<br />
a “filosofia” pregada nesses comerciais<br />
institucionais <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> ano. E concordássemos:<br />
“o que é um boleto, diante <strong>de</strong> um<br />
sorriso?”; “o que é um cheque especial<br />
diante <strong>de</strong> um beijo?”; “o que é uma taxa<br />
<strong>de</strong> emissão <strong>de</strong> extrato, diante <strong>de</strong> um abraço?”<br />
E então começássemos a sorrir, beijar<br />
e abraçar, em vez <strong>de</strong> sofrer com a falta <strong>de</strong><br />
dinheiro ou em vez <strong>de</strong> renovar os empréstimos<br />
para liquidar as nossas dívidas. E, num<br />
gran<strong>de</strong> evento, reunindo milhares <strong>de</strong> endividados,<br />
fizéssemos uma gran<strong>de</strong> fogueira,<br />
a que circularíamos num abraço solidário,<br />
e nela jogássemos todos esses documentos<br />
contábeis que nos <strong>de</strong>sviam do que realmente<br />
importa na vida. No mínimo, ia ser bem<br />
divertido. Pelo menos até janeiro, quando<br />
chegassem as cartinhas do SPC.<br />
Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing<br />
stalimir@gmail.com<br />
66 <strong>19</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2016</strong> - jornal propmark