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EXAME Abril 2020

Nesta edição analisamos o impacto da crise provocada pelo Covid 19 a nível global, no continente africano e em Moçambique, recorrendo à opinião de diversos especialistas. Mas não só. Procuramos também opiniões de como sair dela. A secção Inovação apresenta um conjunto de iniciativas que se estão a desenvolver para o ataque a este vírus. E a resposta só pode vir da inovação.

Nesta edição analisamos o impacto da crise provocada pelo Covid 19 a nível global, no continente africano e em Moçambique, recorrendo à opinião de diversos especialistas. Mas não só. Procuramos também opiniões de como sair dela.
A secção Inovação apresenta um conjunto de iniciativas que se estão a desenvolver para o ataque a este vírus. E a resposta só pode vir da inovação.

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Eugénio António, 40 anos, está<br />

sentado à beira de uma geringonça<br />

que salta à vista: uma<br />

espécie de pequena banca de<br />

madeira, pintada de verde e<br />

com um painel solar por cima. “É um sistema<br />

de carregamento de telemóveis com<br />

energia solar”, explica. Bastam 10 meticais<br />

para carregar cada um a 100%. É assim que<br />

Eugénio está a tentar recomeçar depois<br />

de o ciclone Idai o ter levado ao tapete.<br />

Morava na Praia Nova, o bairro de lata da<br />

cidade da Beira mais exposto à destruição<br />

por estar colado ao mar. Diabético,<br />

vivia a cortar o cabelo. Com a tempestade<br />

a casa desabou, a saúde degradou-<br />

-se e a retenção de líquidos causada pela<br />

diabetes obrigou-o a amputar uma perna.<br />

Foram dias difíceis? “Sim, mas hoje estou<br />

um bocado melhor.”<br />

De uma forma ou de outra, os ciclones<br />

afectaram cerca de 2 milhões de pessoas<br />

em Moçambique e há 100 mil que<br />

foram realojadas em áreas de reassentamento<br />

onde ainda permanecem — espaços<br />

longe das zonas de cheias, onde receberam<br />

tendas, abrigos provisórios, e onde<br />

ONG garantem serviços básicos de saúde,<br />

apoio alimentar e outros de âmbito social.<br />

Eugénio António vive na área de reassentamento<br />

de Mutua, a cerca de 60 quilómetros<br />

da cidade da Beira. Um terreno onde<br />

não havia nada. Agora, há 72 áreas como<br />

esta onde o governo doou parcelas de terreno<br />

aos sobreviventes dos ciclones, para<br />

poderem transformar a tenda provisória<br />

em habitação fixa (ainda com materiais<br />

precários) com “machamba” (horta) que<br />

garanta produção agrícola de subsistência.<br />

Com o seu lote e o posto de carregamento<br />

solar, no local onde nasce o mercado da<br />

nova aldeia, alimenta a esperança de um<br />

novo recomeço para a sua vida. “Gostaria<br />

de voltar a ter um salão” de corte de<br />

cabelo. Para já, mostra um aparador de<br />

cabelo junto às fichas triplas onde carrega<br />

os telemóveis. “Às vezes, quando me pendem,<br />

ainda ‘descabelo’ algumas pessoas.”<br />

Mais abaixo, outro exemplo de empreendedorismo:<br />

Estrela Yuba, 24 anos, mostra<br />

um fogareiro de barro como uma obra de<br />

arte: fazer fogo requer três paus de lenha,<br />

mas com esta nova peça “basta acender<br />

um e já está”. Um grupo de 20 mulheres<br />

realojadas em Mutua passou a ganhar a<br />

vida a fabricar “fogões melhorados”, fogareiros<br />

aliados do combate às mudanças<br />

climáticas para prevenir novos ciclones.<br />

Consomem menos floresta, são mais eficientes<br />

e, mais importante para Estrela,<br />

“dão dinheiro” para comprar comida<br />

e o que mais for preciso para a família.<br />

A ideia de negócio, tal como a de Eugénio,<br />

teve o impulso do Programa das Nações<br />

Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).<br />

“Ajudamos a criar algum emprego,<br />

fazer com que a população faça crescer<br />

algo”, refere Ghulam Sherani, dirigente do<br />

PNUD. O programa apoia-se em organizações<br />

locais para tentar virar a página:<br />

dá dinheiro e treino, ouve o que os residentes<br />

querem fazer e indica os projectos<br />

mais seguros, por exemplo recomendando<br />

a criação de patos em vez de galinhas, por<br />

serem mais resilientes e mais bem pagos<br />

no mercado local. A ideia era de Joaquim<br />

Tom, 32 anos, casado com seis filhos em<br />

casa, aficcionado das aves que trocou<br />

de bom grado a banca de comerciante,<br />

no bairro da Praia Nova, pela criação<br />

de patos. “Eu antes já estava a processar<br />

isso no meu coração, mas lá onde vivia<br />

era uma zona insegura”, confidencia. Por<br />

muito precário que ainda seja o bairro de<br />

Mutua, Ghulam Sherani acredita que será<br />

TER COMIDA AINDA É UMA BATALHA<br />

A desnutrição está quase sempre presente<br />

em Moçambique: a falta de alimentos<br />

diversificados faz com que<br />

metade da população moçambicana<br />

sofra de desnutrição crónica. Mas o<br />

ciclone Idai agravou o cenário no Centro<br />

do país, com perda de campos e<br />

mantimentos, e a desnutrição crónica<br />

passou a desnutrição moderada ou<br />

severa, um nível que reflecte carências<br />

maiores. “Já tenho muitos casos<br />

que estão curados”, conta Madalena<br />

Chuarira, 26 anos, técnica dos Médicos<br />

do Mundo que trabalha em conjunto<br />

com a UNICEF nos cuidados de<br />

saúde prestados aos cerca de 2300<br />

habitantes da área de reassentamento<br />

de Ndeja. O segredo é um suplemento<br />

alimentar entregue às mães em pequenos<br />

pacotes.<br />

Um ano depois do Idai, ter comida<br />

continua a ser uma batalha diária que<br />

quase todos os moçambicanos dizem<br />

que só pode ser vencida com uma<br />

“machamba” — o nome dado às hortas<br />

para produção de alimentos. Há ajuda<br />

humanitária (em géneros ou cheques<br />

alimentares), mas essa chega a cada<br />

vez menos pessoas. A falta de fundos<br />

já obrigou o PAM a reduzir o apoio: em<br />

vez dos habituais 40 quilos de milho ou<br />

arroz entregues por mês a cada família<br />

como produto base para agregados<br />

vulneráveis, desde Fevereiro passaram<br />

a ser distribuídos 20 quilos para cada,<br />

especificou Espinola Caribe, chefe do<br />

PAM na cidade da Beira. “Temos problemas<br />

sérios de fundos. Temos uma<br />

necessidade de 48 milhões de dólares<br />

para podermos continuar a assistir<br />

1,3 milhões de pessoas.” “Estamos<br />

a bater às portas”, acrescentou, uma<br />

vez que, sem essa verba, 525 mil pessoas<br />

“estarão fora do programa, por<br />

falta de fundos”, desde Março. Apesar<br />

de os ciclones já terem acontecido há<br />

um ano, é pouco tempo para as famílias<br />

recuperarem os seus rendimentos<br />

e recuperarem o acesso a comida, referiu<br />

Espinola Caribe.<br />

Há um grupo específico a apoiar: 10<br />

mil crianças com subnutrição severa a<br />

moderada que o Programa Alimentar<br />

Mundial (PAM) e o Fundo para a Infância<br />

das Nações Unidas (UNICEF) contam<br />

apoiar este ano com suplementos<br />

alimentares em Moçambique, a par de<br />

15 mil grávidas e lactantes.<br />

abril <strong>2020</strong> | 59

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