27.06.2020 Views

edição de 29 de junho de 2020

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

STORYTELLER<br />

Mary Rebecca Elliott/Unsplash<br />

Conversa <strong>de</strong> bar<br />

Não sei se terei coragem <strong>de</strong> ir<br />

a qualquer um dos (tantos) que<br />

frequentei até fevereiro <strong>de</strong>ste ano<br />

LULA VIEIRA<br />

Os bares estão começando a abrir. Com a<br />

necessária cautela, distanciando uma<br />

mesa da outra, limitando o número <strong>de</strong><br />

fregueses. Não sei se terei coragem <strong>de</strong> ir a<br />

qualquer um dos (tantos) que frequentei<br />

até fevereiro <strong>de</strong>ste ano.<br />

Pelo que tenho lido e ouvido, estão<br />

abrindo estabelecimentos comerciais que<br />

servem repasto e alguma bebida, evitando<br />

proximida<strong>de</strong>s entre os fregueses. E com<br />

horário! Prefiro sinceramente ficar em casa.<br />

Bar, para mim, é o oposto do que estão<br />

permitindo. O oposto.<br />

Bar, para mim, é aglomeração, é se ir<br />

chegando e receber o convite: “senta aí, cara!”.<br />

O bar é um lugar <strong>de</strong> histórias, on<strong>de</strong> a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar causos e <strong>de</strong> apreciar<br />

bebidas são requisitos fundamentais.<br />

Po<strong>de</strong>-se até apoiar Bolsonaro, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que<br />

o faça com talento e humor. O que, <strong>de</strong> certa<br />

forma, parece impossível.<br />

Mas não há impossíveis em mesa <strong>de</strong><br />

bar. Esta história, passada no Fiorentina, a<br />

pizzaria mais com cara <strong>de</strong> bar que jamais<br />

existiu, envolve Daniel Filho, Edu da Gaita,<br />

Aurimar Rocha, Paulo Pontes, Portinari,<br />

Pedro II e... Lampião.<br />

É a seguinte, amiga leitora, caro leitor.<br />

Estavam à mesa Daniel Filho, Edu da Gaita,<br />

Aurimar Rocha e Paulo Pontes, cada um relembrando<br />

histórias da infância.<br />

Os trabalhos foram <strong>de</strong>vidamente abertos<br />

com o Daniel contando que uma vez sua<br />

bisavó foi convidada para montar um dos<br />

cavalos <strong>de</strong> D. Pedro II, na Hípica Imperial,<br />

e, enquanto a senhora evoluía pela pista,<br />

o imperador gentilmente carregava o filho<br />

<strong>de</strong>la, futuro avô do narrador.<br />

O melhor <strong>de</strong> tudo é que o garoto a certa<br />

altura fez um alegre xixi na roupa <strong>de</strong> D. Pedro<br />

II, que teve <strong>de</strong> mandar pedir no palácio<br />

outra calça <strong>de</strong> montaria.<br />

Ou seja: o avô <strong>de</strong> Daniel, com seis meses<br />

<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, já se revelava um republicano<br />

convicto, capaz <strong>de</strong> colocar o imperador numa<br />

situação <strong>de</strong>licada.<br />

O Paulo Pontes, com a cara amarrada <strong>de</strong><br />

nor<strong>de</strong>stino bravo, vestindo umas sandálias<br />

<strong>de</strong> couro parecendo figurante <strong>de</strong> filme <strong>de</strong><br />

cangaceiro, ouvia com expressão <strong>de</strong> infinita<br />

tristeza.<br />

Daí o Edu da Gaita contou que tinha feito<br />

uma música sobre um poema <strong>de</strong> Pablo<br />

Neruda e, quando tocou para o Portinari,<br />

Candinho ficou tão encantado que fez imediatamente<br />

um quadro inspirado na composição.<br />

E o Neruda, mais tar<strong>de</strong>, conhecendo a<br />

música e a história, assinou com Pilot sobre<br />

o quadro, agra<strong>de</strong>cendo a lembrança dos<br />

dois. Ou seja: Edu tinha em casa um quadro<br />

<strong>de</strong> Portinari com autógrafo do Pablo Neruda.<br />

Paulo Pontes ouvia calado.<br />

Daí Aurimar Rocha contou que quando<br />

era menino morava na Rua Paissandu, caminho<br />

habitual <strong>de</strong> Getúlio Vargas indo para<br />

o Palácio do Catete.<br />

Aurimar garantiu que, toda vez que o<br />

presi<strong>de</strong>nte passava, ele ficava em posição<br />

<strong>de</strong> sentido, batendo continência. E Getúlio<br />

retribuía a saudação, também solene. E,<br />

em seguida, o garoto e o ditador trocavam<br />

umas i<strong>de</strong>ias. E Paulo Pontes cada vez mais<br />

acabrunhado.<br />

Quando chegou a vez <strong>de</strong>le contar sua<br />

história, não pareceu encontrar nada <strong>de</strong><br />

empolgante. Ficaram todos esperando ele<br />

cavoucar na memória alguma coisa à altura<br />

<strong>de</strong> um imperador mijado, um quadro <strong>de</strong><br />

Portinari autografado pelo Neruda ou do<br />

garoto amigo do Pai dos Pobres.<br />

Depois <strong>de</strong> muito tempo pensando, Paulo<br />

pediu mais uma birita, olhou o mar, pigarreou,<br />

acen<strong>de</strong>u um cigarro e começou: “Eu<br />

tenho um primo, lá na Paraíba, que comeu<br />

o cu do Lampião…”<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

20 <strong>29</strong> <strong>de</strong> <strong>junho</strong> <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!