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Sem título-1 - Visão Judaica

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Sérgio Feldman *<br />

proximam-se as Grandes<br />

Festas e se faz necessário<br />

realizar o “Cheshbon Nefesh”,<br />

o acerto de contas<br />

com D-us e com o próximo.<br />

Neste período refletimos<br />

sobre o que fizemos no ano anterior<br />

e tratamos de refazer nossas relações,<br />

pedir perdão e tentar se tornar<br />

seres humanos mais elevados,<br />

justos e piedosos.<br />

Neste espírito, escreverei meu<br />

último artigo sobre as mulheres da<br />

Bíblia. Refletir sobre as distorções<br />

que foram feitas na imagem feminina,<br />

tendo como referência o Judaísmo<br />

e tentar perceber que as mulheres<br />

na Bíblia Hebraica (Tanach) não<br />

eram consideradas, seres inferiores,<br />

e tampouco eram excluídas do convívio<br />

social e espiritual. A exclusão<br />

social da mulher surgiu num período<br />

posterior, fato que eu tento demonstrar<br />

em um artigo acadêmico,<br />

que deve ser publicado numa revista<br />

de uma universidade do sul do<br />

Brasil (UCS). Neste breve artigo tecerei<br />

reflexões simples e ilustrarei<br />

minhas interpretações e opiniões<br />

com citações bíblicas. Mas não pretendo<br />

esgotar o tema.<br />

Nos estudos de História que se<br />

dedicam às questões do feminino,<br />

denominados “Estudos de Gênero”<br />

(que abarcam também outros gêneros)<br />

concebe-se a definição de espaços<br />

abertos e fechados e da liberdade<br />

de circular e de ser ou não<br />

ser ativa nestes espaços, como um<br />

parâmetro para definir a autonomia<br />

da mulher. Um destes é o espaço<br />

dito privado que seria o espaço controlado<br />

da família, do lar e do clã.<br />

Um espaço restrito e controlado. O<br />

outro espaço seria o público, que<br />

seria o espaço da sociedade em geral,<br />

da rua, dos recintos externos a<br />

casa. Nos Estudos de Gênero define-se<br />

que as mulheres foram sendo<br />

gradualmente excluídas do espaço<br />

público e controladas dentro do<br />

espaço privado, na família ou clã, e<br />

dentro da casa. Coloca-se uma cerca<br />

em torno da mulher e limitam-se<br />

suas funções. Um exemplo comum é<br />

a da mulher ateniense. Consideradas<br />

inferiores e incapazes tornamse<br />

reclusas a um espaço da casa denominado<br />

gineceu. O que ocorre no<br />

caso das mulheres da Bíblia?<br />

As narrativas da Bíblia são de um<br />

espaço de tempo muito extenso. As<br />

mulheres da Bíblia hebraica ou Tanach<br />

viveram dentro de um longo período.<br />

Entre Sara e Betsabé (Bat Sheva)<br />

há cerca de oitocentos anos. Se<br />

for entre Sara e as mulheres da época<br />

de Jeremias haveria cerca de mil<br />

e trezentos anos. Uma imensidão de<br />

tempo. As coisas mudam em um século,<br />

imagine em dez a treze séculos.<br />

Ainda assim, faremos uma impre-<br />

VISÃO JUDAICA<br />

Mulheres da Bíblia (III)<br />

agosto de 2007 Elul 5767 / Tishrei 5768<br />

cisa generalização, visto termos pouco<br />

espaço para escrever.<br />

As mulheres do período dos patriarcas<br />

e dos períodos seguintes<br />

(até o período dos Reis e Profetas)<br />

eram socialmente ativas e circulavam<br />

pelos espaços públicos. Alguns<br />

exemplos: o namoro entre<br />

Moisés e Séfora (Tzipora) ou os<br />

encontros de Jacob e Raquel ou de<br />

Eliezer com Rivka (Rebeca) nos<br />

poços da cidade demonstram que<br />

as mulheres livres circulavam pelos<br />

espaços das aldeias e das cidades<br />

em busca de água, por exemplo. Vale<br />

ressalvar que todos estes exemplos<br />

são de fora da Terra de Israel. A arqueologia<br />

e a história provam que<br />

isto é comum no mundo bíblico.<br />

Argumentos podem ser ditos que<br />

isto é parte de uma função familiar<br />

e de uma divisão de funções e trabalho,<br />

na qual a mulher buscava a<br />

água nas fontes, mas não representa<br />

uma participação social ou religiosa.<br />

Isso pode ser refutado com<br />

alguns exemplos. Um deles é sensível<br />

e exemplar: No primeiro capítulo<br />

do Primeiro Livro de Samuel, Elcana<br />

leva suas duas esposas, Penina<br />

e Hana (Ana) ao santuário de Siló<br />

(Shiló), aonde efetuavam oferendas<br />

de graças a D-us. Lá, Hana realiza,<br />

aquilo que se convencionou definir<br />

Raquel, uma mulher do período dos Patriarcas<br />

como a “primeira oração (reza)” da<br />

Bíblia. Naquele período os cultos<br />

eram celebrados através de sacrifícios.<br />

Ela pede através de oração<br />

balbuciada a D-us que lhe dê um filho,<br />

já que ela era estéril e a outra<br />

esposa de Elcana era fértil. E com a<br />

intercessão de Eli (Heli) ela concebe<br />

com seu esposo, o pequeno Samuel.<br />

Hana circula nos serviços religiosos,<br />

dialoga com o sacerdote e<br />

é ativa na sociedade na religião.<br />

Outro exemplar fato é a profeta e<br />

“juíza” Débora (Dvora) que faz julgamentos<br />

e lidera o povo numa batalha,<br />

mesmo tendo um “general” (ou<br />

oficial militar) denominado Barak, a<br />

liderar “fisicamente” o seu exército.<br />

E ainda por cima a glória da execu-<br />

ção do líder inimigo paira sobre a<br />

figura polêmica de Jael (Yael), num<br />

texto que determina a forte presença<br />

e o status privilegiado das mulheres<br />

no mundo bíblico.<br />

Outra personagem feminina de<br />

presença social e iniciativa é a moabita<br />

Rute. Uma das personagens<br />

mais marcantes do período de transição<br />

entre a o nomadismo e a sedentarização<br />

e que reflete o conceito<br />

de não discriminação do não<br />

judeu que se agrega ao povo e a<br />

religião judaica. Rute não nasceu<br />

judia, mas se “converte” (não havia<br />

processos de conversão naquela<br />

época, é óbvio). E se torna a bisavó<br />

do rei David e tronco da casa<br />

real de Judá (Iehudá). De seus descendentes<br />

sairá o Messias. Ou seja,<br />

uma “não judia”, que se insere na<br />

raiz da casa de David. Uma mulher<br />

de personalidade que opta por seguir<br />

sua sogra, após a morte de seu esposo.<br />

Uma opção que vem marcada pelos<br />

dizeres: “[...] Teu povo será meu<br />

povo; teu D-us será meu D-us” (Rute,<br />

1, 16). Rute circula nos espaços públicos<br />

a busca de restos da colheita<br />

(respigar nos campos) que permita a<br />

ela e a sua idosa sogra sobreviverem.<br />

Contata com homens e dialoga com<br />

eles. E participa do festival de Shavuot<br />

aonde se aproxima de seu futuro<br />

marido, Boaz, que lhe permitira<br />

respigar em seus campos. Ou seja, as<br />

mulheres não são reclusas e tampouco<br />

excluídas dos espaços públicos.<br />

Num período bem mais “recente”<br />

da história bíblica, temos a narrativa<br />

de Judite, que executa o general<br />

assírio Holofernes. Mescla de<br />

lenda e história, repleta de realidade.<br />

Uma líder espiritual e comunitária<br />

que faz jus a um livro e a reverencia<br />

da memória.<br />

A opinião das mulheres era acatada<br />

até na sociedade patriarcal. Na<br />

crise conjugal instaurada na casa de<br />

Abraão devido aos conflitos entre<br />

Sara e a concubina Agar, percebe-se<br />

que a palavra de D-us, define o respeito<br />

pela “sabedoria da esposa” e<br />

sua proeminência. Sara exige que<br />

Abraão expulse de casa a serva Agar<br />

e seu filho Ismael (que ela tivera com<br />

o próprio Abraão), pois percebe que<br />

isto não seria benéfico a Isaac (Itzchak),<br />

o pequeno filho de Abraão<br />

com Sara. Abraão que ama ambos os<br />

filhos não quer perder o contato com<br />

Ismael. Sara pressiona e D-us conclui<br />

dizendo que o patriarca acatasse<br />

suas palavras: “[...] em tudo o<br />

que Sara te diz, ouve a sua voz; porque<br />

em Isaac será chamada a tua<br />

descendência”. (Gênesis, 21, 12).<br />

Nem o patriarca poderia superar a<br />

mulher na sua sabedoria. Sendo este<br />

um modelo arquetípico pode-se concluir<br />

que se trata de uma lição para<br />

os homens, no sentido de ouvirem a<br />

“sensibilidade” feminina ao tomarem<br />

alguns tipos de decisão.<br />

O modelo mais clássico de mulher<br />

atuante na política também é o<br />

de uma mulher “reprimida” e inserida<br />

numa sociedade patriarcal e que<br />

aparentemente se trata de uma mulher<br />

“objetificada” (num termo anacrônico,<br />

ou seja, não adequado ao<br />

mundo antigo).<br />

A rainha Ester é o modelo de uma<br />

mulher numa sociedade oriental (persa<br />

ou helenística) aonde o status feminino<br />

é de inferioridade. É, de fato,<br />

externa à sociedade bíblica: vive na<br />

Pérsia e já num mundo em transformação.<br />

Forçada a participar de um<br />

concurso de beleza e colocada num<br />

palácio, torna-se reclusa e controlada.<br />

Não pode sequer ver o Rei, se<br />

não for convidada por ele. Ela é mais<br />

uma “preferida do harém”, que a Rainha<br />

no sentido pleno. Ela se “faz<br />

rainha” e atua em surdina, elaborando<br />

uma teia de relações que salvam<br />

seu povo e levam o inimigo Haman à<br />

forca. Modelo e arquétipo de uma<br />

mulher numa sociedade na qual, as<br />

transformações sociais levaram a<br />

exclusão da mulher dos espaços<br />

públicos e a enclausuraram.<br />

Ainda assim ela tem o controle<br />

dos fatos e na hora da<br />

necessidade sabe articular<br />

as coisas e salvar seu povo.<br />

Um ensinamento às mulheres<br />

que todos os anos ouvem<br />

a leitura da Meguilá de<br />

Ester para que saibam como<br />

manter o controle das coisas,<br />

mesmo sem ter a hierarquia e o<br />

poder familiar a seu favor. Este texto<br />

já se insere num período que extrapola<br />

o mundo bíblico: é reflexo<br />

das mudanças ocorridas no contato<br />

com o mundo persa e com o mundo<br />

Continua na página 4<br />

3<br />

Naomi e Rute, detalhe de ilustração feita em 1795 por William Blake, no<br />

Victoria and Albert Museum de Londres<br />

Sérgio Feldman<br />

* Sérgio Feldman é<br />

doutor em História pela<br />

UFPR e professor de<br />

História Antiga e Medieval<br />

na Universidade Federal do<br />

Espírito Santo, em Vitória, e<br />

ex-professor adjunto de<br />

História Antiga do Curso<br />

de História da Universidade<br />

Tuiuti<br />

do Paraná.

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