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Escritoras Mineiras: Poesia, Ficção e Memória - FALE - UFMG

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títulos Eros travestido, de 1985; O que é escrita feminina, de 1991; A traição<br />

de Penélope, de 1994; e A branca dor da escrita, de 2003. Lucia é também<br />

pesquisadora da obra de Maria Gabriela Llansol, sobre quem já publicou<br />

ensaios crítico-teóricos. Migrando deste cenário acadêmico para o literário,<br />

Lucia também se destaca como autora de romance, conto, poesia e livros<br />

infanto-juvenis. Lembro alguns de seus títulos: A falta e Desiderare, de<br />

1997; Nunca mais e Livro de cenas fulgor, de 2000; Contos de amor e não,<br />

de 2004; A mendiga, de 2005; e O amor não vazará meus olhos, de 2006.<br />

Na literatura infanto-juvenil, destaco as seguintes publicações: Julia-todaazul,<br />

de 1993; O fazedor de palavras, de 1996; O homem da lua de abril, de<br />

2001; A menina e a bolsa da menina, de 2004; e Nick cão: o fim, de 2007.<br />

Diante dessa diversidade de gêneros, optei por realçar alguns traços<br />

que indicam uma experiência de escrita: experiência que pode ter sido vivida<br />

ou, simplesmente, re-criada no modo de dizer/escrever. Para isso, foram<br />

selecionadas duas obras de Lucia Castello Branco – A falta e Livro de cenas<br />

fulgor – para que, a partir delas, possamos refletir sobre seu estilo literário.<br />

Não saberia classificar o livro A falta em um único gênero, uma<br />

vez que ele se nos apresenta ora como fragmentos de um romance, que<br />

contemplam a história dispersa e faltosa entre mãe e filha; ora como<br />

contos independentes, que abarcam essa mesma tensão. Diante dessa<br />

impossibilidade de uma classificação única, sugiro ao leitor, legente – termo<br />

apreciado pela própria autora –, que ele defina, por si mesmo e através do<br />

seu envolvimento com o texto, esse tipo de escrita, que se constitui a partir<br />

de variações sobre um mesmo tema: a falta. No livro, os fragmentos, as<br />

descontinuidades, o indizível, “as discretas infidelidades ao vivido”, tudo<br />

isso compõe um cenário para o qual nos rendemos ao precioso exercício<br />

de re-invenção das variadas formas de amor e de amar.<br />

Segundo Freud, as mulheres, no trajeto de sua história subjetiva,<br />

precisam reencontrar-se com a figura materna para poderem, então, alcançar<br />

a identidade feminina. O livro A falta nos oferece essa possibilidade<br />

de entrar no íntimo da subjetividade feminina, marcado pela dor e pela<br />

melancolia de quem já se sentiu, de alguma forma, rejeitada pelo primeiro<br />

amor materno. É um livro em que as mulheres são levadas a se reconhecerem<br />

enquanto seres faltosos, lacunares, em permanente incompletude.<br />

Realçar essa relação entre mãe e filha é a possibilidade de reconhecer,<br />

nela, o fragmento do ser que experimenta a rejeição, a diferença, a falta de<br />

afeto, a estreiteza entre as relações. Por outro lado, é também uma maneira<br />

de rever as formas de amar, de desfragmentar barreiras. A necessidade<br />

de afeto é o cerne das narrativas, e a autora não nos poupa de grandes<br />

reflexões. O livro é eminentemente feminino, e, talvez por isso, ao eleger<br />

o discurso de suas narradoras, Lucia nos coloca diante de questões que<br />

estão para além do dizível, uma vez que o indizível é a essência da escrita<br />

feminina – segundo teoria defendida pela autora. Parece ser necessário<br />

abandonar o saber crítico e entrar em outra dimensão: a do sentir, que<br />

rouba as palavras diante de nossas sensações: uma escrita dos afetos, ou,<br />

mais que isso, uma escrita súplice por afeto. Para isto, cito:<br />

Lá está nossa mãe, do outro lado do vidro, cá estamos nós, os<br />

outros, os outros filhos, eu e meu irmão, meninos. Em vão tentamos<br />

ouvir dela alguma coisa que nos apascente, em vão buscamos<br />

palavras novas para agradar seu gosto por vocabulários esdrúxulos.<br />

Inútil. O vidro entre nós demarca uma superfície, uma película absurda<br />

que não conseguimos atravessar. “Mamãe”, eu tive vontade<br />

de dizer. “Não vês que morro aos pedaços, se não lançares em<br />

direção a nós o teu olhar?” “Não vês que estou condenada à fome<br />

e à sede, a pão e água, se não me disseres, pelo menos uma vez,<br />

minha filha?” Nossa mãe não responde, porque, afinal, nada lhe foi<br />

indagado. Nós, meninos criteriosamente penteados pelas mãos de<br />

um pai, jamais invadiremos seu quarto luminoso onde ela pensa<br />

luzir, sol negro a cegar nossos olhos. 1<br />

Como se pode ver, são colocadas, diante de nós, questões que<br />

realçam a falta de ser, a falta do que dizer, as lacunas, as margens. Em<br />

uma outra passagem, essa angústia da falta, do não ter, da solidão e do<br />

pressentir, é intensamente narrada:<br />

1 CASTELLO BRANCO. A falta, p. 61.<br />

Era mais um dia em que eu havia acordado com um vago frio no<br />

estômago. Uma velha dor, com a qual já me habituara mas que<br />

sempre me trazia estranhas reminiscências e incontroláveis premonições.<br />

“Sei que vou sofrer hoje”, eu então pensava. E mesmo<br />

que isso não fosse exatamente verdade, mesmo que nada de<br />

sobrenatural viesse a me acontecer, aquilo, aquela dor sem explicação,<br />

já consistia num absurdo sofrimento. Esse medo, que desde<br />

100 Estilo, poética e vida Lucia Castello Branco: estilo, escrita e representação literária 101

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