Escritoras Mineiras: Poesia, Ficção e Memória - FALE - UFMG
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a buscar seu destino. Apesar de apresentar aspectos inovadores para a<br />
época, a obra guarda certos ares de romantismo: é o amor por Alemão<br />
que libertará a protagonista de todos os seus medos e fantasmas.<br />
No romance A flor do tempo, tem-se um panorama diversificado<br />
de tipos e situações humanas que se cruzam, num entrelaçamento de<br />
várias histórias. Obra de caráter nitidamente social, há momentos em que<br />
remonta a Vidas secas, de Graciliano Ramos, pela familiaridade de Fafá,<br />
protagonista, com “o menino mais velho”, em suas divagações, e em outros<br />
lembra O cortiço, de Aluísio Azevedo, com seus bêbados e a miséria<br />
humana por todos os lados. Há até uma Baiana no texto de Bárbara de<br />
Araújo, mas que, diferentemente da Rita Baiana, que conduzia os homens<br />
à perdição, era motivo apenas de alegria entre os homens.<br />
Dividido em três partes, o primeiro capítulo, “Um homem discursa na<br />
praça”, apresenta uma situação que irá deflagrar uma série de acontecimentos<br />
que, na segunda e terceira partes, emaranham-se. Como o título sugere,<br />
um desconhecido faz um discurso em praça pública contra as autoridades<br />
políticas e contra Deus, no que é interrompido por um grito na multidão –<br />
“Deixa Deus com seu mundo, vagabundo!” O grito de João Abílio provoca<br />
uma discussão entre um casal de namorados, favorecendo o envolvimento<br />
da moça, Minerva, com o Doutor Pedreira, que, distraído com o discurso do<br />
moço e a observar a moça, quase atropela um menino, Fafá, a quem salvará<br />
adiante no enredo quando este sofre um acidente de bicicleta.<br />
A primeira parte do enredo traça o perfil destas e de outras pesonagens<br />
que o compõem. A segunda parte, “Ainda o mundo do menino”, mostra<br />
os sonhos e as mazelas na vida de um menino curioso, Fafá. Morador do<br />
morro – que, com suas casas e tipos humanos variados, destaca-se dentre<br />
os cenários do romance – que a todos conhece e que de tudo faz para<br />
sobreviver, seu sonho maior talvez seja o frango assado que vê rodando<br />
num espeto em frente a um bar. Certo dia, desafia a lei e, numa tentativa<br />
de furto, acaba por ir parar na delegacia. É quando se desenrola uma das<br />
cenas mais pungentes do romance: o menino, mudo, cabisbaixo diante do<br />
delegado, o vê destroçar o frango numa cena em que fica subentendida a<br />
ideia de que o mais forte, o detentor da lei, sempre subjuga o mais fraco:<br />
Apanhou uma folha de processo, abriu-a sobre a mesa. Foi até a pia<br />
e lavou as mãos com cuidado e atacou o frango. O seu Delegado!...<br />
Arrancou as fatias brancas do peito, os santo-antônios, chupou uma<br />
asinha, empunhou as coxas, separou com cuidado as carninhas<br />
das costelas, foi deixando a pelinha de lado. Mais uma coxa, mais<br />
o encontro, as perninhas, mais outra asa, o sobre. O pescoço. A<br />
destruição era total. Só restavam os ossos. As peles e os pés.<br />
Levantou-se, voltou à pia, deu um arroto, lavou as mãos. E chupou<br />
os dentes, arrancando com a ponta da unha do dedo mínimo um<br />
fiapo enganchado num deles, pensando:<br />
– Eu devia ter mandado buscar uma geladinha.<br />
Sentou-se novamente e começou a fazer um embrulho do restolho,<br />
quando deu com os olhos no Fafá [...]<br />
– Menino, aqui tem umas peles, você gosta? Leva as peles, menino!<br />
Tem os pés também...<br />
– Não quero não senhor, obrigado. Saiu [...]<br />
O frango tinha, agora, um gosto amargo. Não tinha visto o menino,<br />
encarapitado no banco. E não sendo um mau sujeito, teve de<br />
repente um gesto de bondade. Consultou a carteira e chamou o<br />
guarda. [para que buscasse o menino] [...] O Delegado devolveu<br />
a carteira ao bolso, desapontado, mas ao mesmo tempo aliviado<br />
de não ter que gastar os duzentos ou mais para o frango do Fafá,<br />
o sonho do Fafá. 5<br />
Na terceira parte, “A flor do tempo”, todas as histórias que compõem<br />
a narrativa e que, de diferentes modos, convergem para a história<br />
do menino Fafá, acabam por se resolver positivamente. Há um modo de<br />
conciliação em todas essas micronarrativas, culminando com o último<br />
capítulo, “Feliz Natal para todos!” A própria menção ao Natal, época de<br />
renascimento espiritual, já é um elemento temporal que corrobora essa<br />
ideia de que, apesar das dificuldades – como por exemplo o desentendimento<br />
de Minerva com o namorado, o acidente de Fafá, a má perspectiva<br />
profissional de João Abílio –, para tudo existe uma solução.<br />
Os livros de Bárbara de Araújo não têm reedições recentes, e hoje<br />
restam poucos exemplares em sebos esparsos no Brasil. A pouca divulgação<br />
da obra contribuiu decisivamente para que, com o passar do tempo, a<br />
escritora caísse no esquecimento, e, sabemos, nem sempre o critério de<br />
5 ARAÚJO. A flor do tempo, p. 40-42.<br />
64 <strong>Ficção</strong> e poesia Diversidade na literatura mineira: a escrita de Bárbara de Araújo 65