Escritoras Mineiras: Poesia, Ficção e Memória - FALE - UFMG
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menina eu aprendera a chamar de “dor de medo de ter medo”, me<br />
perseguiria então pelo resto da vida. 2<br />
Em outro fragmento, intitulado “Introdução à mãe”, cito a mãe<br />
narradora se autoapresentando aos desafetos, à filha, realçando-lhe suas<br />
in-diferenças:<br />
porque sempre foste uma menina franzina e feia, lembro-me de ter<br />
dito a teu pai: esta menina caminhará de costas, nadará contra as<br />
correntezas, jamais aceitará um alimento de minha mão ou minha<br />
boca, jamais pronunciará palavras toscas que não brilhem como seu<br />
nome [...] Por que não cantas também, minha filha? Ao invés, escreves,<br />
queres com o traço alguma coisa da ordem do amor maior?<br />
No princípio era o verbo, dizem eles, e eu penso que no princípio o<br />
verbo era a voz. Mas agora a voz me cala e as palavras morrem na<br />
minha boca. Então te escrevo esta introdução: introdução à mãe.<br />
Ainda passas geléia de morango nas tuas palavras, ou come-as<br />
secas e quebradiças como as minhas? Jamais te perdoarei não me<br />
amares do amor que não te dou, jamais bordarei túnicas para teus<br />
filhos que jamais serão meus netos. Ao invés, direi ao doutor que<br />
me injete doses de alopático calor nas veias, ou que me ejete e<br />
que eu seja lançada como um móbile pelos ares. 3<br />
Ainda em outros fragmentos, o leitor encontra alusões expressivas<br />
a escritoras como Virginia Woolf, Hilda Hilst, Maria Gabriela Llansol,<br />
Florbela Espanca, Clarice Lispector, dentre outras que, de certa forma,<br />
também participam desse diálogo legitimador entre grandes mães, mulheres,<br />
escritoras.<br />
Ao contrário da densidade das tensões realçadas no livro A falta,<br />
podemos ver, em Livro de cenas fulgor, a leveza com que Lucia se apropria<br />
da poesia para dizer da impossibilidade do tudo dizer, do tudo realçar, numa<br />
atitude de sensibilizar, emocionalmente, seus leitores. Segundo ela, este livro<br />
nasceu de sua experiência enquanto leitora de duas grandes escritoras: Sei<br />
Shonagon e Maria Gabriela Llansol, a primeira nascida no Japão, por volta<br />
do ano de 965, e a segunda nascida em Portugal, em 1940. Ambas dotadas<br />
de obras singulares, de rara poesia, que ao mesmo tempo encanta e atormenta<br />
aqueles que as leem, ou seja, os seus legentes, como diz Llansol.<br />
Neste livro, a autora enumera, poeticamente, em seu caderno de<br />
contemplações, as coisas em suas mais diversas manifestações, como,<br />
2 CASTELLO BRANCO. A falta, p. 37.<br />
3 CASTELLO BRANCO. A falta, p. 41-42.<br />
por exemplo: coisas agradáveis, coisas desagradáveis, coisas más, coisas<br />
preciosas, dentre várias outras, valendo ressaltar que essa listagem já<br />
povoava o imaginário de Lucia desde a sua infância. Segundo Lucia, uma<br />
cena fulgor pode ser “uma pessoa que realmente existiu”, uma frase, um<br />
animal, uma quimera. Assim, ela constrói seu livro a partir de listas de<br />
cenas fulgor de coisas e situações tomadas em sua excelência: frases,<br />
desejos, coisas boas ou ruins, sanções, dentre outras. Como exemplo<br />
dessa enumeração voluntária, instigada pelo ser poético de Lucia, cito:<br />
II. COISAS QUE TRAZEM UMA DOCE<br />
LEMBRANÇA DO PASSADO:<br />
Um resto de perfume no lenço em que não<br />
enxugamos aquelas lágrimas<br />
Rosas secas, nas páginas amarelas do livro<br />
Objetos que serviam para a festa das bonecas<br />
O bilhete que um dia escrevemos para nossos<br />
pais<br />
Um dia de chuva, em que nos entediamos<br />
A pena de um falcão que voou rumo a Lisboa<br />
Uma árvore que distribui as folhas pelos<br />
ramos de modo que nenhuma escape do sol4 Ainda realçando os momentos de contemplação, leia-se:<br />
VII. COISAS QUE ENCHEM DE<br />
ANGÚSTIA:<br />
4 CASTELLO BRANCO. Livro de cenas fulgor.<br />
5 CASTELLO BRANCO. Livro de cenas fulgor.<br />
Observar a marcha dos cavalos<br />
Amigos doentes, ou subitamente<br />
transtornados<br />
Uma criança que chora, impedida de falar<br />
Quando uma pessoa que detestamos se<br />
aproxima de nós<br />
Um belo livro, que não acaba nunca 5<br />
102 Estilo, poética e vida Lucia Castello Branco: estilo, escrita e representação literária 103