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Escritoras Mineiras: Poesia, Ficção e Memória - FALE - UFMG

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acredita que as coisas podem ser diferentes. Lizza não esmorece, ela sabe<br />

que, mesmo no escuro, é possível ver a luz, é possível ouvir uma canção<br />

natalina que nos lembre dos tempos felizes, é possível encontrar ajuda de<br />

onde não se pode mais imaginar.<br />

O Ancoradouro surge em contraposição às mazelas causadas pela<br />

guerra. Linearmente, a narrativa nos leva a Minas Gerais. Belo Horizonte<br />

é retratada na obra como o porto seguro da protagonista e de sua família.<br />

Depois de uma via sacra por diversas cidades húngaras e alemãs, Lizza<br />

chega, finalmente, ao Brasil. A guerra agora é apenas uma sombra, um<br />

passado que deixa traumas e que deve ser superado. Metaforicamente,<br />

a concepção de Ancoradouro nos remete aos abrigos e amigos que, a<br />

todo momento, estiveram prestes a ajudar na luta contra a guerra, pela<br />

sobrevivência, por encontrar no trágico um relampejo de alegria que<br />

reascendesse a esperança.<br />

Esse testemunho revela a maldade, a exploração, a corrupção e<br />

a ganância, mostrando uma faceta do ser humano que age mal não só<br />

pela guerra, mas pela índole. Paulini, nesta obra, mostra que a guerra<br />

desnuda as pessoas, que nesse ambiente é possível ter acesso aos comportamentos<br />

mais vis da humanidade. Isso fica claro na passagem em<br />

que Lizza reconhece amigos que vão salvá-los do bombardeio e, ao ver<br />

esse gesto, reflete:<br />

O tempo passou e eu não sabia quanto. Quatro estudantes<br />

chegaram com duas macas e nos colocaram entre cobertores e<br />

começaram a triste jornada através das ruínas [...] Eles foram<br />

os anjos bons da nossa vida. Eu sabia que essa espécie devia ser<br />

rara, pois o espaço já foi todo tomado por anjos maus. Sabia também,<br />

naquele dia, que algo enguiçara na humanidade e iria trazer<br />

inúmeras complicações. Que aquelas ruínas dificilmente seriam<br />

removidas [...] Como e quem vai ter forças para lutar contra os<br />

males, a violação dos direitos, a escravidão, a destruição, a dor?<br />

Quem vai defender os direitos humanos? Certamente sumiram os<br />

líderes e os profetas, e será difícil achar os sábios. Vamos sofrer<br />

muito até a gente se encontrar com o próximo. Não com aqueles<br />

que nos ajudaram. Seria fácil. Como vai ser quando tivermos que<br />

estender a mão para aquele que apertou os botões lá em cima? 5<br />

Mesmo abordando temáticas com essa profundidade e dureza, a<br />

suavidade da pintora não é deixada de lado. Henriqueta Lisboa, ao comen-<br />

5 PAULINI. Ancoradouro, p. 415.<br />

tar sobre a coleção de desenhos a nanquim de Lívia Paulini – impressões<br />

resultantes de suas viagens – afirma que “o conjunto é perfeitamente<br />

harmonioso na sobriedade das linhas, na pureza das formas, na graça dos<br />

movimentos, embora variados e contrastantes, alguns severos como os<br />

do velho Mundo, outros amenos como os de Surinam”. 6<br />

A poeta ainda reconhece que Paulini é uma artista pela sensibilidade<br />

singularmente delicada, “seu desenho fica às vezes suspenso na<br />

área branca, sem nenhuma quebra de ritmo, para efeito de sugestão”. 7<br />

Sua arte oscila entre o visível e o invisível e tais colocações são atribuídas<br />

também à Literatura. Lisboa traduz as telas de Lívia Paulini em duas<br />

palavras: ternura e simplicidade. Tais aspectos são bem latentes nos<br />

poemas. A reunião de 25 poemas apresentados em Pouso-repouso, de<br />

2006, pode ilustrar esses comentários. Temas como natureza e guerra<br />

voltam a aparecer associados ao olhar deslumbrante do estrangeiro que<br />

se maravilha diante de imagens nativas simples. Elizabeth Rennó, ao<br />

prefaciar o livro, afirma que a poesia da Sra. Paulini “brota do imo de sua<br />

alma de artista. A poeta expressa o sentir através da linguagem vibrante,<br />

que perfura as palavras e provoca a reflexão do autor.” 8<br />

As obras de Lívia Paulini, desde os ensaios às pinturas, traduzem o<br />

que, muitas vezes, parece indizível. Podemos ver como são tênues nossos<br />

laços, nossas vidas e nossas convicções. Em certas situações, uma verdade<br />

até então convicta se desmantela e nos assustamos diante de uma batalha:<br />

seja a do front, seja a íntima. O testemunho é sempre ambíguo. Quem vive<br />

o trauma necessita compartilhá-lo, mas sofre duplamente por reviver o<br />

que, teoricamente, deveria ser esquecido, e também por saber que outros<br />

poderão sofrer com a dimensão da narrativa e do que de fato aconteceu.<br />

Lívia Paulini consegue levar o leitor ao âmago da dor da guerra sem a<br />

atmosfera repressiva que ela reproduz. Ancoradouro é um livro-escola,<br />

uma leitura transformadora, uma lição de vida, uma lição de vivência.<br />

6 PAULINI. Henriqueta Lisboa, p. 8.<br />

7 PAULINI. Henriqueta Lisboa, p. 8.<br />

8 PAULINI. Pouso-Repouso, p. 5.<br />

56 <strong>Memória</strong> e poética Lívia Paulini: memória, ruínas e lirismo 57

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