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Escritoras Mineiras: Poesia, Ficção e Memória - FALE - UFMG

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Você me deixe viu?! Vou bater o meu tambor!, de que trataremos em outra<br />

oportunidade. À época do lançamento, o livro foi uma grata surpresa no<br />

mercado editorial, uma vez que os mil exemplares publicados esgotaram<br />

em apenas dez meses. Composto por 24 textos, entre contos e crônicas,<br />

Cada tridente em seu lugar é dividido em três partes. Em conversa realizada<br />

via e-mail em novembro de 2008, a autora revela que os textos<br />

que compõem a obra são marcados pelo seu pertencimento racial e pela<br />

sua identidade, e objetivam “que as pessoas negras possam também se<br />

reconhecer, sem que para isso tenham de produzir um discurso direto e,<br />

em muitos casos, sem literariedade”.<br />

A primeira parte do livro dedica-se a desvelar a intolerância e os<br />

preconceitos que circundam as religiões de matriz africana, e que mesmo<br />

assim continuam a ser seguidas por muitos brasileiros. Tomamos como<br />

exemplo “Licença aos meus que já foram” e “O cobrador de ônibus e o<br />

deus-vaca”. No primeiro texto, a forma leve e sutil da escrita de Cidinha<br />

da Silva revela a vivacidade das tradições africanas na espiritualidade dos<br />

brasileiros:<br />

Uma avó tinha devoção às almas. Contava que uma vez lhe roubaram<br />

uma trouxa de roupa limpa, passada, pronta para entregar. O<br />

roubo foi à noite e ela descobriu logo. Foi para o terreiro e pegou<br />

com as almas, as santas almas benditas. Acendeu velas lá no terreiro,<br />

que vela pra morto não se acende dentro de casa. Fez uma<br />

reza forte, daquelas que não ensinava as filhas porque não era<br />

coisa de criança. Foi dormir. No outro dia pela manhã, bem cedo,<br />

quando estava a caminho da bica encontrou a trouxa de roupa na<br />

porta da casa de uma vizinha, a uns 200 metros da sua. 2<br />

No segundo texto, a mesma sutileza não oculta o preconceito sofrido<br />

pelos afrodescendentes que cultuam as religiões trazidas pelos africanos.<br />

A conversa entre a narradora e o cobrador de ônibus deixa clara a censura<br />

que sofrem os negros brasileiros no que tange às suas práticas religiosas:<br />

2 SILVA. Cada tridente em seu lugar, p. 27-28.<br />

“A senhora tem religião?”, prossegue, atrevendo não ser a minha<br />

dele. Afinal, aquele cabelo black power e um arco-íris na roupa.<br />

“Tenho”, respondo, louca para saber onde a prosa desaguaria.<br />

“Acredita em Deus?”, ele continua, desafiador. “Acredito!” Não o seu,<br />

penso. “Pois é, num vê aquele povo da Índia? Eles num acredita<br />

em deus e adora vaca. Adorar santo já é uma ofensa ao senhor<br />

Jesus e adorar vaca, eu nem sei dizer o que é. Por isso aconteceu<br />

aquela desgraceira toda. Aquela chuva que não parava e o mar<br />

voltou contra eles em ondas gigantes. O pastor falou na igreja e<br />

deu no Jornal Nacional também”. 3<br />

Na segunda parte do livro, numa série de relatos comuns ao nosso<br />

cotidiano, chama atenção o conto “Domingas e a cunhada”. Cidinha não<br />

se atém à problemática racial e transita pelas questões de gênero. 4 “Elas<br />

dormem juntas e isso é público, mas ai de quem as declarar amantes. A<br />

casa tem apenas um quarto e donde se vê uma cama de casal.” 5 Dessa vez,<br />

esbarramos na homofobia que impera na sociedade brasileira, o que certamente<br />

provoca uma certa incredulidade no leitor que se depara com o texto.<br />

Na terceira parte de Cada tridente em seu lugar, o tom sutil de<br />

Cidinha da Silva cede espaço para uma fala mais ácida e áspera para explicitar<br />

a perversa relação entre cor e exclusão e as implicações sofridas<br />

pelos afrodescendentes em função do seu pertencimento racial. Segundo<br />

Vera Lúcia da Silva Sales Ferreira,<br />

As narrativas denunciam, com um discurso mais vigoroso, mais<br />

agressivo, a invisibilidade do negro, na representação dominante<br />

da história do Brasil; mostram a negação de sua alteridade diante<br />

da sua desumanização pelo sistema dominador opressivo e problematizam<br />

aprisionamento, num ciclo vicioso de estereótipos e<br />

preconceitos, que reificam o racismo no Brasil, e que condenam<br />

os negros, muitas vezes, a viver alheios aos seus próprios códigos<br />

88 Tradição e contemporaneidade Cada tridente em seu lugar: personagens afrodescendentes na obra de Cidinha da Silva 89<br />

culturais. 6<br />

Em “Papo de barbearia” temos a estigmatização da mulher negra<br />

enquanto objeto sexual:<br />

Mas no dia que a Marieta contou o caso de seu Olímpio, foi o maior<br />

segredo do clube já revelado. Ele estava muito preocupado com<br />

a filha de vinte e cinco anos, pois estava saindo com um homem<br />

branco de sessenta e cinco, mais velho que ele. Disse ao pé do<br />

ouvido da Marieta que eles procuram as negras, quando o apito já<br />

não toca tanto. É o mesmo efeito de uma gemada de ovo de pata.<br />

Levanta até defunto. 7<br />

3 SILVA. Cada tridente em seu lugar, p. 29.<br />

4 Em Você me deixe, viu?! Vou bater o meu tambor!, segunda obra literária de Cidinha da Silva,<br />

publicada em 2008, as questões de gênero são o fio condutor do livro.<br />

5 SILVA. Cada tridente em seu lugar, p. 45.<br />

6 FERREIRA. Da dor e da alegria dos tridentes, p. 297.<br />

7 SILVA. Cada tridente em seu lugar, p. 53.

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