Escritoras Mineiras: Poesia, Ficção e Memória - FALE - UFMG
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de Minas Gerais, segundo informações contidas na orelha técnica de A flor<br />
do tempo, edição de 1972, apresenta “estórias sintéticas, comunicativas,<br />
escritas em linguagem bastante definida e clara, linguagem de quem sabe<br />
o que deseja criar”.<br />
Segundo Nelly Novaes Coelho, sua obra teve uma repercussão<br />
positiva não apenas por parte da crítica, mas também do público:<br />
Dona de um estilo seguro, denso e de longo fôlego, Bárbara de<br />
Araújo deixou em sua ficção uma significativa visão crítica dos<br />
valores de base, absolutos e inquestionáveis, que alicerçam a<br />
sociedade tradicional brasileira e determinam a natureza das relações<br />
de poder, afeições ou ódios, entre homem e mulher, senhor<br />
e servo, ricos e pobres, etc. 1<br />
A ensaísta ressalta o romance E oferecerás a tua outra face –<br />
que trata de relações familiares à época da escravidão permeadas pelo<br />
“matriarcado de compensação numa sociedade patriarcal”, nas palavras<br />
de João Camilo de Oliveira, na orelha do livro –, mas em seu romance<br />
de estreia, Uma flor sobre o muro, já há personagens que extrapolam<br />
o pensamento do senso comum e, por meio de suas ações, provocam<br />
reflexões sobre a ordem instituída e a infalibilidade de certos valores. O<br />
enredo deste último gira em torno da história de Marina, uma professora<br />
de São João Del Rei que vê sua vida simples transformada ao entrar em<br />
contato com vivências e personalidades tão diferentes como Helena e<br />
Alemão. A imagem do muro é repleta de significação no romance. Já em<br />
suas primeiras páginas, o pensamento da protagonista se desvela, e é<br />
dado ao leitor conhecê-lo. Quando o trem para em determinada estação,<br />
na viagem de mudança que faziam a São João Del Rei, Marina se depara<br />
com um muro e reflete:<br />
Marina tem a impressão de que é um muro, cada pessoa é um<br />
muro. A princípio, branquinho, caiado de novo. Depois, vai a vida<br />
garatujando coisas [...] Há uma campânula sobre o muro, uma<br />
flor triste, roxinha, que murcha ao primeiro contato. Ela também<br />
vive do muro, suga-o como criança o seio. Vive do muro, mas não<br />
para ele. O pai.<br />
O muro divide, cerca, tolhe. 2<br />
1 COELHO. Dicionário crítico de escritoras brasileiras, p. 85.<br />
2 ARAÚJO. Uma flor sobre o muro, p. 10-11.<br />
Para a personagem, todos os muros são “sem sentido”. Contudo,<br />
vive numa espécie de alheamento exterior. Introspectiva, vive para o pai,<br />
tal como a triste flor roxa vive do que o muro lhe oferece. E nada mais.<br />
Segundo o Dicionário de símbolos, o muro significa, dentre outras coisas,<br />
“separação entre os outros e eu. O muro é a comunicação cortada, com<br />
a sua dupla incidência psicológica: segurança, sufocação; defesa, mas<br />
prisão.” 3 Assim, em seus relacionamentos – ou tentativas de –, Marina<br />
sempre mantém as pessoas a distância. O pai também é uma espécie de<br />
muro para ela: é seu refúgio seguro, protetor, mas ao mesmo tempo, vivendo<br />
para ele, se afasta em grande medida do convívio social. A mãe, já<br />
morta, que não a compreendia e não lhe oferecia maiores demonstrações<br />
de carinho, é o fantasma a assombrá-la. Ao mesmo tempo, a mãe, muito<br />
amada pelo pai, é uma lembrança nunca esquecida, e porque nunca esquecida,<br />
coloca-se entre pai e filha, impedindo de certo modo que o amor<br />
filial seja completamente suprido. Havia não uma relação de cumplicidade,<br />
e sim uma relação de ciúme entre ambas, numa disputa silenciosa pelo pai.<br />
A flor parece ser uma “imagem-chave” na ficção da autora;<br />
encontramo-la no título de dois de seus romances. Não esqueçamos a<br />
metáfora da flor murcha sobre o muro; é uma flor “roxinha”, cor que<br />
remete à morte, à falta de oxigenação, de vida, portanto. Para Chevalier<br />
e Gheerbrant, “muitas vezes a flor apresenta-se como figura-arquétipo<br />
da alma, como centro espiritual”, e quando isso se dá, seu significado é<br />
explicado por sua cor”. 4<br />
Uma personagem que se destaca nessa narrativa é Helena, amiga<br />
que Marina vai angariar na nova cidade. A personagem chama a atenção<br />
devido ao seu caráter peculiar: à frente de seu tempo, é considerada<br />
“avançada” para o código de valores da época. É interessante a amizade<br />
travada entre Helena e Marina, perfis femininos que se opõem. Helena<br />
praticamente ocupa o lugar da mãe de Marina, ao tratá-la com um zelo<br />
quase superprotetor. Se, de um lado, Marina encarna a sensibilidade, a<br />
passividade, de outro, Helena – e a escolha vocabular não parece ser<br />
aleatória, a beleza e perspicácia da personagem por momentos remetem<br />
a Helena de Troia – é objetiva, e sua personalidade forte a impulsiona<br />
3 CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de símbolos, p. 626.<br />
4 CHEVALIER; GHEERBRANT. Dicionário de símbolos, p. 439.<br />
62 <strong>Ficção</strong> e poesia Diversidade na literatura mineira: a escrita de Bárbara de Araújo 63