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82 TempoLivre <strong>Fevereiro</strong> <strong>2008</strong><br />
CRÓNICA |JOAQUIM LETRIA<br />
As escravas do esqueleto<br />
Confesso que raramente resisto ao<br />
Fashion TV, canal suave que acumula<br />
horas sem fim de desfiles de<br />
moda. Os olhos agarram-se-me às<br />
ossadas que se desconjuntam para lá e para<br />
cá, na “passerelle”, a mão perde a vontade<br />
até deixar tombar o controle remoto e esvaise-me<br />
a fúria do “zapping” que me agitava<br />
até àquele momento. Fico a olhar, simplesmente,<br />
sem vontade de coisa alguma.<br />
A magreza que se desdobra naquele canal<br />
esta magreza excessiva, inventada,<br />
cultivada, é uma afronta a Rubens,<br />
através duma mulher que nunca<br />
existiu, que adulada mas não amada,<br />
que vestem mas não desnudam,<br />
utilizam mas pouco respeitam<br />
temático, ora para cá, ora para lá, fascina-me,<br />
assusta-me e acaba por me prender, osso a<br />
osso, peça a peça, gesto a gesto, amarrado à<br />
fria indiferença profissional dos modelos que<br />
desfilam. Olha os fémures desta, repara no<br />
esterno daquela, suporte de costelas descarnadas,<br />
vê como esta quase troca os pés e os<br />
joelhos se tocam e os sapatos caiem, enormes.<br />
Que lindos, os olhos roxos desta pernilonga,<br />
tão bonita que ela poderá ser no momento<br />
em que se transforme em mulher de carne e<br />
osso.<br />
Há quem defenda que estas raparigas<br />
esgalgadas, secas e frias, de olhos hostis e sorriso<br />
desdenhoso, cara de poucos amigos, representam<br />
um conceito de beleza. Há anos,<br />
produzi um programa de televisão que<br />
englobava uma elegante passagem de modelos<br />
de um costureiro de extrema qualidade.<br />
Ele fazia desfilar as suas criações nos seus<br />
manequins. Horas antes de gravarmos,<br />
chegou um alegre grupo de meninas muito<br />
jovens, quase colegiais, simpáticas e alegres.<br />
Não as reconheci, depois de maquilhadas e<br />
vestidas, a ensaiarem o desfile como se não<br />
existisse mais nada para além dos tecidos diáfanos<br />
que envergavam.<br />
É essa a sua grande arma, a capacidade de<br />
desaparecerem no espaço e de só reincarnarem<br />
no seu mundo profissional, contínuo<br />
escaparate, montra eterna que atrai milhares<br />
de jovens que sonham pertencer a este universo<br />
associado ao dinheiro, à fama, à popularidade<br />
e ao amor.<br />
São estas mulheres que dão vida, valorizam,<br />
emprestam alma às criações que envergam<br />
e que muitas vezes são desenhadas<br />
para os seus corpos, para a sua altura, para as<br />
suas pernas, para o seu andar. Nada disto um<br />
cabide pode criar. Logo, esta magreza excessiva,<br />
inventada, cultivada, é uma afronta a<br />
Rubens, através duma mulher que nunca<br />
existiu, que adulada mas não amada, que<br />
vestem mas não desnudam, utilizam mas<br />
pouco respeitam.<br />
Oefémero é bom quando não nega<br />
o futuro. Muitos destes modelos<br />
recuperam o seu perfil quando<br />
os anos fazem abandonar a<br />
profissão. Mas há quem fique prisioneira da<br />
sua magreza, escrava do seu esqueleto, como<br />
milhares de outras jovens aterradas diante<br />
dum espelho ou desgostosas sobre uma balança<br />
que lhes revela um grama a mais.<br />
Irónico como nas sociedades mais desenvolvidas<br />
e ricas se pode morrer de fome e<br />
representar a imagem deste mal, vivendo no<br />
luxo e ganhando fortunas. Criaram um ser<br />
que pouco pode ter a ver com a mulher e que<br />
a pode arrastar para a beira dum precipício<br />
de onde vai querer renascer e viver uma<br />
nova vida, quando chegar esse momento. ■<br />
jletria@yahoo.com