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STORYTELLER<br />
JakeOlimb/iStock<br />
Réquiem para sorrir<br />
Havia profundo carinho na sua<br />
indiferença diante das aparências e das<br />
<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou riqueza<br />
LULA VIEIRA<br />
Eu era um jovem redator <strong>de</strong> propaganda<br />
quando conheci Edgard dos Anjos.<br />
Faz mais <strong>de</strong> 40 anos, e me lembro <strong>de</strong> que<br />
fiquei absolutamente fascinado pelo cara.<br />
Ele era amigo <strong>de</strong> todo mundo, começando<br />
pelo governador do estado (Espírito Santo)<br />
e indo até o porteiro do restaurante, e tratava-os<br />
exatamente do mesmo jeito: mal.<br />
Ou melhor. Afetivamente mal, encantadoramente<br />
crítico, amorosamente irônico. Jamais<br />
admitiu que pu<strong>de</strong>sse existir qualquer<br />
diferença entre as pessoas. Nunca levou<br />
ninguém muito a sério, principalmente a si<br />
mesmo. Longe <strong>de</strong> significar <strong>de</strong>sprezo, esse<br />
olhar crítico ao ser humano era amoroso,<br />
por incrível que pareça. Havia profundo carinho<br />
na sua indiferença diante <strong>de</strong> aparências<br />
e <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou riqueza.<br />
Ele gostava <strong>de</strong> gente. Mas poucas vezes vi<br />
ou ouvi elogiar alguém. Minha mulher não<br />
enten<strong>de</strong>u a primeira vez que se encontraram.<br />
Nos pegou no aeroporto e foi direto ao<br />
Ferrinho, um restaurante na praia <strong>de</strong> Vitória<br />
on<strong>de</strong> era recebido como um rei. Atendido pelo<br />
próprio Ferrinho e uma corte <strong>de</strong> garçons<br />
<strong>de</strong>monstrando absoluta intimida<strong>de</strong> e alegria<br />
por vê-lo. Depois <strong>de</strong> uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tira-<br />
-gostos e literalmente <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> doses <strong>de</strong><br />
whisky, minha mulher perguntou qual seria<br />
o melhor prato da casa. Jamais imaginou a<br />
resposta: “pe<strong>de</strong> qualquer coisa... aqui tudo é<br />
a mesma merda”. Ao que Ferrinho, sentado à<br />
mesa, retrucou: “também com as porcarias<br />
<strong>de</strong> fregueses que temos...” Eles se amavam.<br />
Foi Edgard que me apresentou Graciano<br />
Spíndola, que me <strong>de</strong>u a honra <strong>de</strong> lançar o<br />
imenso empreendimento Nova Guarapari e<br />
outros tantos, inclusive fazer sua vitoriosa<br />
campanha para prefeito. Graciano e Edgard<br />
se amavam e se admiravam, embora quem<br />
ouvisse uma conversa entre eles pu<strong>de</strong>sse<br />
ter certeza <strong>de</strong> que eram inimigos mortais.<br />
Aliás, eu seria capaz <strong>de</strong> afirmar que, com<br />
exceção <strong>de</strong> dona Therezinha, sua mulher,<br />
<strong>de</strong> quem sempre falou com respeito, a medida<br />
do amor <strong>de</strong> Edgard era a disposição<br />
em criticar. Quanto mais alguém era consi<strong>de</strong>rado<br />
filho da puta da pior espécie, pois<br />
há hierarquia até entre filhos da puta, mais<br />
significava que Edgard gostava da pessoa.<br />
E tinha atitu<strong>de</strong>s surpreen<strong>de</strong>ntes.<br />
Em plena revolução, com algumas autorida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> olho na origem <strong>de</strong> seu dinheiro<br />
e po<strong>de</strong>r, foi interpelado por um briga<strong>de</strong>iro<br />
que reclamou <strong>de</strong> sua casa ter sido<br />
construída no fim da pista do aeroporto.<br />
Num interrogatório qualquer, a autorida<strong>de</strong><br />
resolveu questionar a localização da<br />
casa, dizendo que ela po<strong>de</strong>ria prejudicar o<br />
tráfego aéreo. Edgard, na condição <strong>de</strong> interrogado<br />
(ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarante, não sei), respon<strong>de</strong>u:<br />
“tem uma coisa, briga<strong>de</strong>iro, se a<br />
porra <strong>de</strong> um avião <strong>de</strong> vocês cair no meu<br />
quintal, não <strong>de</strong>volvo...”<br />
Numa outra ocasião, o general-comandante<br />
da Região Militar levou a família<br />
inteira para almoçar no Ferrinho. Após<br />
a refeição, fez questão <strong>de</strong> elogiar a qualida<strong>de</strong><br />
da comida. Ferrinho ouviu calado<br />
toda louvação e chamou Edgard para<br />
ser testemunha do agrado da autorida<strong>de</strong>.<br />
Ele ouviu calmamente os elogios todos e<br />
respon<strong>de</strong>u: “é pena, general, que eu não<br />
possa dizer o mesmo da comida que o senhor<br />
serve para os presos. Já fui hóspe<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> seu quartel e conheço a gororoba que<br />
dão para a turma”.<br />
Edgard tinha uma característica interessante.<br />
Não era apaixonado por música, e os<br />
músicos o adoravam. Não era apreciador <strong>de</strong><br />
pintura e tinha gran<strong>de</strong>s amigos pintores.<br />
Sua escrita estava longe <strong>de</strong> ser primorosa,<br />
mas os escritores o amavam. Ele gostava<br />
das pessoas, e gostava do que elas tinham<br />
no cérebro e no coração. Por isso o talento<br />
nas artes ou a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dinheiro no<br />
bolso nunca o impressionaram. Uma <strong>de</strong><br />
suas especialida<strong>de</strong>s era organizar almoços,<br />
on<strong>de</strong> conseguia reunir todo mundo. Fazia<br />
isso em Vitória e no Rio e receber um convite<br />
para essas ocasiões era uma alegria.<br />
Esses encontros, segundo um ministro<br />
sempre presente, tinham uma característica<br />
interessante. Nunca se atrasavam. Pois<br />
o assunto da mesa era invariavelmente falar<br />
mal dos retardatários. Edgard foi dono<br />
<strong>de</strong> jornal, editor, assessor político, dono<br />
<strong>de</strong> restaurante, fez todo tipo <strong>de</strong> negócio.<br />
Ganhou e per<strong>de</strong>u. Mas nunca comemorou<br />
com estardalhaço, nem nunca reclamou.<br />
Edgard morreu tendo uma enorme vantagem<br />
sobre a gran<strong>de</strong> maioria dos mortais.<br />
Nunca encheu o saco <strong>de</strong> ninguém.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
jornal propmark - <strong>29</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 33