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edição de 29 de julho de 2019

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STORYTELLER<br />

JakeOlimb/iStock<br />

Réquiem para sorrir<br />

Havia profundo carinho na sua<br />

indiferença diante das aparências e das<br />

<strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou riqueza<br />

LULA VIEIRA<br />

Eu era um jovem redator <strong>de</strong> propaganda<br />

quando conheci Edgard dos Anjos.<br />

Faz mais <strong>de</strong> 40 anos, e me lembro <strong>de</strong> que<br />

fiquei absolutamente fascinado pelo cara.<br />

Ele era amigo <strong>de</strong> todo mundo, começando<br />

pelo governador do estado (Espírito Santo)<br />

e indo até o porteiro do restaurante, e tratava-os<br />

exatamente do mesmo jeito: mal.<br />

Ou melhor. Afetivamente mal, encantadoramente<br />

crítico, amorosamente irônico. Jamais<br />

admitiu que pu<strong>de</strong>sse existir qualquer<br />

diferença entre as pessoas. Nunca levou<br />

ninguém muito a sério, principalmente a si<br />

mesmo. Longe <strong>de</strong> significar <strong>de</strong>sprezo, esse<br />

olhar crítico ao ser humano era amoroso,<br />

por incrível que pareça. Havia profundo carinho<br />

na sua indiferença diante <strong>de</strong> aparências<br />

e <strong>de</strong>monstrações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou riqueza.<br />

Ele gostava <strong>de</strong> gente. Mas poucas vezes vi<br />

ou ouvi elogiar alguém. Minha mulher não<br />

enten<strong>de</strong>u a primeira vez que se encontraram.<br />

Nos pegou no aeroporto e foi direto ao<br />

Ferrinho, um restaurante na praia <strong>de</strong> Vitória<br />

on<strong>de</strong> era recebido como um rei. Atendido pelo<br />

próprio Ferrinho e uma corte <strong>de</strong> garçons<br />

<strong>de</strong>monstrando absoluta intimida<strong>de</strong> e alegria<br />

por vê-lo. Depois <strong>de</strong> uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tira-<br />

-gostos e literalmente <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> doses <strong>de</strong><br />

whisky, minha mulher perguntou qual seria<br />

o melhor prato da casa. Jamais imaginou a<br />

resposta: “pe<strong>de</strong> qualquer coisa... aqui tudo é<br />

a mesma merda”. Ao que Ferrinho, sentado à<br />

mesa, retrucou: “também com as porcarias<br />

<strong>de</strong> fregueses que temos...” Eles se amavam.<br />

Foi Edgard que me apresentou Graciano<br />

Spíndola, que me <strong>de</strong>u a honra <strong>de</strong> lançar o<br />

imenso empreendimento Nova Guarapari e<br />

outros tantos, inclusive fazer sua vitoriosa<br />

campanha para prefeito. Graciano e Edgard<br />

se amavam e se admiravam, embora quem<br />

ouvisse uma conversa entre eles pu<strong>de</strong>sse<br />

ter certeza <strong>de</strong> que eram inimigos mortais.<br />

Aliás, eu seria capaz <strong>de</strong> afirmar que, com<br />

exceção <strong>de</strong> dona Therezinha, sua mulher,<br />

<strong>de</strong> quem sempre falou com respeito, a medida<br />

do amor <strong>de</strong> Edgard era a disposição<br />

em criticar. Quanto mais alguém era consi<strong>de</strong>rado<br />

filho da puta da pior espécie, pois<br />

há hierarquia até entre filhos da puta, mais<br />

significava que Edgard gostava da pessoa.<br />

E tinha atitu<strong>de</strong>s surpreen<strong>de</strong>ntes.<br />

Em plena revolução, com algumas autorida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> olho na origem <strong>de</strong> seu dinheiro<br />

e po<strong>de</strong>r, foi interpelado por um briga<strong>de</strong>iro<br />

que reclamou <strong>de</strong> sua casa ter sido<br />

construída no fim da pista do aeroporto.<br />

Num interrogatório qualquer, a autorida<strong>de</strong><br />

resolveu questionar a localização da<br />

casa, dizendo que ela po<strong>de</strong>ria prejudicar o<br />

tráfego aéreo. Edgard, na condição <strong>de</strong> interrogado<br />

(ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarante, não sei), respon<strong>de</strong>u:<br />

“tem uma coisa, briga<strong>de</strong>iro, se a<br />

porra <strong>de</strong> um avião <strong>de</strong> vocês cair no meu<br />

quintal, não <strong>de</strong>volvo...”<br />

Numa outra ocasião, o general-comandante<br />

da Região Militar levou a família<br />

inteira para almoçar no Ferrinho. Após<br />

a refeição, fez questão <strong>de</strong> elogiar a qualida<strong>de</strong><br />

da comida. Ferrinho ouviu calado<br />

toda louvação e chamou Edgard para<br />

ser testemunha do agrado da autorida<strong>de</strong>.<br />

Ele ouviu calmamente os elogios todos e<br />

respon<strong>de</strong>u: “é pena, general, que eu não<br />

possa dizer o mesmo da comida que o senhor<br />

serve para os presos. Já fui hóspe<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seu quartel e conheço a gororoba que<br />

dão para a turma”.<br />

Edgard tinha uma característica interessante.<br />

Não era apaixonado por música, e os<br />

músicos o adoravam. Não era apreciador <strong>de</strong><br />

pintura e tinha gran<strong>de</strong>s amigos pintores.<br />

Sua escrita estava longe <strong>de</strong> ser primorosa,<br />

mas os escritores o amavam. Ele gostava<br />

das pessoas, e gostava do que elas tinham<br />

no cérebro e no coração. Por isso o talento<br />

nas artes ou a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> dinheiro no<br />

bolso nunca o impressionaram. Uma <strong>de</strong><br />

suas especialida<strong>de</strong>s era organizar almoços,<br />

on<strong>de</strong> conseguia reunir todo mundo. Fazia<br />

isso em Vitória e no Rio e receber um convite<br />

para essas ocasiões era uma alegria.<br />

Esses encontros, segundo um ministro<br />

sempre presente, tinham uma característica<br />

interessante. Nunca se atrasavam. Pois<br />

o assunto da mesa era invariavelmente falar<br />

mal dos retardatários. Edgard foi dono<br />

<strong>de</strong> jornal, editor, assessor político, dono<br />

<strong>de</strong> restaurante, fez todo tipo <strong>de</strong> negócio.<br />

Ganhou e per<strong>de</strong>u. Mas nunca comemorou<br />

com estardalhaço, nem nunca reclamou.<br />

Edgard morreu tendo uma enorme vantagem<br />

sobre a gran<strong>de</strong> maioria dos mortais.<br />

Nunca encheu o saco <strong>de</strong> ninguém.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

jornal propmark - <strong>29</strong> <strong>de</strong> <strong>julho</strong> <strong>de</strong> <strong>2019</strong> 33

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