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inspiração<br />
Do rap ao samba<br />
“São os tam-tans e o repique do Fundo <strong>de</strong> Quintal que ainda fazem o<br />
meu coração bater, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em que ouvi aqueles músicos tocando”<br />
RICARDO NUNES<br />
Especial para o PROPMARK<br />
Quando recebi o convite para escrever<br />
nesta coluna, pensei: o que eu po<strong>de</strong>ria<br />
compartilhar como inspiração neste lugar?<br />
O que, da minha vida, po<strong>de</strong>ria ser expressado<br />
aqui como algo que inspira? Passei por<br />
nomes <strong>de</strong> diretores, fotógrafos e artistas X,<br />
Y e Z. Mas a verda<strong>de</strong> é que o que me move<br />
está muito perto <strong>de</strong> mim. Muito perto. E me<br />
acompanha nas memórias mais primitivas.<br />
Dentro <strong>de</strong> casa, em forma <strong>de</strong> mulheres<br />
fortes e guerreiras, convivi com forças da<br />
natureza: minha avó baiana, minha tia e<br />
minha mãe. Foram elas que, na luta diária,<br />
foram meus maiores alicerces e me guiaram<br />
em todos os meus passos. Não é à toa que,<br />
no filme que dirigi recentemente, elas fizeram<br />
parte do casting. Elas ali só selaram a<br />
importância na minha história e no que codifico<br />
como amor. E o filme é sobre o amor.<br />
Claro que bebi <strong>de</strong> outras fontes – nos<br />
quintais <strong>de</strong> casa e nos churrascos em família,<br />
cresci escutando samba. Eram (e ainda<br />
são) as vozes <strong>de</strong> Zeca Pagodinho, Almir<br />
Guineto e Jovelina, que <strong>de</strong>clamavam frases<br />
sobre o que é amor e o que é amar. Aprendi<br />
muito ali. Sentia a música, a letra, a poesia.<br />
Samba é poesia. São os tam-tans e o repique<br />
do grupo Fundo <strong>de</strong> Quintal que ainda<br />
fazem meu coração bater, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o dia em<br />
que ouvi aqueles músicos tocando harmoniosamente<br />
juntos. Ah, os discos do Fundo!<br />
Se você não ouviu, comece agora. Po<strong>de</strong> ser<br />
em or<strong>de</strong>m cronológica, um por um. Não<br />
tem erro. Fico emocionado todos os dias.<br />
São letras que gostaria que tivessem sido<br />
minhas, já que elas dizem tanto sobre mim.<br />
Eu acreditava, pra valer, que seria cantor <strong>de</strong><br />
samba. Não se enganem, eu canto mal, mas<br />
quem sabe esse plano ainda dá certo?<br />
Quando eu tinha entre 10 e 11 anos, ouvi<br />
rap pela primeira vez. Ou po<strong>de</strong>ria dizer<br />
que foi a primeira vez em que me <strong>de</strong>parei<br />
com algo que bateu ainda mais fundo.<br />
Ouvi aquelas letras até <strong>de</strong>corá-las, do início<br />
ao fim. No caminho para a escola, eu e<br />
um amigo mandávamos ver nas rimas dos<br />
Racionais. Que bagulho doido é o rap. O<br />
samba cantava minha realida<strong>de</strong>, mas o rap,<br />
meu Deus, vou repetir: o bagulho é doido.<br />
Racionais é música básica da vida. Qualquer<br />
brasileiro <strong>de</strong>veria estudar o que esses<br />
caras escreveram ao longo <strong>de</strong> anos. Se liga<br />
em Djonga, Xis, Criolo, MV BILL e BK. Escute,<br />
ouça o que eles têm a dizer. Você vai enten<strong>de</strong>r<br />
muito mais sobre o Brasil, os pretos,<br />
a periferia. E enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> amor também.<br />
Recentemente, o rapper Dexter, com<br />
Djonga, Coruja BC1, KL Jay e DJ Will, gravou<br />
uma releitura da música Voz Ativa, do<br />
Racionais. “Sabedoria <strong>de</strong> rua. O rap mais<br />
expressivo. A juventu<strong>de</strong> negra agora tem a<br />
voz ativa”. A letra é antiga, mas segue relevante.<br />
Dirigi o clipe com os manos João<br />
Wainer e Mailson Soares. Nele, tem várias<br />
artistas que são referências importantes<br />
para mim: Elza Soares, Ruth <strong>de</strong> Souza,<br />
Dona Ivone Lara, Ingrid Silva e por aí vai.<br />
No último dia 20 <strong>de</strong> novembro, lancei<br />
um projeto lindo para o Dia da Consciência<br />
Negra.<br />
Em parceria com a Leo Burnett, fizemos<br />
um filme baseado na poesia <strong>de</strong> Luiz Gutierre,<br />
estagiário <strong>de</strong> mídia da agência. As palavras<br />
<strong>de</strong>le têm muita sensibilida<strong>de</strong>, são um<br />
convite para falar <strong>de</strong>... amor.<br />
Estou muito feliz com esse projeto. Esperei<br />
por 20 anos pela oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar<br />
uma história da forma em que eu acredito.<br />
Só o amor po<strong>de</strong> mudar. Por isso, expressei<br />
em meu filme o respeito pela pele preta,<br />
pelo trabalho, pela <strong>de</strong>dicação e pela história<br />
preta. O respeito por profissionais talentosos<br />
pretos, por personagens e narrativas<br />
pretas, na forma mais simples e linda. Tem<br />
choro, tem garra, tem riso, tem <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za,<br />
tem força, tem natureza, tem ancestralida<strong>de</strong>,<br />
tem atualida<strong>de</strong>, tem sofrimento. E tem<br />
amor.<br />
Ricardo Souza é produtor-executivo da Butterfly<br />
Coletivo<br />
20 <strong>21</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark