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Edição de 21 de dezembro de 2020

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STORYTELLER<br />

Unsplash<br />

Velhos Natais<br />

Num cálculo rápido, fiz ao longo <strong>de</strong><br />

minha vida mais <strong>de</strong> mil cartões <strong>de</strong> Natal.<br />

Sem contar anúncios, spots <strong>de</strong> rádio e TV<br />

LULA VIEIRA<br />

Há somente uma gran<strong>de</strong> vantagem nos<br />

natais contemporâneos. Eu não preciso<br />

mais criar cartões <strong>de</strong> Natal. Nos meus tempos<br />

<strong>de</strong> redator, durante mais <strong>de</strong> 50 anos, esta<br />

época se caracterizava por viver este sacrifício.<br />

Escrever mensagens <strong>de</strong> Natal. Parece fácil?<br />

Experimente escrever inúmeros cartões<br />

diferentes, para os mais variados clientes,<br />

que pareçam sinceros, criativos e comoventes.<br />

Faça isso <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> vezes. Num cálculo<br />

rápido, fiz ao longo <strong>de</strong> minha vida mais <strong>de</strong><br />

mil cartões <strong>de</strong> Natal. Sem contar anúncios,<br />

spots <strong>de</strong> rádio e comerciais <strong>de</strong> televisão. Alguns<br />

me dão orgulho (Quero ver você não<br />

chorar...), outros me trazem boas lembranças.<br />

Mas, confesso, boa parte, revendo hoje,<br />

me dá uma certa vergonha. Com uma pilha<br />

<strong>de</strong> encomendas em cima da mesa, você po<strong>de</strong><br />

até começar bem. Mas, à medida que o tempo<br />

passa, vira uma tortura. Sai um Cristo morrendo<br />

aqui, uma crítica social ali, uma criancinha<br />

encantada pela árvore <strong>de</strong> Natal ali, neve,<br />

família, amor no coração e a certa altura<br />

a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inventar começa a dar pane.<br />

O pior é que po<strong>de</strong> ocorrer um fenômeno que<br />

é um risco para todo criador: esquecer que o<br />

receptor da sua mensagem não acumulou as<br />

informações prévias que você tem.<br />

Daí você cria a partir do ponto que você se<br />

encontra. E saem besteiras fantásticas. Acho<br />

que já contei que uma vez o dono da Manchete,<br />

Adolpho Bloch, reprovou <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />

sugestões <strong>de</strong> texto para o cartão <strong>de</strong> Natal<br />

das empresas <strong>de</strong>le até chegar a sugestão do<br />

Cony, recebida pelo velho Adolpho como<br />

a <strong>de</strong>scoberta da pólvora. Dizia: Feliz Natal<br />

e Próspero Ano Novo e tinha como ilustração<br />

um recém-nascido chorando. Adolpho<br />

achou que finalmente alguém teve a ousadia<br />

<strong>de</strong> criar algo compreensível. Noutro ano,<br />

uma secretária que tive achou que eu <strong>de</strong>via<br />

estar bêbado quando entreguei um texto<br />

para produzir que dizia que o importante<br />

no Natal era acreditar no himem. Era para<br />

estar escrito “homem”, embora até hoje eu<br />

ache que o texto errado tinha mais significados<br />

ocultos. E mais profundos, se é que faço<br />

enten<strong>de</strong>r. Em outro ano fui Papai Noel numa<br />

campanha para os Relógios Technos, quando<br />

dizia que presente <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong><br />

ser “uma lembrancinha”. Hoje sair dando<br />

relógios para a parentalha seria motivo para<br />

interdição. Certa vez me convidaram para<br />

ser o Papai Noel do jornal O Globo, que <strong>de</strong>scia<br />

<strong>de</strong> helicóptero no gramado do Maracanã.<br />

Só não fui porque tive <strong>de</strong> dar uma palestra<br />

em Manaus e o avião que me traria <strong>de</strong> volta<br />

não <strong>de</strong>colou por causa do tempo. Quase<br />

morri <strong>de</strong> tristeza. Teria disso uma das maiores<br />

emoções <strong>de</strong> minha vida. Fui substituído<br />

na última hora pela Pepita Rodrigues. Um<br />

outro Natal, morando em Brasília, meus sócios<br />

e eu, todos paulistas, tivemos uma pane<br />

no motor do nosso carro em plena estrada,<br />

quando estávamos a caminho <strong>de</strong> São Paulo,<br />

on<strong>de</strong> moravam nossas famílias. Faz muito<br />

tempo, era uma época que nem celular existia.<br />

Conseguimos chegar até um posto <strong>de</strong><br />

gasolina, fechado, on<strong>de</strong> nos encontramos<br />

com um caminhoneiro na mesma situação<br />

e um vigia. Tirando a gente, não havia mais<br />

ninguém na estrada. Pelo telefone do posto,<br />

tentamos achar um mecânico na cida<strong>de</strong><br />

mais próxima, uns 50 quilômetros dali. O<br />

único mecânico que aten<strong>de</strong>u estava tão bêbado<br />

que achou estar sendo vítima <strong>de</strong> um<br />

trote. “Val<strong>de</strong>mar, dizia ele, larga <strong>de</strong> ser besta<br />

homem! Reconheço tua voz! Feliz Natal! Poço,<br />

você disse (era posto)... o que você está<br />

fazendo num poço? Puta porre hein, amigão!<br />

Volks? Não anda? Enfia um sabugo no escapamento!<br />

Vem prá cá. Beijo na comadre...<br />

Feliz Natal!” O dono do posto não atendia o<br />

telefone e o único remédio era se conformar.<br />

Ligamos para as famílias avisando o que<br />

ocorrera e procuramos na gela<strong>de</strong>ira e no <strong>de</strong>pósito<br />

do posto algumas coisas para comer e<br />

beber. Achamos umas latas <strong>de</strong> sardinha, pão<br />

velho, presunto, salame, salsicha e linguiça.<br />

Mais cachaça, vinho tinto (fabricado em São<br />

Roque) e a linha Dubar <strong>de</strong> bebidas finas: vermute,<br />

licor <strong>de</strong> ovos, Kummel. A uma certa altura,<br />

já embalados pela mistura <strong>de</strong> bebidas,<br />

trocamos presentes. Canetas BIC, punhado<br />

<strong>de</strong> balas, Revista Passatempo e uma calota<br />

<strong>de</strong> Simca Chambord que alguém encontrou<br />

na estrada meses antes e estava esquecida<br />

no porta-malas. E contamos casos, alguns<br />

inventados e outros verda<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira como<br />

o bor<strong>de</strong>l <strong>de</strong> professoras e o caminhão<br />

que era tão gran<strong>de</strong> que só passava no túnel<br />

se <strong>de</strong>vidamente besuntado <strong>de</strong> graxa. Cantamos<br />

A<strong>de</strong>lino Moreira, trilha sonora indispensável<br />

no Natal, e dormimos em ca<strong>de</strong>iras<br />

arrumadas como camas, pois o chão, segundo<br />

o vigia, era trilha <strong>de</strong> ratos e baratas. Mesmo<br />

assim, vendo pelas portas <strong>de</strong> vidro o céu<br />

azul, ouvindo o barulho dos bichos do mato<br />

e o motor da gela<strong>de</strong>ira, ficamos todos ligeiramente<br />

comovidos pensando no nascimento<br />

do filho <strong>de</strong> Deus numa manjedoura, vindo à<br />

Terra na missão <strong>de</strong> nos salvar. Beijos e Feliz<br />

Natal. Mesmo que este seja o mais estranho<br />

Natal que se po<strong>de</strong>ria imaginar.<br />

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />

e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />

editor e professor<br />

lulavieira.luvi@gmail.com<br />

24 <strong>21</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark

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