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STORYTELLER<br />
Unsplash<br />
Velhos Natais<br />
Num cálculo rápido, fiz ao longo <strong>de</strong><br />
minha vida mais <strong>de</strong> mil cartões <strong>de</strong> Natal.<br />
Sem contar anúncios, spots <strong>de</strong> rádio e TV<br />
LULA VIEIRA<br />
Há somente uma gran<strong>de</strong> vantagem nos<br />
natais contemporâneos. Eu não preciso<br />
mais criar cartões <strong>de</strong> Natal. Nos meus tempos<br />
<strong>de</strong> redator, durante mais <strong>de</strong> 50 anos, esta<br />
época se caracterizava por viver este sacrifício.<br />
Escrever mensagens <strong>de</strong> Natal. Parece fácil?<br />
Experimente escrever inúmeros cartões<br />
diferentes, para os mais variados clientes,<br />
que pareçam sinceros, criativos e comoventes.<br />
Faça isso <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> vezes. Num cálculo<br />
rápido, fiz ao longo <strong>de</strong> minha vida mais <strong>de</strong><br />
mil cartões <strong>de</strong> Natal. Sem contar anúncios,<br />
spots <strong>de</strong> rádio e comerciais <strong>de</strong> televisão. Alguns<br />
me dão orgulho (Quero ver você não<br />
chorar...), outros me trazem boas lembranças.<br />
Mas, confesso, boa parte, revendo hoje,<br />
me dá uma certa vergonha. Com uma pilha<br />
<strong>de</strong> encomendas em cima da mesa, você po<strong>de</strong><br />
até começar bem. Mas, à medida que o tempo<br />
passa, vira uma tortura. Sai um Cristo morrendo<br />
aqui, uma crítica social ali, uma criancinha<br />
encantada pela árvore <strong>de</strong> Natal ali, neve,<br />
família, amor no coração e a certa altura<br />
a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inventar começa a dar pane.<br />
O pior é que po<strong>de</strong> ocorrer um fenômeno que<br />
é um risco para todo criador: esquecer que o<br />
receptor da sua mensagem não acumulou as<br />
informações prévias que você tem.<br />
Daí você cria a partir do ponto que você se<br />
encontra. E saem besteiras fantásticas. Acho<br />
que já contei que uma vez o dono da Manchete,<br />
Adolpho Bloch, reprovou <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong><br />
sugestões <strong>de</strong> texto para o cartão <strong>de</strong> Natal<br />
das empresas <strong>de</strong>le até chegar a sugestão do<br />
Cony, recebida pelo velho Adolpho como<br />
a <strong>de</strong>scoberta da pólvora. Dizia: Feliz Natal<br />
e Próspero Ano Novo e tinha como ilustração<br />
um recém-nascido chorando. Adolpho<br />
achou que finalmente alguém teve a ousadia<br />
<strong>de</strong> criar algo compreensível. Noutro ano,<br />
uma secretária que tive achou que eu <strong>de</strong>via<br />
estar bêbado quando entreguei um texto<br />
para produzir que dizia que o importante<br />
no Natal era acreditar no himem. Era para<br />
estar escrito “homem”, embora até hoje eu<br />
ache que o texto errado tinha mais significados<br />
ocultos. E mais profundos, se é que faço<br />
enten<strong>de</strong>r. Em outro ano fui Papai Noel numa<br />
campanha para os Relógios Technos, quando<br />
dizia que presente <strong>de</strong> verda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong><br />
ser “uma lembrancinha”. Hoje sair dando<br />
relógios para a parentalha seria motivo para<br />
interdição. Certa vez me convidaram para<br />
ser o Papai Noel do jornal O Globo, que <strong>de</strong>scia<br />
<strong>de</strong> helicóptero no gramado do Maracanã.<br />
Só não fui porque tive <strong>de</strong> dar uma palestra<br />
em Manaus e o avião que me traria <strong>de</strong> volta<br />
não <strong>de</strong>colou por causa do tempo. Quase<br />
morri <strong>de</strong> tristeza. Teria disso uma das maiores<br />
emoções <strong>de</strong> minha vida. Fui substituído<br />
na última hora pela Pepita Rodrigues. Um<br />
outro Natal, morando em Brasília, meus sócios<br />
e eu, todos paulistas, tivemos uma pane<br />
no motor do nosso carro em plena estrada,<br />
quando estávamos a caminho <strong>de</strong> São Paulo,<br />
on<strong>de</strong> moravam nossas famílias. Faz muito<br />
tempo, era uma época que nem celular existia.<br />
Conseguimos chegar até um posto <strong>de</strong><br />
gasolina, fechado, on<strong>de</strong> nos encontramos<br />
com um caminhoneiro na mesma situação<br />
e um vigia. Tirando a gente, não havia mais<br />
ninguém na estrada. Pelo telefone do posto,<br />
tentamos achar um mecânico na cida<strong>de</strong><br />
mais próxima, uns 50 quilômetros dali. O<br />
único mecânico que aten<strong>de</strong>u estava tão bêbado<br />
que achou estar sendo vítima <strong>de</strong> um<br />
trote. “Val<strong>de</strong>mar, dizia ele, larga <strong>de</strong> ser besta<br />
homem! Reconheço tua voz! Feliz Natal! Poço,<br />
você disse (era posto)... o que você está<br />
fazendo num poço? Puta porre hein, amigão!<br />
Volks? Não anda? Enfia um sabugo no escapamento!<br />
Vem prá cá. Beijo na comadre...<br />
Feliz Natal!” O dono do posto não atendia o<br />
telefone e o único remédio era se conformar.<br />
Ligamos para as famílias avisando o que<br />
ocorrera e procuramos na gela<strong>de</strong>ira e no <strong>de</strong>pósito<br />
do posto algumas coisas para comer e<br />
beber. Achamos umas latas <strong>de</strong> sardinha, pão<br />
velho, presunto, salame, salsicha e linguiça.<br />
Mais cachaça, vinho tinto (fabricado em São<br />
Roque) e a linha Dubar <strong>de</strong> bebidas finas: vermute,<br />
licor <strong>de</strong> ovos, Kummel. A uma certa altura,<br />
já embalados pela mistura <strong>de</strong> bebidas,<br />
trocamos presentes. Canetas BIC, punhado<br />
<strong>de</strong> balas, Revista Passatempo e uma calota<br />
<strong>de</strong> Simca Chambord que alguém encontrou<br />
na estrada meses antes e estava esquecida<br />
no porta-malas. E contamos casos, alguns<br />
inventados e outros verda<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira como<br />
o bor<strong>de</strong>l <strong>de</strong> professoras e o caminhão<br />
que era tão gran<strong>de</strong> que só passava no túnel<br />
se <strong>de</strong>vidamente besuntado <strong>de</strong> graxa. Cantamos<br />
A<strong>de</strong>lino Moreira, trilha sonora indispensável<br />
no Natal, e dormimos em ca<strong>de</strong>iras<br />
arrumadas como camas, pois o chão, segundo<br />
o vigia, era trilha <strong>de</strong> ratos e baratas. Mesmo<br />
assim, vendo pelas portas <strong>de</strong> vidro o céu<br />
azul, ouvindo o barulho dos bichos do mato<br />
e o motor da gela<strong>de</strong>ira, ficamos todos ligeiramente<br />
comovidos pensando no nascimento<br />
do filho <strong>de</strong> Deus numa manjedoura, vindo à<br />
Terra na missão <strong>de</strong> nos salvar. Beijos e Feliz<br />
Natal. Mesmo que este seja o mais estranho<br />
Natal que se po<strong>de</strong>ria imaginar.<br />
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa<br />
e da Approach Comunicação, radialista, escritor,<br />
editor e professor<br />
lulavieira.luvi@gmail.com<br />
24 <strong>21</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> <strong>2020</strong> - jornal propmark