Seu - Geia Plural
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visto o poeta pela última vez, ali mesmo, arrimado<br />
à bengala, o rosto encovado, sem o tom<br />
vermelho de outrora, um fulgor febril nos olhos<br />
pensativos, caminhando com esforço, a voz fatigada:<br />
– Sabe de que vivo hoje, Professor? De pedras.<br />
Estou vendendo as pedras da quinta<br />
para comer.<br />
E com a ponteira da bengala mostrou o muro<br />
circundante, já quase todo desfeito sob os ramos<br />
verdes de uma trepadeira.<br />
No entanto, quando a República foi proclamada,<br />
ninguém mais feliz e lépido do que ele.<br />
Andava depressa, de bengala sobraçada, as<br />
abas do fraque a lhe festejarem as pernas magras,<br />
o cabelo liso caindo sob as abas da cartola,<br />
sempre com uma rosa branca na botoeira.<br />
Nomeado intendente da capital, dispensara a<br />
carruagem a que tinha direito, fazendo questão<br />
de andar a pé, da Quinta da Vitória ao outro<br />
lado da cidade, para dar o exemplo de que,<br />
no novo regime, as autoridades eram o próprio<br />
povo, sem regalias nem privilégios. Até mesmo<br />
a sua velha traquitana ele a pusera de lado.<br />
Depois de um silêncio, Damião aventurara a<br />
pergunta:<br />
– E a nossa universidade, Dr. Sousândrade?<br />
O poeta cruzou as mãos enrugadas por cima<br />
do castão da bengala, enquanto engolfava os<br />
olhos na linha do horizonte:<br />
– Longe... longe... longe... Mas, quando se<br />
aproximar, será tudo uma outra cidade, uma<br />
outra gente... Mas virá, e eu não verei.<br />
E pôs-se a recitar, sempre com o olhar perdido<br />
na distância, os ombros curvados:<br />
Solitário vivi, porque arruinaram<br />
Meu lar, meu Deus, e o amor que nele vive.<br />
Depois, ainda a recitar baixinho, foi andando<br />
Índice<br />
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