O Bruxo e o Rabugento primeira parte.indd - Livraria Martins Fontes
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Pegue-se o capítulo “Um Soneto”, de Dom Casmurro. Um<br />
belo dia, Bentinho acorda com um verso na cabeça: Oh! fl or<br />
do céu! oh! fl or cândida e pura. Não adianta lhe perguntar de<br />
onde veio. É o próprio narrador que informa, naquele inconfundível<br />
humour machadiano: “Como e por que me saiu este<br />
verso da cabeça, não sei; saiu assim, estando eu na cama, como<br />
uma exclamação solta.” Apaixonado, logo imagina quem seria<br />
a fl or do misterioso verso: “Capitu, naturalmente”. Mas sem<br />
muita convicção, pois “podia ser a virtude, a poesia, a religião,<br />
qualquer outro conceito a que coubesse a metáfora da fl or, e<br />
fl or do céu”. Vem-lhe a ideia de produzir um soneto. E, depois<br />
de “muito suar”, acode-lhe esta chave de ouro: Perde-se a vida,<br />
ganha-se a batalha! O problema agora é produzir os 12 versos<br />
que faltam entre o primeiro e o último. Como e com que<br />
recheá-los? Machado, dir-se-ia, compraz-se num exercício de<br />
gozação com as “grandes abstrações burguesas”, ao mudar subitamente<br />
de registro: “A ideia agora, à vista do último verso,<br />
pareceu-me melhor não ser Capitu; seria a justiça.”<br />
Ora, esse tipo de sonetista foi desde sempre um personagem<br />
fustigado por Graciliano Ramos. O Bentinho do episódio<br />
lembra, sem tirar nem pôr, a fi gura sem qualquer convicção<br />
do poeta de província evocada por Graciliano numa de suas<br />
crônicas: um tipo que “anda com a cabeça no ar, como convém<br />
a um indivíduo que faz versos. Através da fumaça branca de<br />
seu cigarro percebe vagamente alguma coisa muito brilhante<br />
e muito grande a acenar-lhe”. 28 O quê, pouco importa. O que<br />
importa — remetendo-me outra vez a Sérgio Buarque e a uma<br />
das descrições que ele faz do tipo bacharelesco — é “certo tipo<br />
de erudição sobretudo formal e exterior, onde os apelidos raros,<br />
os epítetos supostamente científi cos, as citações em língua<br />
estranha se destinam a deslumbrar o leitor como se fossem<br />
uma coleção de pedras brilhantes e preciosas”. 29 Na forma e no<br />
conteúdo, a fi gura corresponde a um outro tipo de Graciliano,<br />
o do funcionário lotado “numa cidadezinha de 5 mil habitantes”,<br />
que ele evoca numa das crônicas escritas para a revista<br />
Cultura Política na década de 1940:<br />
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