Livros Na pista do coronel Fawcett e da misteriosa “Z” É uma biografia, uma gran<strong>de</strong> reportagem sobre um tempo já perdido, um livro <strong>de</strong> viagens com cenas aterradoras e um livro <strong>de</strong> ciência. Clara Barata A Cida<strong>de</strong> Perdida <strong>de</strong> Z – Uma Obsessão mortal passada na Amazónia David Grann (trad. José Freitas e Silva) Editor: Livros D’Hoje mmmmn Esta é a história <strong>de</strong> uma obsessão, 26 Espaço Público Este espaço vai ser seu. Que filme, peça <strong>de</strong> teatro, livro, exposição, disco, álbum, canção, concerto, DVD viu e gostou tanto que lhe apeteceu escrever como diz o subtítulo, <strong>de</strong> uma obsessão pelo Inferno Ver<strong>de</strong> da Amazónia, que consumia o coronel Perry Fawcett mas o poupava para que voltasse sempre uma e outra vez ao calor, humida<strong>de</strong>, fome no meio da abundância <strong>de</strong> vida, nuvens <strong>de</strong> insectos e parasitas que consumiam todos os seus companheiros mas não a ele. Porque ele, o coronel Fawcett, que excitou as imaginações dos leitores e dos fãs dos noticiários filmados exibidos antes das fitas <strong>de</strong> cinema, era um herói da fibra dos heróis vitorianos, daqueles que já <strong>esta</strong>vam a <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> existir – alguém que podia ter saído da pena <strong>de</strong> Arthur Conan Doyle. “A Cida<strong>de</strong> Perdida <strong>de</strong> Z” é ao mesmo tempo uma biografia, um livro <strong>de</strong> viagens com cenas aterradoras – experimente não exprimir o espanto em voz alta quando <strong>de</strong>scobrir que na Amazónia há abelhas que comem sobre ele, concordando ou não concordando com o que escrevemos? Envie-nos uma nota até 500 caracteres para ipsilon@publico.pt. E nós <strong>de</strong>pois publicamos. Esta é a história da obsessão pelo Inferno Ver<strong>de</strong> da Amazónia que consumia o coronel Perry Fawcett carne, mesmo que vá a ler o seu livro num transporte público –, uma gran<strong>de</strong> reportagem sobre um tempo já perdido – quando ainda havia locais na Terra suficientemente inexplorados para alguém se per<strong>de</strong>r lá, sem <strong>de</strong>ixar rasto – e uma história <strong>de</strong> <strong>de</strong>manda quase espiritual. E, para rematar, também um pouco um livro <strong>de</strong> ciência, que nos fala <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas recentes, das duas últimas décadas, que só agora começam a ser <strong>de</strong>monstradas com provas físicas. David Grann, um jornalista norteamericano que ven<strong>de</strong>u <strong>esta</strong> história à revista “New Yorker”, em 2005, não resistiu em transformá-la em livro. Ele, que quando pensou que teria <strong>de</strong> ir para Mato Grosso, foi a uma loja <strong>de</strong> artigos <strong>de</strong> aventura em Manhattan e se aprontava para sair <strong>de</strong> lá com os artigos mais improváveis e mais à James Bond possível, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as meias <strong>de</strong> adrenalina até ao gelado liofilizado, como dizem que os astronautas comem, até que o ven<strong>de</strong>dor, com um rebate <strong>de</strong> consciência, lhe perguntou se alguma vez tinha acampado e lhe recomendou uma compra bem menos cara mas mais razoável. O coronel Fawcett, o motor da sua história, não tinha nada a ver com ele. Alto e atlético, <strong>de</strong> bigo<strong>de</strong> elegante, parecia invencível: não havia doença ou aci<strong>de</strong>nte na selva que pegasse nele. Intolerante e exigente, consi<strong>de</strong>rava cobar<strong>de</strong> e criminoso quem não respon<strong>de</strong>sse à tortura da selva como ele. Foi o que aconteceu com James Murray, explorador da Antárctida, na missão <strong>de</strong> Shackleton, quando se juntou a Fawcett, numa malfadada expedição que só por milagre não o levou à morte. Grann <strong>de</strong>screve muito bem, na pág. 134, o que dividia os dois homens, e aquilo que Fawcett tinha <strong>de</strong> ser, para se ter tornado uma lenda ao serviço da Royal Geographic Society britânica, cartografando as fronteiras da Bolívia seguindo os tributários do rio Amazonas: “As qualificações para um gran<strong>de</strong> explorador polar e para um explorador da Amazónia não são necessariamente as mesmas. Na verda<strong>de</strong>, as duas formas <strong>de</strong> exploração são a antítese uma da outra. Um explorador polar tem <strong>de</strong> suportar temperaturas <strong>de</strong> 38 graus abaixo <strong>de</strong> zero e os mesmos terrores repetidamente: queimaduras do frio, fissuras no gelo e escorbuto. Olha e só vê neve e gelo, neve e gelo – uma brancura incessante. O horror fisiológico está em saber que essa paisagem nunca mudará e o <strong>de</strong>safio é resistir, como um prisioneiro na solitária, à privação dos sentidos. Em contrapartida, um explorador da Amazónia, mergulhado num cal<strong>de</strong>irão <strong>de</strong> calor, tem os sentidos constantemente agredidos. Em lugar <strong>de</strong> gelo, há chuva e um explorador aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente espreita a cada passo, em toda a parte, novos perigos: um mosquito malárico, uma lança, uma cobra, uma aranha, uma piranha. A mente tem <strong>de</strong> lidar com o terror do cerco constante”. Nas múltiplas expedições à selva que conduziu, mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> praticamente ter sido acusado <strong>de</strong> assassínio por Murray, Fawcett foi-se transformando ele próprio num homem da selva; falava em tornar-se nativo. Mas foi só <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter encontrado os índios que todos diziam que eram perigosos (que não <strong>esta</strong>vam aculturados, como os que viviam mais perto das linhas <strong>de</strong> água) que <strong>de</strong>sabrochou em pleno a obsessão do coronel, e a sua convicção <strong>de</strong> que estes selvagens, nobres e orgulhosos, com longas flechas e arcos, como não eram os índios aculturados, <strong>de</strong>viam <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma civilização avançada. Indícios <strong>de</strong>ssa civilização perdida <strong>esta</strong>va sempre a encontrálos na selva, sob a forma <strong>de</strong> fragmentos <strong>de</strong> bela cerâmica, em alguns locais até pinturas rupestres. A I Guerra Mundial, e os horrores nunca vistos <strong>de</strong>sse conflito, interromperam-lhe os sonhos. E se calhar danificaram a sua mente <strong>de</strong> uma forma que não é possível aferir. “Z”, no entanto, continuou a fervilhar-lhe no espírito, como uma missão quase religiosa. Não esquecia “Z”, o nome que misteriosamente ele <strong>de</strong>u a essa civilização perdida, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estudar relatos dos primeiros espanhóis e portugueses que andaram pela selva, e <strong>de</strong>screviam um ambiente bem diferente daquele que ele encontrava no início do século XX. E falavam do Eldorado, procurado até à morte por tantos, que sonhavam com o ouro sem fim <strong>de</strong>ssa cida<strong>de</strong> mítica. Após muitas dificulda<strong>de</strong>s, internou-se na selva com o filho <strong>de</strong> 21 anos, Jack, e o melhor amigo <strong>de</strong>ste. Os três homens, que <strong>de</strong>veriam enviar mensagens com o progresso das suas aventuras para um consórcio <strong>de</strong> jornais norteamericanos, <strong>de</strong>sapareceram um dia <strong>de</strong> 1925 na selva, sem <strong>de</strong>ixar rasto. Os boatos foram muitos, muitos outros exploradores tentaram ir resgatá-lo – uma centena terá perecido na aventura – mas <strong>de</strong>le nunca mais se soube nada. No entanto, os cientistas que <strong>de</strong>pois da I Guerra olhavam para ele como uma figura exótica e com i<strong>de</strong>ias estranhas, acabaram por vingar as suas i<strong>de</strong>ias – Grann, que foi mesmo à selva, entre os índios do Brasil, <strong>de</strong>scobre um dos cientistas que está a <strong>de</strong>scobrir a misteriosa civilização perdida da Amazónia. Mas se quer saber mesmo como é <strong>esta</strong> história da selva, tem <strong>de</strong> ler o livro até ao fim. Quebre-se o suspense, só um bocadinho: o que aconteceu mesmo a Fawcett, ao seu filho <strong>de</strong> 21 anos e ao seu amigo <strong>de</strong> infância, isso permanece um segredo da selva.
MUSEU DO ORIENTE