Conhece esta mulher? - Fonoteca Municipal de Lisboa
Conhece esta mulher? - Fonoteca Municipal de Lisboa
Conhece esta mulher? - Fonoteca Municipal de Lisboa
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Livros<br />
Ficção<br />
Quadratura<br />
da neurose<br />
Sexo, drogas, jihad e<br />
psicanálise. Crónica da<br />
Londres pós-swinging, vista<br />
por um paki assumido.<br />
Eduardo Pitta<br />
Algo para te dizer<br />
Hanif Kureishi<br />
(Trad. Rita Graña)<br />
Teorema<br />
mmmmn<br />
Stephen Frears, Daniel Day-Lewis e<br />
Hanif Kureishi (n. 1954) entraram na<br />
minha vida no dia em que vi “A<br />
minha bela lavandaria” (1985).<br />
Nunca mais os perdi <strong>de</strong> vista. Outras<br />
peças <strong>de</strong> Kureishi foram por ele<br />
adaptadas ao cinema. Entretanto, o<br />
28<br />
autor teve a sorte<br />
<strong>de</strong> encontrar em<br />
Portugal um<br />
editor atento. O<br />
catálogo da<br />
Teorema inclui as<br />
suas duas<br />
colectâneas <strong>de</strong><br />
contos, bem como<br />
cinco dos seis<br />
romances. Falta traduzir o primeiro<br />
<strong>de</strong> todos, “The Buddha of Suburbia”<br />
(1990), que lhe valeu o Prémio<br />
Whitbread e um processo judicial da<br />
irmã que o acusou <strong>de</strong> manipular<br />
factos para <strong>de</strong>negrir a família. O<br />
último em data é “Algo para te<br />
dizer”.<br />
Filho <strong>de</strong> pai paquistanês e mãe<br />
inglesa, Kureishi estudou direito e<br />
filosofia mas <strong>de</strong>pois foi ganhar a vida<br />
como autor <strong>de</strong> livros pornográficos.<br />
Críticos conspícuos comparam-no a<br />
Swift e Ballard. Natural <strong>de</strong> Bromley,<br />
tornou-se o cronista por excelência<br />
dos interditos da “great London”.<br />
Jamal Khan, protagonista do<br />
romance e mais que provável alterego<br />
do autor, é um terapeuta <strong>de</strong><br />
origem paquistanesa sem ilusões<br />
acerca dos outros: “Os segredos são<br />
a minha moeda; ganho a vida a lidar<br />
com eles. Segredos do <strong>de</strong>sejo,<br />
daquilo que as pessoas realmente<br />
querem, daquilo que mais temem.<br />
Segredos escondidos em questões<br />
como: Por que motivo é o amor tão<br />
difícil, o sexo complicado, a vida<br />
dolorosa, e a morte tão próxima e no<br />
entando tida como tão longínqua?<br />
Porque é que o prazer e o castigo<br />
estão tão intimamente relacionados?<br />
Como é que os nossos corpos falam?<br />
Porque será o prazer tão difícil <strong>de</strong><br />
aguentar?” E isto é só o primeiro<br />
parágrafo do livro.<br />
Jamal Khan olha a profissão com<br />
complacência: “De outra forma, o<br />
público teria <strong>de</strong> se contentar com<br />
livros <strong>de</strong> auto-ajuda em que os<br />
autores anunciavam os seus<br />
doutoramentos na capa, como uma<br />
garantia <strong>de</strong> estupi<strong>de</strong>z.” Um filho<br />
problemático e uma irmã<br />
toxico<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e bissexual —<br />
Miriam parece <strong>de</strong>calcada da<br />
verda<strong>de</strong>ira irmã <strong>de</strong> Kureishi — são<br />
motivo <strong>de</strong> tensão acrescida. O<br />
aMaumMedíocremmRazoávelmmmBommmmmMuito BommmmmmExcelente<br />
ANNE-CHRISTINE POUJOULAT/ AFP<br />
“Algo para te dizer” prova<br />
que Kureishi <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ter vergonha <strong>de</strong> ser “paki”<br />
exercício da psicanálise é uma forma<br />
como qualquer outra <strong>de</strong> se<br />
“<strong>de</strong>sculpabilizar” enquanto<br />
escalpeliza a Inglaterra pós-Beatles.<br />
Por interposto Jamal Khan, Kureishi<br />
expõe o que pensa sobre Freud,<br />
sexo, drogas, intolerância racial,<br />
imigrantes, o 11 <strong>de</strong> Setembro, o<br />
<strong>de</strong>senraizamento dos muçulmanos<br />
europeus, os homens-bomba, a jihad<br />
islâmica em solo britânico, Mick<br />
Jagger, Lady Di (“a supermo<strong>de</strong>lo da<br />
histeria”), Blair (“um fanático”) e a<br />
guerra do Iraque. Tudo sem per<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> vista a cultura pop dos anos 1960-<br />
70, sublinhada em notas atinentes.<br />
Jamal Khan é bipolar, egocêntrico,<br />
cínico e mesquinho. Não diz tudo,<br />
guarda para si o mais importante.<br />
Afinal <strong>de</strong> contas, não se mata um<br />
homem todos os dias. Melhor que<br />
ninguém, sabe que a torrente da<br />
consciência <strong>de</strong>ve ser servida em<br />
doses homeopáticas. A culpa é um<br />
empecilho? Quem melhor que os<br />
pacientes para o isentar <strong>de</strong>la? Uma<br />
sucessão <strong>de</strong> pequenas histórias<br />
compõem o quadro geral. O recurso<br />
ao “flashback” nem sempre é eficaz,<br />
ficando algumas pontas soltas por<br />
resolver. Um expediente curioso é o<br />
da intromissão do protagonista <strong>de</strong><br />
“A minha bela lavandaria”. O jovem<br />
gay paquistanês da era Thatcher é<br />
agora um produtor da televisão,<br />
próspero e conservador. Uma<br />
metáfora do percurso do autor?<br />
Os últimos capítulos ocupam-se<br />
do ataque terrorista <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Julho <strong>de</strong><br />
2005, em Londres: três bombas no<br />
metro, outra num autocarro que<br />
atravessava Tavistock Square.<br />
Enquanto “<strong>de</strong>baixo da superfície, a<br />
cida<strong>de</strong> ardia num inferno<br />
in<strong>de</strong>scritível”, Jamal Khan revê<br />
mentalmente os que <strong>de</strong>ixaram o seu<br />
nome associado à praça: Gandhi,<br />
Dickens, Freud, James Strachey,<br />
Virginia Woolf... Ao mesmo tempo,<br />
pensa “no horror daqueles<br />
comboios <strong>de</strong>struídos pelas bombas,<br />
naqueles corpos <strong>de</strong>spedaçados [...]<br />
que culminam, pelo menos na<br />
minha cabeça, na matança diabólica<br />
<strong>de</strong> civis em Bagda<strong>de</strong>: cabeças<br />
cortadas [...] membros atirados para<br />
as árvores.”<br />
Porém, mais do que a crítica social<br />
(oriundo da alta classe média<br />
paquistanesa, Kureishi nasceu e<br />
cresceu na periferia proletária do sul<br />
<strong>de</strong> Londres, on<strong>de</strong> os pais se<br />
radicaram <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> fugir da Índia),<br />
o sexo é o Leitomotiv da obra. E um<br />
livro como este ilustra bem a<br />
máxima do autor: “os círculos<br />
adjacentes do prazer são múltiplos”.<br />
Mérito maior, “Algo para te dizer”<br />
prova que Kureishi <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ter<br />
vergonha <strong>de</strong> ser “paki”.