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Conhece esta mulher? - Fonoteca Municipal de Lisboa

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Temos<br />

<strong>de</strong> mexer<br />

na Amália<br />

Tem sido assim a nossa relação com ela: aprisionámos<br />

o monstro. Amália tornou-se figura sem corpo, à mercê<br />

do imaginário colectivo. A exposição “Amália, Coração<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte” po<strong>de</strong> ser o início <strong>de</strong> uma nova relação.<br />

Temos <strong>de</strong> mexer nela. Kathleen Gomes<br />

Quando Jean-François Chougnet sugeriu<br />

o título “Coração In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”<br />

para a exposição que abre terçafeira<br />

em <strong>Lisboa</strong>, no Museu Berardo e<br />

no Museu da Electricida<strong>de</strong>, não <strong>esta</strong>va<br />

a contar com resistência interna.<br />

Fez uma sondagem junto da sua equipa<br />

e “ninguém gostou”, revela. “Diziam<br />

que era um fado <strong>de</strong> que ninguém<br />

gosta, que não era um fado popular,<br />

mas um fado para a ‘intelligentsia’,<br />

etc.” No dia seguinte, o director do<br />

Museu Colecção Berardo apanhou o<br />

autocarro 745 para o aeroporto <strong>de</strong><br />

<strong>Lisboa</strong> e reparou num jovem com um<br />

leitor <strong>de</strong> MP3 a seu lado – isto é, reparou<br />

no que ele ouvia. “Dois dias <strong>de</strong>pois<br />

regresso aqui e digo: ‘Se há um<br />

jovem no autocarro 745 a ouvir ‘Estranha<br />

Forma <strong>de</strong> Vida’ [canção <strong>de</strong> que<br />

fazem parte os versos ‘Coração in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte,<br />

coração que não comando’],<br />

é porque não é uma coisa totalmente<br />

fora...”, ri-se.<br />

É uma “petite histoire”, mas é reveladora<br />

do que tem sido a história<br />

da nossa relação com Amália Rodrigues:<br />

à força <strong>de</strong> a meter em caixinhas,<br />

nunca <strong>de</strong>ixámos que fosse tudo o que<br />

podia ser. Aprisionámos o monstro e<br />

criámos regras <strong>de</strong> convivência para o<br />

manter sob controle. Amália tornouse<br />

uma figura sem corpo à mercê das<br />

disposições do imaginário colectivo.<br />

Somos reféns convertidos em sequestradores:<br />

a sombra <strong>de</strong> Amália é inescapável,<br />

mas também não a <strong>de</strong>ixamos<br />

à solta (e tentamos sempre disparar<br />

primeiro).<br />

É por isso que este po<strong>de</strong> ser o início<br />

<strong>de</strong> uma nova relação com Amália: a<br />

exposição “Amália, Coração In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”,<br />

que está no centro <strong>de</strong> uma<br />

verda<strong>de</strong>ira Operação Amália, com<br />

uma programação intensa que se es-<br />

ten<strong>de</strong> a outras instituições (Teatro S.<br />

Luiz, Museu do Fado) no momento<br />

em que se assinala o décimo aniversário<br />

da morte da fadista, propõe repensar<br />

o fenómeno nas suas múltiplas<br />

dimensões com uma perspectiva contemporânea.<br />

Além da tentativa <strong>de</strong><br />

concentrar Amália na sua totalida<strong>de</strong><br />

– fadista, actriz <strong>de</strong> cinema, ve<strong>de</strong>ta internacional,<br />

mito nacional, etc. – procuram<br />

lançar-se novas abordagens<br />

que, se não quebram o espelho, pelo<br />

menos po<strong>de</strong>rão abrir fissuras na percepção<br />

pública da figura.<br />

Talvez um dia olhemos para agora<br />

como o momento em que se fez o “reset”<br />

<strong>de</strong> Amália.<br />

Obra aberta<br />

Primeira constatação: apesar da sua<br />

popularida<strong>de</strong>, prestígio e amplitu<strong>de</strong>,<br />

Amália tem sido pouco estudada, o<br />

que é revelador do <strong>esta</strong>do incipiente<br />

dos estudos culturais em Portugal. “A<br />

minha primeira surpresa, ao começar<br />

a trabalhar sobre Amália, é que não<br />

há gran<strong>de</strong> bibliografia”, diz Jean-François<br />

Chougnet. “É um assunto evi<strong>de</strong>nte<br />

mas que não é tão tratado quanto<br />

parece.”<br />

A única biografia existente, que<br />

continua a ser a referência <strong>de</strong> base<br />

para qualquer investigador, foi publicada<br />

em 1987 pelo ex-crítico <strong>de</strong> teatro<br />

e antigo director do Museu Nacional<br />

do Teatro, Vítor Pavão dos Santos, e<br />

reeditada em 2005. Intitulada “Amália<br />

– Uma Biografia”, é, na verda<strong>de</strong>,<br />

uma espécie <strong>de</strong> autobiografia composta<br />

a partir <strong>de</strong> inúmeras e extensas<br />

entrevistas (78 horas <strong>de</strong> gravações)<br />

conduzidas entre 1982 e 1986.<br />

“O Vítor Pavão dos Santos é o ponto<br />

<strong>de</strong> partida e <strong>de</strong> chegada <strong>de</strong> todos<br />

os estudiosos da Amália e a gente tem<br />

Além da tentativa<br />

<strong>de</strong> concentrar Amália<br />

na sua totalida<strong>de</strong><br />

– fadista, actriz <strong>de</strong><br />

cinema, ve<strong>de</strong>ta<br />

internacional, mito<br />

nacional, etc.<br />

– procuram lançar-se<br />

novas abordagens<br />

que, se não quebram<br />

o espelho, pelo menos<br />

po<strong>de</strong>rão abrir<br />

fissuras na percepção<br />

pública da figura<br />

Amália<br />

tem sido<br />

pouco<br />

estudada,<br />

o que é<br />

revelador<br />

do <strong>esta</strong>do<br />

incipiente<br />

dos estudos<br />

culturais em<br />

Portugal<br />

<strong>de</strong> tirar o chapéu ao trabalho <strong>de</strong>le<br />

porque sem ele tínhamos <strong>de</strong> começar<br />

do zero”, nota o musicólogo Rui Vieira<br />

Nery. “Mas não po<strong>de</strong>mos esquecer<br />

que são entrevistas tardias. E que a<br />

Amália relembra a sua vida mas também<br />

reconstrói a sua imagem. Não é<br />

que esteja a tentar enganar-nos. Mas<br />

ela própria vai olhando para a sua vida<br />

e vai refazendo as coisas. Olha com<br />

uma perspectiva que já é posterior e<br />

que não correspon<strong>de</strong> àquela que ela<br />

tinha na altura. Temos <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontar<br />

o seu discurso e perceber em cada<br />

época qual é a postura <strong>de</strong>la e como é<br />

que foi evoluindo.”<br />

David Ferreira, ex-director da EMI-<br />

Valentim <strong>de</strong> Carvalho, responsável<br />

por muitas reedições da obra <strong>de</strong> Amália<br />

e pelas duas compilações que vão<br />

ser lançadas em simultâneo com a<br />

exposição “Coração In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”,<br />

corrobora: “Faz falta um documento<br />

do mesmo género pré-1974” porque<br />

“não é a mesma pessoa”.<br />

Segunda constatação: pelas suas<br />

características, Amália é um tema que<br />

resiste à análise crítica. “Há um obstáculo<br />

muito gran<strong>de</strong> que parte da relação<br />

afectiva que temos todos com<br />

ela”, diz Nery, acrescentando que<br />

existe uma tentação <strong>de</strong> proteccionismo<br />

em relação à figura. “É preciso<br />

não divinizar <strong>de</strong> tal maneira a Amália<br />

que ela se liberta da espécie humana<br />

e do contexto específico em que se<br />

moveu.”<br />

A exposição “Coração In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte”<br />

é acompanhada por um catálogo,<br />

que é um complemento, mais do que<br />

uma reprodução gráfica da mostra, e<br />

<strong>de</strong>nota um esforço para produzir análise.<br />

Pediu-se a um conjunto <strong>de</strong> especialistas<br />

que reflectissem sobre os<br />

campos <strong>de</strong> acção <strong>de</strong> Amália ou so-<br />

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