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A combate à pobreza<br />
pode ser organizado<br />
em três dimensões, mas<br />
há uma hierarquia<br />
entre elas. A mais decisiva é<br />
a cidadania, seguindo-se<br />
a inserção no mercado<br />
de trabalho e, por fim, a<br />
assistência social<br />
R ELATÓRIO DE D ESENVOLVIMENTO H UMANO - BRASIL 2005<br />
Ao tratar da educação, Paulo Freire cunhou o termo politicidade como o confronto<br />
entre incluídos e excluídos, implicando a habilidade de conduzir com autonomia<br />
o próprio destino. Enquanto esperarem que os opressores os libertem, os<br />
oprimidos não serão construtores e gestores da própria vida, já que são desprovidos<br />
não apenas de bens materiais, mas sobretudo da capacidade de se governar. Os<br />
oprimidos não podem ser somente objeto de distribuição de bens na condição de<br />
simples beneficiários, porque tal medida não desfaz o nó dessa dinâmica 1 .As estratégias<br />
de combate à pobreza devem estimular as pessoas pobres a tornar-se o<br />
sujeito da alternativa. Do contrário, estarão à mercê de forças políticas que não<br />
dominam e muitas vezes desconhecem.<br />
Quadro 1 • Conhecimento: a chave da oportunidade<br />
Politicidade sinaliza que a história pode ser relativamente própria, na medida em que seja<br />
possível conquistar autonomia crescente. Nunca se é totalmente autônomo, porque a autonomia<br />
de um invariavelmente se choca com a de outros.Entretanto,pode-se alargar a autonomia<br />
humana por meio da capacidade de aprender, conhecer e se organizar politicamente<br />
para construir projetos alternativos. Por isso, a política social do conhecimento<br />
provavelmente será a estratégia mais eficiente de combate à pobreza,porque é nesse patamar<br />
que se condicionam as oportunidades.<br />
A dimensão material da pobreza não se torna secundária,como dito anteriormente,mas passa<br />
a ser entendida a partir da dinâmica das desigualdades. O lado mais auspicioso dessa<br />
noção é que a pobreza foi forjada na história, e o que é histórico pode ser mudado. Podese<br />
negociar sociedades igualitárias e democráticas,desde que todos os seus membros participem<br />
da disputa por oportunidades dentro de regras de jogo que tenham o bem comum<br />
como base.<br />
Sobre esse pano de fundo, o combate à pobreza também pode ser organizado em três dimensões:<br />
a assistência social, porque a sobrevivência é um direito radical; a inserção no<br />
mercado,para que o pobre se auto-sustente e tenha projeto de vida;e a cidadania,para que<br />
o pobre assuma seu destino com a devida autonomia. Os três componentes são essenciais,<br />
mas há uma hierarquia entre eles. O mais decisivo é a cidadania, seguindo-se a inserção<br />
no mercado e,por fim,a assistência.O contrário de pobreza política é “qualidade política”,<br />
designando a dinâmica da cidadania individual e coletiva.<br />
Qualidade política implica a capacidade de construir consciência crítica, organizar-se politicamente<br />
de modo a transformar-se no sujeito da própria história e arquitetar e tornar<br />
possível um projeto alternativo de sociedade. Mas, para a construção de adequada qualidade<br />
política,existem outras dimensões fundamentais,como o acesso à informação e à comunicação<br />
social.Há necessidade,ainda,do cultivo de identidades e de oportunidades culturais.<br />
Sem falar no papel que o Estado deve cumprir, não como promotor e menos ainda<br />
como condutor da cidadania, mas como instância delegada de serviço público, cuja qualidade<br />
depende, antes de tudo, do controle democrático.<br />
Aceitar a politicidade<br />
significa instaurar<br />
sociedades que<br />
saibam negociar<br />
as oportunidades dentro<br />
das regras do estado<br />
de direito, o que sempre<br />
foi a pretensão<br />
das democracias<br />
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O conceito de desenvolvimento “como oportunidade”já acena para essa dimensão<br />
e, não por acaso, seu primeiro indicador é a educação. O resultado mais efetivo<br />
dessa conceituação foi mudar a perspectiva para uma análise que desse mais peso a<br />
dimensões políticas que a dimensões materiais.Aceitar essa politicidade da realidade<br />
social significa instaurar sociedades que saibam negociar as oportunidades dentro<br />
das regras do estado de direito, o que sempre foi a pretensão das democracias. Desse<br />
modo, o termo igualitário enfeixa a seguinte idéia democrática: uma sociedade na<br />
qual as pessoas podem ser, a um só tempo, iguais mas diferentes.<br />
PROCESSOS E CAUSAS DA POBREZA POLÍTICA DA POPULAÇÃO NEGRA<br />
É importante destacar da parte histórica os fundamentos que podem explicar o estado<br />
de pobreza política da população negra. E nesse caso convém traçar um paralelo<br />
com as estratégias de dominação racial postas em execução nos Estados Unidos, pelo<br />
fato de sempre terem servido de referencial no Brasil não apenas para as mulheres<br />
e os homens negros em suas lutas anti-racistas,mas principalmente para as elites brancas,<br />
que ao formular as políticas raciais no país, em fins do século 19, inspiravam-se<br />
no exemplo da ex-nação escravocrata da América do Norte.<br />
A própria natureza da escravidão no Brasil favoreceu o surgimento de arranjos<br />
que agravaram a destituição de poder da população negra, como é o caso da miscigenação<br />
e do papel que os senhores tiveram de atribuir aos mulatos, diante da<br />
escassez de mão-de-obra branca para ocupar os cargos de confiança. Essas divisões<br />
logicamente quebraram correntes de solidariedade. Nesse sentido, a existência das<br />
irmandades dos homens pretos e das irmandades dos homens pardos é emblemática.A<br />
desconfiança entre os escravos africanos pretos em relação aos escravos pardos<br />
foi superada em alguns momentos, mas em geral prevaleceu o sentimento de que<br />
havia um divisor de águas entre os dois grupos, visto que uns estavam sob a chibata<br />
dos outros. Paralelamente, os escravos da casa-grande ou aqueles usados para os<br />
serviços pessoais detinham melhores condições de negociação.<br />
A desproporção entre negros e brancos no Brasil levou a critérios de classificação<br />
racial fenotípica que promoveram indivíduos mestiços à categoria de “brancos”.<br />
Uma classificação genotípica teria gerado problemas políticos incontornáveis,<br />
pelo fato de existirem membros não-brancos entre as elites do império. Enquanto<br />
isso, nos Estados Unidos, a população negra sempre foi minoritária. Naquele país, a<br />
definição política da classificação racial foi genotípica e por hipodescendência, ou<br />
seja, os frutos da miscigenação eram considerados negros em razão de ser esta a<br />
“raça” considerada “inferior”. A graduação de cor, embora existente no interior do<br />
segmento negro norte-americano, não teve a mesma validação externa, impedindo<br />
assim que as fragmentações internas se tornassem obstáculos à mobilização política<br />
unificada das mulheres e dos homens negros 2 .<br />
Assim, demografia e classificação racial determinaram o diferencial das estratégias<br />
de dominação concebidas pelas duas nações escravocratas. No período pósabolição,<br />
ao deixarem que a condição de mulato funcionasse como válvula de<br />
mobilidade social e de livramento das marcas de africanidade na segunda e na terceira<br />
geração, as elites obtiveram simultaneamente dois resultados: dividiram o que<br />
poderia ser uma comunidade negra unida por um destino político comum e<br />
esvaziaram as possibilidades de conflito racial. Além disso, a promessa de ascensão