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R ELATÓRIO DE D ESENVOLVIMENTO H UMANO - BRASIL 2005<br />

termos do IBGE,chegássemos a 136 classificações na última Pnad:da realidade de designações<br />

curinga, como pardo, que nada dizem; como é que se determinam fronteiras de<br />

cor e, no limite, quem é negro no Brasil? É claro que, na ótica das pequenas autoridades<br />

do cotidiano – porteiros, policiais, chefes de restaurantes e seguranças –, parece não<br />

haver motivo para titubeio. Sabemos, porém, que utilizada politicamente a identidade é<br />

sempre um instrumento contrastivo e situacional, variando em função do benefício e do<br />

momento. Mas, mesmo se julgássemos “cor” como um problema irrelevante, seria bom<br />

considerar que uma reserva desse tipo garante a entrada, mas não a permanência em<br />

um curso universitário, por exemplo. Com efeito, os prejuízos da história não são ressarcidos<br />

por uma vontade formal.<br />

Em outras palavras, o que significa “tratar desigualmente os desiguais”ou implementar<br />

a “discriminação racial positiva”– peças de retórica das atuais políticas de ação afirmativa,<br />

que no caso brasileiro vem adquirindo visibilidade mediante a implementação de<br />

cotas raciais nas universidades? Ou seja,se há mérito no enfrentamento atual desse tipo<br />

de debate, ele se encontra no fato de dar maior visibilidade à discussão sobre o racismo<br />

no Brasil e, além do mais, abrir um debate público sobre as distintas formas de enfrentamento.<br />

No entanto, o perigo é novamente “racializar”o tema e recuperar conceitos<br />

que no passado implicaram uma evidente política de exclusão social. O raciocínio dominante<br />

é perigoso e até mesmo circular: se a pobreza no Brasil está associada a “raça”,<br />

então toda questão educacional que evidencie problemas de acesso ou aprendizagem no<br />

âmbito da “raça negra” implica exclusão (racial) e, por conseguinte, a necessária<br />

aprovação de “políticas raciais”. A conclusão óbvia, então, parece ser que se deve<br />

racializar a educação em nome da promoção social.<br />

Mas seria possível inverter o raciocínio: se a pobreza é supostamente tão racializada, os<br />

estabelecimentos de ensino não seriam espaços privilegiados para, justamente, desracializar<br />

o debate? Ou seja,mostrar como “raça”enquanto conceito biológico não se sustenta<br />

e é antes uma construção social? O resultado perverso é que ao combater a perpetuação<br />

da discriminação e da exclusão, tão arraigadas em nossa sociedade, escorregamos<br />

na racialização;isto é,na perpetuação do (pre)conceito cujos efeitos se quer anular.<br />

O racismo produziu raças, e não é possível acreditar que políticas públicas racializadas<br />

levem à igualdade. Deveríamos retomar princípios de universalidade e cidadania,<br />

lembrando sempre que raças não existem: conformam um “conceito tóxico”, como afirmou<br />

o sociólogo Paul Gilroy, pois contagiam o tecido social. Por outro lado, e a despeito<br />

de tantas críticas teóricas, a idéia de “raça” continua a ser utilizada de maneira pragmática<br />

e política entre nós, demonstrando-se acima de tudo como um marcador de diferença<br />

e, nesse sentido, como uma representação tão poderosa e tão verdadeira como o<br />

são as relações sociais.<br />

Estamos assim bem no “olho do furacão”, e quem sabe seja a hora de retomar as máximas<br />

da antropologia social – disciplina que se constituiu em um momento dramático de<br />

encontro de civilizações –, que insiste no princípio da igualdade entre seres humanos e<br />

na falta de vínculos entre genética e cultura. Raça, dessa perspectiva, não é uma realidade<br />

biológica, mas um artefato social, político e histórico.<br />

No entanto, o categórico não a qualquer iniciativa anuncia resignação. Se de um lado é<br />

preciso lembrar que o mito – o mito da democracia racial – não só “esconde”como “revela”<br />

e descreve conformações de nossa sociedade, não há como omitir a vigência do<br />

racismo, presente no dia-a-dia e nas falácias do cotidiano. O tema parece, assim, não ter<br />

volta, e quem sabe sua explicitação ajude a ir além do jogo de cena.“Ações afirmativas”<br />

Nos escalões mais<br />

elevados do Estado, de<br />

maior status,prestígio e<br />

remuneração, os brancos<br />

predominam. Enquanto<br />

isso, na base da hierarquia<br />

funcional e em faixas<br />

intermediárias há maior<br />

concentração de negros<br />

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representam mais do que uma política imediata; apresentam-se como estratégia política<br />

para a abertura de um processo de negociação a prazo longo, e como reação à pressão<br />

interna e externa, sobre as maneiras como a sociedade brasileira responde à desigualdade.<br />

Implicam, ainda, a abertura de um diálogo sobre critérios de reconhecimento e de<br />

auto-reconhecimento e a releitura de uma memória histórica, feita de tantas seleções e<br />

esquecimentos. Permitem, por fim, que se nomeiem outras histórias que implicam estratégias<br />

de orgulho e de lembrança. Nada como estudar, lado a lado, diferentes temporalidades<br />

que remontem à Europa, mas também à África – local de origem de vasta parte de<br />

nossa população. Mas não se trata de congelar essa como outras histórias: são muitas<br />

as “Europas”, como são tantas as “Áfricas”. O que está em pauta são as formas de enfrentamento<br />

que devem se guiar por princípios,a um só tempo,universais mas correlatos<br />

à nossa própria realidade.<br />

O bom diálogo não é aquele que encerra, mas aquele que continua a incomodar e gerar<br />

reflexão. Entre tantos sim e não,é impossível colocar, agora, um derradeiro ponto final.<br />

Lilia Moritz Schwarcz<br />

Professora de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e autora,<br />

entre outros, de Retrato em Branco e Negro, Espetáculo das Raças e<br />

As Barbas do Imperador (todos da Companhia das Letras)<br />

O PAPEL DO ESTADO E DE OUTROS AGENTES SOCIAIS<br />

Os diferenciais nos indicadores entre brancos e negros sugerem a presença de práticas<br />

de racismo nas instituições do Estado.Estas não constituem um corpo monolítico,<br />

coeso e identificado por interesses comuns. Procedendo de uma sociedade estratificada,<br />

as instituições são o reflexo de polarizações de classe, raça,posição na estrutura<br />

de poder e grupos de interesse e pressão. Nos escalões mais elevados do Estado,<br />

de maior status, prestígio e remuneração, encontram-se predominantemente brancos.<br />

Enquanto isso, na base da hierarquia funcional e em faixas intermediárias, há<br />

maior concentração de negros.O papel e a importância das instituições de Estado,no<br />

entanto, são relevantes não apenas nos escalões superiores como também nos inferiores,<br />

que estão na linha de frente do processo de execução e, mesmo sem acesso aos<br />

níveis decisórios centrais, tomam cotidianamente decisões concretas e específicas.<br />

As instituições estatais são um agente político de peso por várias razões. A<br />

primeira é que nenhuma política pode ser executada sem a máquina administrativa.<br />

Ela reúne incontrastáveis recursos de poder: seu tamanho e sua capilaridade<br />

por todo o país. Em todos os municípios brasileiros existe, pelo menos, uma das<br />

seguintes agências públicas: escola, posto de saúde e agência de correio. Outro<br />

recurso de poder é o volume de recursos disponíveis nos órgãos governamentais.<br />

Um terceiro recurso é o conhecimento, seja ele tácito, seja técnico e científico, fundamental<br />

para qualificar a agenda e o debate políticos. Finalmente, um quarto<br />

recurso de poder é a estabilidade: enquanto governos entram e saem, as instituições<br />

estatais permanecem, o que lhes confere um sentimento de relaxamento e<br />

conservadorismo, tomando as mudanças que eventualmente os governos queiram<br />

realizar como modismos.

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