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112<br />

R ELATÓRIO DE D ESENVOLVIMENTO H UMANO - BRASIL 2005<br />

CONTRIBUIÇÃO ESPECIAL • Um exílio que independe<br />

do regime político<br />

O Relatório de Desenvolvimento Humano representa uma conquista na direção do país e<br />

do mundo com que sempre sonhei. Resultado dos esforços organizados dos povos discriminados,<br />

o compromisso do PNUD com a Declaração e o Plano de Ação de Durban representa<br />

um avanço no processo de construção de um mundo em que possa florescer a paz<br />

com igualdade e convivência harmônica entre os povos.<br />

Nasci em 1914,num Brasil marcado pela indignidade do regime escravista e pelo fracasso<br />

da promessa republicana.Meu povo,trazido da África,não foi contemplado por nenhum<br />

dos gestos históricos formadores da nação.Ao contrário, o negro construiu sozinho, com<br />

seu talento, trabalho e conhecimento, e sobretudo com seu sangue, um belo país para os<br />

outros usufruirem. Os índios, massacrados em todos os sentidos, também foram excluídos<br />

no sentido mais exato da palavra.<br />

Desde a década de 1920, quando a Guarda Municipal de São Paulo se compunha somente<br />

de homens brancos, participei dos esforços incessantes desses povos no sentido de conquistar<br />

os seus direitos.Na década de 1930,militei na Frente Negra Brasileira e no Congresso<br />

Afro-Campineiro.Em 1944,fundei o Teatro Experimental do Negro e organizamos a Convenção<br />

Nacional do Negro, que apresentou à Assembléia Nacional Constituinte de 1946 uma série<br />

de medidas no sentido de construir políticas públicas de igualdade racial. Nossa voz permanecia<br />

silenciada pela força da ideologia da democracia racial, que abafava com a arrogância<br />

de uma elite todo-poderosa qualquer esforço no sentido da inclusão social.<br />

Passamos excluídos por todas as etapas de autoritarismo e democracia da República Velha<br />

e Nova – portanto,vivemos um exílio que independe do regime político.Quando saí do Brasil<br />

do regime militar,em 1968,os países africanos conquistavam e consolidavam a sua independência<br />

do colonialismo. O movimento Pan-Africanista conclamava o mundo a fazer justiça,<br />

e a voz dos afro-brasileiros começou a ser ouvida nos fóruns mundiais.A partir da abertura<br />

política da década de 1980, o movimento social anti-racista, protagonizado pelo movimento<br />

negro, conquistou no Brasil alguns avanços, como uma pequena representação parlamentar<br />

e a criação de órgãos e conselhos governamentais em nível municipal, estadual<br />

e federal.A partir do processo de organização da 3ª Conferência Mundial de Durban, conseguiu<br />

fazer prevalecer o princípio da necessidade de políticas públicas de igualdade racial<br />

e implementar medidas e programas de ação afirmativa. Entretanto, ainda falta muito para<br />

que possamos construir no Brasil uma verdadeira igualdade de oportunidade para todos,<br />

com direito ao pleno exercício das identidades e dos direitos culturais.As desigualdades<br />

continuam consignadas nas estatísticas e nas pesquisas que documentam a exclusão do<br />

povo afrodescendente dos benefícios de uma República que ele construiu para os outros.<br />

Sonho com um Brasil e um mundo em que não só seja ouvida a voz dos excluídos,mas que<br />

seus anseios sejam atendidos; um Brasil e um mundo em que a identidade e a tradição<br />

cultural de cada povo tenham o pleno direito de desenvolvimento em clima de respeito mútuo;<br />

um Brasil e um mundo em que as crianças possam crescer com dignidade,desfrutando<br />

plenamente de seus direitos civis,humanos,socioeconômicos e culturais.Esse é o Brasil<br />

e o mundo que os orixás e os ancestrais pensaram para nós e para as gerações que ainda<br />

estão para nascer.<br />

Abdias Nascimento<br />

Ativista do movimento negro<br />

O movimento negro<br />

poderia engajar-se<br />

de forma mais<br />

categórica na luta<br />

por medidas<br />

redistributivas de<br />

caráter universalista<br />

113<br />

A construção de um discurso adaptado às diferentes realidades do país é<br />

outro desafio enfrentado pelo movimento. A produção bibliográfica dos brasilianistas,<br />

por exemplo, tem forte influência sobre as lideranças negras. Se é inegável<br />

que há muitas lições a serem aprendidas com as várias experiências dos Estados<br />

Unidos, também é certo que estas precisam ser moduladas e enriquecidas com categorias<br />

analíticas e modelos que reflitam o contexto local.<br />

As lideranças negras do Sudeste, por seu turno, influenciam o movimento<br />

negro do restante do país, em razão de falarem a partir de um lugar que concentra<br />

o poder econômico e político do Brasil. No entanto, sem a formação de uma agenda<br />

que traduza a diversidade e a pluralidade das condições regionais e locais, é<br />

pouco provável que os negros das regiões mais pobres se vejam refletidos nesse<br />

movimento e, por conseqüência, dele participem.<br />

O caráter libertário e civilizatório do movimento negro requer que ele use as<br />

especificidades locais para se universalizar e falar para todo o país, inclusive para<br />

os brancos. Até porque, para enfrentar os desafios inerentes à mudança de quase<br />

cinco séculos de dominação racial no Brasil, amplas alianças precisam ser forjadas.<br />

Só assim será possível fazer com que a igualdade de oportunidades e a reparação<br />

da injustiça contra a população negra deixem de ser questão do negro e passem a ser<br />

um objetivo nacional permanente.<br />

Para atingir esse estágio, é preciso que as entidades que integram o esforço<br />

anti-racista se transformem em escolas de socialização. Nas escolas formais, as crianças<br />

negras freqüentemente são levadas a reduzir suas expectativas e canalizá-las<br />

para outros espaços de ascensão social, como o esporte e a música 17 .As organizações<br />

negras poderiam, portanto, preparar seus membros para o domínio da linguagem,<br />

do conhecimento teórico e dos exercícios de debate público, de modo a<br />

torná-los aptos para a vida pública.<br />

Para ganhar impulso, o movimento negro precisa, ainda, constituir-se em<br />

recurso de proteção social para comunidades privadas de direitos, como as favelas.<br />

Não há dúvida de que é nesses espaços que se encontram os segmentos mais discriminados<br />

da população negra. Neles instaladas, as organizações poderiam mediar<br />

conflitos, expressar demandas e pressionar por uma presença do Estado que garantisse<br />

a cidadania.Ainda do ponto de vista estratégico, o movimento negro poderia<br />

engajar-se de forma mais categórica na luta por medidas redistributivas de caráter<br />

universalista, que comecem por contemplar essas áreas de maior carência. É<br />

muito provável que, a partir desses esforços, a população negra reconheça o movimento<br />

como imprescindível, resultando na expansão de suas fileiras e na ampliação<br />

da sua capacidade de pressão sobre o Estado e sobre a sociedade brasileira.<br />

Por fim, é importante ampliar a perspectiva sobre as dificuldades que os negros<br />

enfrentariam para constituir um movimento de massas contra o racismo no Brasil.<br />

Primeiro, seria preciso superar o período atual, marcado pelo refluxo de praticamente<br />

todos os movimentos sociais, inclusive os sindicais e partidários. Além disso, seria<br />

necessário ultrapassar obstáculos de natureza psíquica para construir uma identidade<br />

racial que passou por longo processo de negação. Essas são questões sobre as quais o<br />

movimento negro pouco pode fazer e que dependem de esforços mais globais.<br />

Mesmo em contexto desfavorável e em conjuntura histórica pouco estimulante às<br />

lutas por políticas redistributivas, pode-se dizer que as conquistas obtidas até o<br />

momento são compensadoras e constituem incentivos para muitas outras.

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