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R ELATÓRIO DE D ESENVOLVIMENTO H UMANO - BRASIL 2005<br />

natureza. Ou seja, é pela sua parcela preta que os pardos são discriminados”. Esta segunda<br />

justificava (que o relatório denomina teórica) é considerada “obviamente mais importante,<br />

pois, ao fornecer uma explicação para a origem comum das desigualdades dos<br />

pretos e dos pardos em relação aos brancos, coloca os dois grupos como beneficiários<br />

legítimos de quaisquer ações que venham a ser tomadas no sentido de reverter o quadro<br />

histórico e vigente dessas desigualdades”.<br />

Não me convenço de que nada disso seja “óbvio”.As estatísticas são baseadas na autoatribuição<br />

dos indivíduos em cores/raças estipuladas pelo IBGE. Desde o artigo seminal<br />

de Oracy Nogueira 23 ,ficou mais que estabelecido que o preconceito racial no Brasil (“de<br />

marca”) não decorre de auto-atribuição, mas da atribuição que uns fazem dos outros.<br />

Assim, opera com mais veemência contra os indivíduos mais escuros e mais pobres. Não<br />

há, portanto, uma linha clara entre os que são vítimas de discriminação e os que não o<br />

são. O procedimento de dividir o Brasil em duas raças, que José Murilo de Carvalho<br />

chamou de “genocídio racial estatístico” 24 , consolida (e até produz entre aqueles que<br />

antes desacreditavam em raças) duas raças distintas, negros e, por suposto, brancos.A<br />

causa principal das desigualdades entre pessoas classificadas como brancas, morenas,<br />

mulatas e negras é o racismo.<br />

O relatório acerta quando afirma que a luta tem de ser contra o racismo e contra a raça<br />

“como um critério de classificação das pessoas para a alocação diferenciada na hierarquia<br />

social e na estrutura de oportunidades”.Acredito, porém, que, pela lógica, a utilização<br />

pelas Nações Unidas 25 e pelo Estado brasileiro do conceito de “raça” na alocação<br />

diferenciada de recursos terá fatalmente o efeito de consolidar a crença no conceito de<br />

raça. A promoção de políticas públicas específicas para aqueles cidadãos que se definem<br />

e são definidos como negros, longe de debelar a crença em raças, vai fortalecê-la.<br />

O relatório afirma que as “desvantagens [dos negros] não se corrigem se o Estado e a<br />

sociedade não elegerem como prioridade a erradicação do racismo”. Com certeza. Mas,<br />

insisto, políticas públicas que têm como pressuposto o conceito de “raça”terão o efeito<br />

contrário: consolidarão um Brasil de duas “raças”e, portanto, de um pensamento social<br />

legalmente racializado.<br />

O relatório afirma ainda que, no desenho das propostas,“teve-se o cuidado de nada sugerir<br />

que pudesse esgarçar o tecido social do país. Pelo contrário, as políticas de promoção<br />

da igualdade racial só terão sucesso a partir da construção de uma ampla coalizão<br />

de interesses que solidifiquem uma vontade política comum”. Entretanto, a consolidação<br />

de um Brasil de duas “raças” distintas poderá ter justamente o efeito de “esgarçar<br />

o tecido social”. Penso nas vastas áreas da vida social brasileira em que pessoas<br />

de todas as aparências imagináveis convivem em famílias,vizinhanças,clubes,grupos<br />

religiosos, escolas e universidades, falando a mesma língua e compartilhando os<br />

mesmos pressupostos culturais de fundo. Perpassa o relatório um estranho pressuposto<br />

segundo o qual os “negros”– definidos estatisticamente – são, como por uma essência<br />

“racial”, culturalmente distintos dos “brancos”. O efeito da utilização do conceito de<br />

“raça”na alocação dos bens públicos poderá ser exatamente produzir clivagens nesses<br />

espaços em que atualmente não existem e de consolidá-las onde já existem.<br />

Continuo pensando que a única maneira de lutar contra as desigualdades “raciais”é: 1)<br />

abolir o conceito de “raça”do discurso das Nações Unidas e dos Estados nacionais e 2)<br />

lutar contra o racismo. Não há mais bruxos (quase) na Europa porque não se acredita<br />

mais neles. E é assim porque, a partir do século 17, em vez de lutar contra os bruxos,<br />

queimando-os, o alvo dos ataques se voltou para a bruxaria, ou seja, a crença em bruxos.<br />

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Todo esforço do sistema educacional deveria estar voltado para a desconstrução do conceito<br />

nocivo de raça, e nunca para a sua perpetuação.A racialização das políticas públicas<br />

poderá consolidar (e até exacerbar) a racialização já existente na sociedade, dessa<br />

forma aguçando o racismo e a desigualdade entre pessoas de aparências distintas arbitrariamente<br />

divididas em “negros”e, por suposto,“brancos”.<br />

Peter Fry<br />

Professor Titular de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)<br />

No Brasil, o fato de tanto o governo central como os governos estatais serem<br />

liderados por um determinado grupo faz com que sejam imprescindíveis as políticas<br />

para assegurar a participação de outros grupos sub-representados. Existem<br />

controvérsias sobre como proceder, como assinala Peter Fry na sua contribuição<br />

especial. Mas duas grandes categorias de arranjos democráticos podem ser levadas<br />

em conta para que todos os grupos possam partilhar o poder em processos políticos<br />

e instituições estatais e se sintam integrados. A primeira envolve a partilha<br />

territorial do poder através do federalismo assimétrico,entendido como a cessão de<br />

diferentes competências aos estados da Federação, reconhecendo diferenças específicas<br />

nas suas estruturas políticas, administrativas e econômicas. Isso permite<br />

maior flexibilidade para responder a exigências diferentes e para conciliar a diversidade.<br />

Essas medidas especiais permitem que as diferenças do grupo territorialmente<br />

concentrado coexistam politicamente com a autoridade central. Esse é o<br />

caso da descentralização de certas políticas feitas na Espanha para conciliar a identidade<br />

nacional e as identidades separatistas (ver quadro 4).<br />

Quadro 4 • Espanha criou comunidades autônomas<br />

A Espanha é dividida em 17 regiões administrativas denominadas “comunidades autônomas”.Todas<br />

elas têm um “Estatuto de Autonomia”,norma suprema para essas comunidades,<br />

que estabelece as competências que o Estado Central transfere para essa “comunidade<br />

autônoma”. Cada comunidade pode assumir essas competências ou reger-se pelas políticas<br />

estatais.<br />

Existem três regiões especiais (País Basco,Catalunha e Galícia),cuja transferência de competências<br />

é superior ao resto. Os motivos são as diferenças históricas, culturais e lingüísticas,<br />

em relação ao resto de regiões. Estas medidas foram implementadas após a Constituição<br />

de 1978 para conciliar estas três identidades particulares com a identidade nacional.<br />

Elas concedem a estas comunidades uma ampla e muito variável gama de poderes<br />

autônomos em áreas como a cultura, educação, língua e economia. O que significa uma<br />

diferença com respeito às outras 14 regiões administrativas em relação a autonomia e autogoverno.<br />

Essas intervenções ajudaram a promover nestas regiões a identidade própria e<br />

a conciliá-las, na medida do possível, com a identidade nacional.

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