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O viés racista na<br />
atuação das forças de<br />
repressão, além de por si<br />
mesmo ser ilegal, tende<br />
a produzir efeitos<br />
nas etapas seguintes<br />
do sistema de justiça<br />
criminal brasileiro<br />
R ELATÓRIO DE D ESENVOLVIMENTO H UMANO - BRASIL 2005<br />
O peso desproporcionalmente alto dos negros entre as vítimas mortas nas<br />
ações policiais constitui claro indício da existência de viés racista nos aparelhos de<br />
repressão. Pode-se argumentar, porém, que esse grupo é alvo mais freqüente da<br />
ação policial não em razão do fenótipo, mas porque pretos e pardos estão, em sua<br />
maioria, entre a população de baixa renda e, por isso, estariam mais envolvidos em<br />
crimes violentos. O estudo coordenado por Ignácio Cano sugere que essa hipótese<br />
não se sustenta. A pesquisa indicou que, no Rio de Janeiro, a proporção de negros<br />
mortos pela polícia era maior que a de brancos tanto dentro quanto fora das favelas.<br />
A análise dos dados confirmou que a diferença na chance de sobrevivência<br />
entre pessoas de fenótipo diferente é estatisticamente significativa e não depende<br />
do local em que ocorrem os confrontos com a polícia. A probabilidade de negros<br />
morrerem em confrontos com a polícia é muito maior nas favelas, que são os locais<br />
em que o número de mortos pela polícia é maior, mas a diferença entre brancos e<br />
negros continua desproporcional quando consideradas outras áreas urbanas.<br />
PUNIÇÃO E RACISMO<br />
O viés racista na atuação das forças de repressão, além de por si mesmo ser ilegal,<br />
tende a produzir efeitos nas etapas seguintes do sistema de justiça criminal brasileiro:<br />
nas denúncias do Ministério Público, nas sentenças judiciais e na aplicação das penas<br />
(ver quadro 3).<br />
Mas, se há evidências de discriminação fenotípica por parte da polícia, como<br />
isso se dá nas outras esferas da justiça criminal? A característica mais marcante,<br />
nesses casos, é a ausência de dados – um silêncio que, aliás, diz muito, uma vez que<br />
o racismo dissimulado se expressa também no desinteresse em documentar fatos<br />
Quadro 3 • Estrutura do sistema de justiça criminal<br />
No Brasil,o policiamento preventivo e repressivo compete à Polícia Militar.As tarefas de investigação<br />
da materialidade do delito e identificação da possível autoria dizem respeito à<br />
Polícia Civil. Essas duas instituições estão ligadas aos governos estaduais.<br />
Todo registro policial deveria,em princípio,resultar em abertura de inquérito policial.Uma<br />
vez aberto e concluído, o inquérito policial é encaminhado à Justiça e distribuído ao juiz.<br />
Este, por sua vez, o remete ao Ministério Público – órgão independente em relação ao<br />
Executivo e ao Judiciário. Nessa fase, o inquérito é apreciado pelo promotor público, que<br />
poderá solicitar novas investigações policiais, arquivar o caso por insuficiência de provas<br />
ou apresentar denúncia.Caso a denúncia seja aceita pelo juiz,instaura-se o processo para<br />
apuração de responsabilidade penal.Nessa etapa,o indiciado no inquérito policial se transforma<br />
em réu perante a Justiça.<br />
Salvo os casos de homicídios dolosos, o processo de apuração da responsabilidade penal<br />
segue, em linhas gerais, essa trajetória. Quanto aos crimes no âmbito da União, eles são<br />
investigados pela Polícia Federal,subordinada ao Ministério da Justiça,e estão sob a jurisdição<br />
dos tribunais federais.<br />
O princípio da<br />
igualdade de todos<br />
perante as leis é<br />
prejudicado porque<br />
o fenótipo é um<br />
importante fator de<br />
discriminação na<br />
distribuição da justiça<br />
Tabela 3 • Tempo médio de condenação por cor/raça dos réus (em meses)<br />
Crime por<br />
cor/raça do<br />
condenado<br />
Total de<br />
casos<br />
93<br />
e mensurar graves violações de direitos. Os poucos estudos disponíveis não são<br />
consensuais quanto à presença de motivações dessa natureza no desenrolar dos<br />
processos penais.<br />
O sociólogo Sérgio Adorno pesquisou crimes violentos julgados na cidade de<br />
São Paulo nos anos 1990. A análise acompanhou os boletins de ocorrência, desde o<br />
registro do crime até a decisão judicial de primeira instância. Enfocando o roubo<br />
qualificado – o de maior participação entre os crimes violentos observados –, os<br />
principais resultados da pesquisa indicaram que brancos e negros cometem esse tipo<br />
de crime em idênticas proporções. No entanto, réus negros tendem a ser mais perseguidos<br />
pela vigilância policial, enfrentam maiores obstáculos de acesso à justiça<br />
criminal e revelam maiores dificuldades de usufruir o direito de ampla defesa. Em<br />
decorrência, tendem a receber tratamento penal mais rigoroso: a probabilidade de<br />
condenação era 9% superior para pretos e pardos, em comparação com os brancos.<br />
O autor concluiu que a cor/raça é um importante fator de discriminação na distribuição<br />
da justiça e que, portanto, o princípio da igualdade de todos perante as leis<br />
fica comprometido com o funcionamento distorcido do sistema de justiça criminal.<br />
Outra pesquisa coordenada por Ignácio Cano, ainda em andamento, apreciou<br />
2.337 condenações judiciais para homicídio, roubo e tráfico de drogas proferidas<br />
no Estado do Rio de Janeiro (1.282) e no município de São Paulo (1.055) desde 1995,<br />
catalogadas nas varas de execuções criminais das capitais. O objetivo foi verificar<br />
1ª instância 2ª instância<br />
Período médio<br />
de prisão<br />
Total de<br />
casos<br />
Período médio<br />
de prisão<br />
Sentença<br />
transitada em julgado<br />
Total de<br />
casos<br />
Período médio<br />
de prisão<br />
Sentença sem<br />
trânsito em julgado<br />
Total de<br />
casos<br />
Período médio<br />
de prisão<br />
Roubo<br />
Branca 497 75,5 220 81,1 376 72,3 500 73,9<br />
Parda 423 70,0 198 74,1 329 66,8 427 68,5<br />
Preta 211 68,5 97 73,7 175 65,6 211 66,1<br />
Total 1131 72,1 515 77,0 880 68,9 1138 70,4<br />
Homicídio<br />
Branca 59 114,4 27 118,9 50 108,1 59 113,8<br />
Parda 29 122,8 21 114,6 29 114,1 30 118,3<br />
Preta 11 88,4 6 112,7 12 82,3 12 82,3<br />
Total 99 113,9 54 116,5 91 106,6 101 111,4<br />
Tráfico de drogas<br />
Branca 362 33,6 149 40,8 299 30,1 368 32,0<br />
Parda 341 34,1 152 41,6 300 32,3 345 32,9<br />
Preta 199 37,4 99 40,9 183 33,9 204 34,6<br />
Total 902 34,6 400 41,2 782 31,8 917 32,9<br />
Fonte: Ignácio Cano (UERJ) e Elisabeth Meireles (UERJ),“Análise de Viés Racial nas Sentenças Penais”, 2004 (Mimeo).