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Liberdade de existir - Visão Judaica

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22<br />

VISÃO JUDAICA • Março <strong>de</strong> 2004 • Adar/Nissan • 5764<br />

Jerusalém me<br />

tocou muito <strong>de</strong> perto<br />

Relato tocante <strong>de</strong> uma jornalista no cenário <strong>de</strong> um atentado a bomba<br />

Jana Beris*<br />

Subitamente, um pouco antes das 9 da manhã,<br />

uma potente explosão me fez pular. Vireime<br />

e vi a bola <strong>de</strong> fogo envolvendo o ônibus. Nunca<br />

havia visto o horror <strong>de</strong> forma tão imediata e tão<br />

<strong>de</strong> perto. Nunca havia coberto um dos muitos<br />

atentados em Jerusalém, tendo ouvido antes a<br />

explosão, visto a bola <strong>de</strong> fogo que envolveu o<br />

ônibus. Nunca havia buscado a notícia enquanto<br />

meu corpo tremia todo.<br />

Sempre chegava aos locais dos atentados<br />

quando os feridos mais graves já haviam sido levados<br />

para as ambulâncias, quando as partes dos<br />

corpos <strong>de</strong>stroçados já haviam sido cobertas por<br />

mantas ou sacos plásticos negros com os quais<br />

seriam levados ao Instituto Forense Abu Kabir.<br />

Mas, <strong>de</strong>sta vez me tocou <strong>de</strong> perto, <strong>de</strong>masiado<br />

perto, e mais, se o ônibus que se converteu em<br />

cenário <strong>de</strong> imagens dantescas tivesse avançado<br />

mais uns 20 metros pela rua Aza <strong>de</strong> Jerusalém, a<br />

explosão ocorreria ao meu lado. Provavelmente esta<br />

notícia teria sido escrita por outro jornalista.<br />

O dia amanhecera ensolarado, embora um tanto<br />

frio. A notícia do dia era a troca <strong>de</strong> prisioneiros,<br />

e pela manhã só teria que seguir as informações<br />

da Alemanha. Tinha <strong>de</strong>ixado as crianças na<br />

escola e me encontraria com meu marido no Café<br />

Moment, para o <strong>de</strong>sjejum. Fizemos isto muitas<br />

vezes, mesmo sabendo que há dois anos havia<br />

sido cenário <strong>de</strong> um atentado, <strong>de</strong>ixando quase uma<br />

<strong>de</strong>zena <strong>de</strong> civis mortos.<br />

Desta vez eu estava ali. Depois da explosão,<br />

o silêncio sepulcral. Corri para o ônibus para tratar<br />

<strong>de</strong> ajudar. Vi o <strong>de</strong>sespero e o horror nos olhos<br />

dos sobreviventes, que não compreendiam que raio<br />

os atingira. Afastei os restos da porta e subi. Jamais<br />

esquecerei este momento, a primeira vez que<br />

entrava em um ônibus <strong>de</strong>stroçado pela explosão.<br />

Jamais me esquecerei <strong>de</strong>ste momento porque é impossível<br />

esquecer a entrada no inferno.<br />

Em um assento vi algo que era difícil <strong>de</strong>finir.<br />

Restos <strong>de</strong> um corpo que supus ser o do suicida<br />

porque era difícil i<strong>de</strong>ntificar qualquer parte do<br />

mesmo. Afastei metais retorcidos do teto e laterais<br />

para chegar a alguns dos feridos. Na parte <strong>de</strong><br />

trás vi restos <strong>de</strong> carne nua ensangüentada. Três<br />

adultos miravam o vazio, como que congelados<br />

em seus lugares, sem po<strong>de</strong>r se mover. Neste momento<br />

compreendi o que significa a expressão<br />

que mais <strong>de</strong> uma vez utilizei em minhas próprias<br />

matérias 'estado <strong>de</strong> choque', falando sobre esta<br />

horda <strong>de</strong> feridos, sem lesões físicas, que chegam<br />

aos hospitais porque precisam <strong>de</strong> ajuda mesmo<br />

estando inteiros. Foram quatro pessoas que conseguimos<br />

tirar do ônibus, entre elas, uma mulher<br />

repleta <strong>de</strong> sangue. Minha blusa branca ficou empapada<br />

e cheirando a queimado.<br />

Alguns gritavam e outros não entendiam nada.<br />

Uma mulher com o rosto ferido estava presa entre<br />

a carroceria queimada e um corpo que caíra sobre<br />

ela. Tive que reunir toda minha força para levantar<br />

<strong>de</strong> seu assento um senhor com sangue na face<br />

e que não entendia o que havia acontecido. Olhava<br />

para mim como que pedindo ajuda, e dizendo,<br />

ao mesmo tempo, que não podia se mover, não<br />

podia fazer nada.<br />

Pensei em sair, pois po<strong>de</strong>ria haver uma segunda<br />

explosão e não podia ajudar muito já que<br />

não era profissional da área da saú<strong>de</strong>. Mas havia<br />

pessoas vivas e os equipamentos dos para-médicos<br />

não haviam chegado, assim eu continuava<br />

<strong>de</strong>ntro do ônibus.<br />

Um senhor quando tratei <strong>de</strong> tirá-lo <strong>de</strong> lá dizia:<br />

'Minha bolsa! Minha bolsa!' Respondi: 'Não<br />

importa senhor, o principal é que saia daqui!',<br />

sabendo que não se acharia nada inteiro naquele<br />

cenário dantesco. Depois fiquei aborrecida por não<br />

ter feito o que ele pedira. Quem sabe trazia na<br />

carteira as fotos dos netos, como eu trago as dos<br />

meus filhos.<br />

Um homem corpulento, <strong>de</strong> jaqueta azul, pareceu<br />

notar minha expressão <strong>de</strong> horror e me ofereceu<br />

água. Tomei um pouco e olhei ao redor. Espalhados<br />

pela rua, ao redor <strong>de</strong> vários metros, havia<br />

feridos <strong>de</strong> todos os tipos. 'Veja o pulso <strong>de</strong>ste, não<br />

tenho certeza <strong>de</strong> que esteja vivo', me disse o primeiro<br />

para-médico que chegou. O jovem <strong>de</strong> camisa<br />

cinza e calça jeans parecia inerte. Ao meu lado<br />

outro jovem conseguiu dizer seu nome, Erez, tinha<br />

os olhos fechados e seu cabelo curto estava como<br />

que grudado artificialmente ao corpo, <strong>de</strong>vido ao<br />

fogo que o atingira. Sangrava <strong>de</strong> uma perna, mas<br />

parecia bastante inteiro. Acariciei sua cabeça e tratei<br />

<strong>de</strong> cuidar para que não per<strong>de</strong>sse a consciência.<br />

Ao meu lado alguém disse: ‘vou aten<strong>de</strong>r a um outro<br />

mais grave, fique com este, não o perca!’<br />

Assim fiz, até a chegada das ambulâncias e da<br />

polícia, cujo chefe tratava <strong>de</strong> organizar o trabalho<br />

por meio um megafone. Alguém isolara o local,<br />

<strong>de</strong>marcando o espaço do cenário da explosão,<br />

que como sempre nos atentados anteriores<br />

os jornalistas tentavam penetrar discutindo com<br />

os policiais. Mas, <strong>de</strong>sta vez, eu estava do outro<br />

lado da faixa, com a roupa manchada <strong>de</strong> sangue e<br />

o corpo tremendo.<br />

Um pouco <strong>de</strong>pois, encontrei meu marido e começamos<br />

a maratona para tentar avisar a todos<br />

que sabiam que estaríamos no local. Meu marido<br />

ligou para minha filha mais velha e disse acalmando-a:<br />

'Mamãe e eu estamos bem'. Claro que,<br />

naquele momento, 'estamos bem' era apenas uma<br />

força <strong>de</strong> expressão.<br />

* Jana Beris é jornalista em Jerusalém, trabalha<br />

no programa BBC Mundo.<br />

Texto traduzido pela B‘nai B´rith da Venezuela<br />

Nas sendas do judaísmo<br />

Vittorio Corinaldi *<br />

É este o título <strong>de</strong> um livro <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Walter Rehfeld, recém-lançado<br />

pela Editora Perspectiva em São Paulo.<br />

Walter Rehfeld, falecido há pouco mais <strong>de</strong> 10 anos, foi uma figura excepcional<br />

no panorama do pensamento judaico brasileiro. E por ter eu me<br />

contado em juventu<strong>de</strong> entre aqueles que tiveram a ventura <strong>de</strong> o conhecer e<br />

<strong>de</strong> se aproximar <strong>de</strong> seu ensinamento e <strong>de</strong> sua amiza<strong>de</strong>, não quero <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

assinalar o acontecimento que é a publicação <strong>de</strong>sse livro – talvez o primeiro<br />

tardío reconhecimento do valor <strong>de</strong> Rehfeld por uma comunida<strong>de</strong> que,<br />

espelhando uma tendência generalizada da socieda<strong>de</strong> circunstante, não se<br />

distingue por uma produção espiritual das mais insignes.<br />

O livro é uma coletênea <strong>de</strong> escritos <strong>de</strong> épocas diversas, abrangendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

ensaios filosóficos produzidos para fins <strong>de</strong> suas aulas na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São<br />

Paulo ou para seminários e congressos acadêmicos, até pequenos comentários<br />

sobre a vida e os costumes judaicos, bem como consi<strong>de</strong>rações sobre os<br />

<strong>de</strong>stinos do judaísmo <strong>de</strong> hoje e a posição <strong>de</strong> Israel com relação a eles.<br />

A leitura <strong>de</strong>sses escritos veio para mim confirmar a característica <strong>de</strong> Walter<br />

Rehfeld, como a recordo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aqueles anos já longínquos que prece<strong>de</strong>ram<br />

minha Aliá: um profundo e verda<strong>de</strong>iro pensador e orientador nas sendas<br />

do judaismo – bem no espírito do nome do livro.<br />

Numa época em que o título <strong>de</strong> Rabino é associado a tantos indivíduos<br />

que fazem uso obsceno e falso da autorida<strong>de</strong> que ele conce<strong>de</strong> (tanto pela<br />

aplicação estéril e mecânica <strong>de</strong> normas religiosas mal interpretadas à luz<br />

<strong>de</strong> um obsoleto dogmatismo ortodoxo, quanto pela exortação a um ruidoso<br />

comportamento político extremista, agressivo e intolerante.), a personalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Walter Rehfeld ganha uma dimensão especial: emanava <strong>de</strong>le um<br />

sentido <strong>de</strong> fé, uma crença genuína numa essência divina que nada mais<br />

<strong>de</strong>veria ser senão a expressão da capacida<strong>de</strong> do homem <strong>de</strong> distinguir e<br />

escolher entre o Bem e o Mal; e uma convicção na vocação judaica nesse<br />

sentido: vocação que para ele se baseava em conhecimento filosófico, em<br />

<strong>de</strong>safio atualizado das “verda<strong>de</strong>s” históricas, em assimilação racional <strong>de</strong><br />

postulados éticos contidos em costumes e tradições.<br />

E ninguém melhor do que ele personalizava a verda<strong>de</strong>ira figura do “Rav”,<br />

embora sua vida e seu ambiente cotidiano fossem <strong>de</strong> caráter absolutamente leigo<br />

e aberto. Colaboravam para esta imagem também uma bondosa consi<strong>de</strong>ração<br />

pelo próximo, uma atitu<strong>de</strong> calma, paciente e compreensiva pelas opiniões alheias,<br />

uma <strong>de</strong>dicação silenciosa à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicação e convencimento.<br />

A pessoa <strong>de</strong> Walter Rehfeld e sua opinião e conselho certamente fazem<br />

falta na angustiante situação do judaismo <strong>de</strong> hoje: situação em que <strong>de</strong> um<br />

lado Israel, <strong>de</strong>positário principal da mo<strong>de</strong>rna criação judaica, encontra-se<br />

numa perigosa encruzilhada para sua sobrevivência física e moral, em que<br />

convergem insegurança, instabilida<strong>de</strong> econômica, <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, opressão<br />

(mesmo que imposta) <strong>de</strong> populações alheias às força <strong>de</strong> interesse atuantes<br />

no conflito; e não menos, o endurecimanto da essencial qualida<strong>de</strong> ética<br />

que caracterizou o nascimento da nação. E <strong>de</strong> outro lado o judaismo da Golá,<br />

<strong>de</strong>sorientado ainda pela perda <strong>de</strong> suas fontes vitais com o extermínio europeu,<br />

e incapaz <strong>de</strong> encontrar novas nascentes em meio à atual cultura do<br />

consumismo e da supremacia do “mercado” sobre os valores do espírito.<br />

E é neste sentido que a iniciativa da Editora Perspectiva, com a publicação<br />

do volume <strong>de</strong> Walter Rehfeld, vem constituir um passo louvavel na<br />

trajetória já <strong>de</strong> há muito iniciada, <strong>de</strong> fomentar a renovação <strong>de</strong> um pensamento<br />

judaico brasileiro, opondo-se à citada tendência <strong>de</strong> dissolução cultural<br />

que caracteriza muito da ação comunitaria local.<br />

* Vittorio Corinaldi é arquiteto e mora em Tel Aviv, Israel.

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