Liberdade de existir - Visão Judaica
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Ariel Bar Tzadok*<br />
udo bem, eu vi o novo<br />
filme <strong>de</strong> Mel Gibson,<br />
“A Paixão <strong>de</strong> Cristo”.<br />
Como sempre o sr. Gibson<br />
fez um bom filme,<br />
tão realístico e ambíguo<br />
como “E o Vento Levou...” ou “Guerra<br />
nas Estrelas” (Star Wars). Para mim, a<br />
“Paixão <strong>de</strong> Cristo” é exatamente como<br />
qualquer outro filme <strong>de</strong> ficção que eu<br />
sempre vi. É uma estória, não é real,<br />
não é história, e não é assim que foi.<br />
Há muito para dizer sobre as imprecisões<br />
históricas do filme, e apesar<br />
<strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>clarações públicas<br />
em contrário, a “Paixão <strong>de</strong> Cristo” contém<br />
<strong>de</strong>finitivamente sutis elementos<br />
anti-semitas. Deixem-me documentálos<br />
alguns <strong>de</strong>les aqui.<br />
O sr. Gibson retrata a visão <strong>de</strong>le<br />
dos sacerdotes saduceus do Templo, rabinos,<br />
e muitos dos outros ju<strong>de</strong>us do<br />
dia em que Jesus foi con<strong>de</strong>nado, escarnecido,<br />
zombado e agredido, como<br />
usando peyot enrolados (cachos laterais<br />
<strong>de</strong> cabelo), <strong>de</strong> acordo com o mesmo<br />
estilo usado hoje pelos ju<strong>de</strong>us ortodoxos<br />
da tradição hassídica da Europa<br />
Oriental.<br />
Os sacerdotes e rabinos também<br />
aparecem usando algum tipo <strong>de</strong> manto<br />
ou xale com longas faixas pretas,<br />
semelhante em aparência à versão do<br />
leste europeu para o Talit (manto <strong>de</strong><br />
oração, usado pelos ju<strong>de</strong>us religiosos<br />
durante preces matinais).<br />
É um fato claro e <strong>de</strong> indiscutível<br />
realida<strong>de</strong> que os cachos laterais e mantos<br />
<strong>de</strong> oração <strong>de</strong> <strong>de</strong>sign europeu oriental<br />
eram totalmente <strong>de</strong>sconhecidos nos<br />
dias <strong>de</strong> Jesus.<br />
O sr. Gibson usa nitidamente formas<br />
mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> judaica<br />
para ter certeza que suas audiências<br />
irão reconhecer o relacionamento entre<br />
os ju<strong>de</strong>us atuais e aqueles a quem<br />
cristãos acreditam ser os responsáveis<br />
pelo assassinato <strong>de</strong> seu senhor. (ref.<br />
CB 1 Thes. 2:15).<br />
Os ju<strong>de</strong>us na multidão são mostrados<br />
zombando <strong>de</strong> Jesus e o espancando<br />
sem motivo. O comportamento <strong>de</strong>les<br />
certamente <strong>de</strong>sperta ressentimento<br />
e enfurece a qualquer um que esteja<br />
assistindo. Vestindo os ju<strong>de</strong>us antigos<br />
para os fazer parecer tão sutilmente<br />
como ju<strong>de</strong>us atuais, o sr. Gibson<br />
está tendo certeza que sua audiência<br />
não terá nenhum problema<br />
para transferir sua raiva e ressentimento<br />
sobre os ju<strong>de</strong>us <strong>de</strong> hoje. Só por esta<br />
terrível encenação, nada do sr. Gibson<br />
envergonhar-se <strong>de</strong>le próprio!<br />
Quando eu um rabino ortodoxo, vi<br />
a Paixão, vi com uma luz diferente da<br />
média cristã. Veja você, a morte e ressurreição<br />
<strong>de</strong> Cristo não é parte da minha<br />
estrutura <strong>de</strong> convicção, assim<br />
como não é uma imagem entalhada<br />
na minha psique. Eu não tenho vínculo<br />
emocional com as concepções<br />
que po<strong>de</strong>m ser provocados pelo filme<br />
do sr. Gibson. Isso não significa, porém,<br />
que o filme não vá <strong>de</strong>spertar sentimentos<br />
dos espectadores nãocristãos.<br />
Enquanto eu reconheço que<br />
o filme é só ficção, até mesmo narrações<br />
ficcionais evocam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós<br />
profunda emoção.<br />
Quando eu vejo a natureza do sofrimento<br />
<strong>de</strong> Jesus, eu penso nos incontáveis<br />
ju<strong>de</strong>us que realmente sofreram<br />
da mesma maneira como Jesus foi<br />
retratado no filme.<br />
Quando eu, como um ju<strong>de</strong>u, vejo a<br />
maneira como Jesus foi golpeado e sua<br />
mãe chorando por causa do sofrimento<br />
do filho <strong>de</strong>la, eu não me i<strong>de</strong>ntifico<br />
com o que é consi<strong>de</strong>rado por muitos<br />
não-cristãos, ser uma narrativa fictícia<br />
registrada nos Evangelhos. De certa forma,<br />
eu me i<strong>de</strong>ntifico com algo muito<br />
mais próximo e familiar. Eu sinto a dor<br />
das muitas mães judias ao longo <strong>de</strong> dois<br />
mil anos <strong>de</strong> perseguição cristã que choraram<br />
inconsoláveis pelos sofrimentos<br />
e perda dos seus filhos.<br />
Eu me i<strong>de</strong>ntifico com as mães judias<br />
que choraram por seus filhos<br />
enquanto sofrendo dos nazistas alemães,<br />
cossacos russos, inquisidores<br />
espanhóis e todos os tipos <strong>de</strong> cruzados<br />
europeus. Todos aqueles perseguidores<br />
dos ju<strong>de</strong>us tinham uma<br />
coisa em comum, eles eram todos<br />
cristãos, e eles todos tiveram <strong>de</strong><br />
uma só vez, ou outra, visto uma<br />
“paixão representada” alguma vez,<br />
semelhante à do filme do sr. Gibson,<br />
que os motivou, aos olhos <strong>de</strong>les,<br />
tomar a vingança <strong>de</strong> Cristo contra<br />
aqueles que o mataram.<br />
Chegará um tempo quando, por um<br />
bem maior, teremos que colocar os fatos<br />
<strong>de</strong> lado ao invés <strong>de</strong> enfocar assuntos<br />
<strong>de</strong> fé. O filme do sr. Gibson tem o<br />
potencial para fazer retroce<strong>de</strong>r as boas<br />
e duradouras relações judaico-cristãs.<br />
Partindo do fato que ele pertence a<br />
um ramo dissi<strong>de</strong>nte do culto católico,<br />
que não reconhece a autorida<strong>de</strong> do<br />
Papa ou o Vaticano, é bem provável<br />
que, no fundo, a intenção dissimulada<br />
do sr. Gibson é causar uma ruptura<br />
nessas boas relações.<br />
Também é concebível que o filme<br />
“Paixão” possa servir para prejudicar<br />
seriamente o apoio dado a Israel pelos<br />
cristãos sionistas da América. A<br />
esse respeito, o sr. Gibson po<strong>de</strong> ser<br />
visto como trabalhando para apoiar o<br />
enfraquecimento do Estado <strong>de</strong> Israel.<br />
Isto, em contrapartida, só fortaleceria<br />
os inimigos dos Estados Unidos.<br />
Assim, num certo círculo, o filme do<br />
sr. Gibson no final das contas po<strong>de</strong>ria<br />
servir para fortalecer os inimigos <strong>de</strong> paz.<br />
Isto é o que eu sinto, e é muito<br />
importante agora que nós focalizemos<br />
assuntos <strong>de</strong> camaradagem no lugar <strong>de</strong><br />
temas <strong>de</strong> conflito. Como povos <strong>de</strong> fé,<br />
nós os ju<strong>de</strong>us e cristãos temos mais<br />
em comum fundado em nossa fé do que<br />
temos a nos separar baseado em nossas<br />
visões divergentes <strong>de</strong> fatos históricos,<br />
teologia e doutrina.<br />
Como cristãos e ju<strong>de</strong>us nós ambos<br />
acreditamos no código bíblico da moralida<strong>de</strong>.<br />
Nós ambos queremos viver numa<br />
socieda<strong>de</strong> construída e prosperando sobre<br />
princípios básicos como os esboçados<br />
nos Dez Mandamentos. Os cristãos<br />
adotaram nossa Bíblia judaica e a colocaram<br />
ao lado <strong>de</strong> sua própria. Embora<br />
chamem a nossa <strong>de</strong> “velha” e a sua <strong>de</strong><br />
“nova” os cristãos ainda reconhecem o<br />
valor e a importância da aliança que<br />
D-s fez conosco, o povo ju<strong>de</strong>u.<br />
Infelizmente existem aqueles<br />
cristãos in<strong>de</strong>corosos que reivindicam<br />
que eles se transformaram no novo<br />
Israel e aquele povo escolhido <strong>de</strong><br />
D-s, o velho Israel, os ju<strong>de</strong>us, são<br />
agora nada mais que uma nação rejeitada<br />
e odiada por D-s, e <strong>de</strong>ssa forma<br />
merecedora do ódio e do <strong>de</strong>sprezo<br />
do novo Israel, a Igreja.<br />
É este tipo <strong>de</strong> teologia <strong>de</strong> substituição<br />
e da danação no fogo <strong>de</strong> inferno,<br />
sustentada por tais pessoas como<br />
o sr. Gibson que abastece as fogueiras<br />
do anti-semitismo e do ódio por todo<br />
o mundo. Isso não po<strong>de</strong> ser tolerado.<br />
Cristãos sinceros e tementes a D-s ao<br />
redor do mundo <strong>de</strong>vem unir-se aos ju<strong>de</strong>us,<br />
opondo-se a esta aberração da<br />
religião e buscando mútuo respeito<br />
ainda que sejam gran<strong>de</strong>s as nossas diferenças<br />
(ref. CB Rev. 12:17).<br />
Fé <strong>de</strong> qualquer tipo é uma questão<br />
do coração. Po<strong>de</strong> motivar uma pessoa<br />
a galgar o mais elevado ponto<br />
das alturas espirituais ou da mesma<br />
forma motivar alguém para <strong>de</strong>struir o<br />
mundo e todos os incrédulos nele. Nós<br />
vemos hoje um crescimento muçulmano<br />
mundial mais e mais fundamentalista<br />
que procura empreen<strong>de</strong>r uma<br />
guerra contra os incrédulos da socieda<strong>de</strong><br />
oci<strong>de</strong>ntal, especificamente, o<br />
mundo cristão.<br />
Nós aqui no<br />
oci<strong>de</strong>nte observamos<br />
o crescimento<br />
do Islã radical<br />
como um<br />
mal que <strong>de</strong>ve ser<br />
erradicado. Toda-<br />
VISÃO JUDAICA • Março <strong>de</strong> 2004 • Adar/Nissan • 5764<br />
Um rabino ortodoxo<br />
respon<strong>de</strong> ao filme <strong>de</strong> Gibson<br />
via, não se vê a ironia nisso tudo. Veja<br />
você, o Islã não é a primeira religião<br />
do mundo a ficar intolerante com os<br />
outros e cobiçosa <strong>de</strong> conquistar o<br />
mundo. A igreja cristã sempre manteve<br />
semelhantemente doutrinas radicais<br />
com <strong>de</strong>sígnios similares para evangelizar<br />
e converter o mundo inteiro ao<br />
cristianismo. Mil anos atrás, durante<br />
as Cruzadas eram terroristas cristãos<br />
que iam invadindo e atacando centros<br />
muçulmanos, da mesma maneira que<br />
muçulmanos estão fazendo hoje.<br />
Da mesma maneira que, note bem,<br />
os muçulmanos hoje atacam os ju<strong>de</strong>us<br />
como intermediários para atacar o Oeste,<br />
assim como os cristãos assassinaram<br />
povoações inteiras <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us no<br />
seu caminho ao Oriente Médio para<br />
guerrear os muçulmanos. Parece que<br />
nós os ju<strong>de</strong>us sempre estamos no meio,<br />
sempre o sofrimento dos inocentes servidores<br />
<strong>de</strong> D-s (ref. Isaías 53).<br />
Eu ouvi muitos comentaristas sobre<br />
a “Paixão <strong>de</strong> Cristo” <strong>de</strong>clarar que<br />
o que é preciso é um filme sobre a vida<br />
<strong>de</strong> Jesus, não sua morte. Aqueles cristãos<br />
sinceros e tementes a D-s querem<br />
difundir os ensinamentos <strong>de</strong> Jesus<br />
sobre amor e vida. A esse respeito<br />
eles po<strong>de</strong>riam encontrar alguns aliados<br />
dispostos no mundo ju<strong>de</strong>u. A maioria<br />
dos discursos <strong>de</strong> Jesus como registrado<br />
<strong>de</strong> fato nos Evangelhos expressam<br />
ensinamentos <strong>de</strong> tradições rabínicas da<br />
época. Se os cristãos só conheceram a<br />
fonte judaica para muitas das suas crenças<br />
sagradas, eu acredito que isto cicatrizaria<br />
o longo caminho do conflito<br />
que tem dois milênios e que não<br />
foi nada diferente <strong>de</strong> uma<br />
profanação do Nome <strong>de</strong> D-s.<br />
Um último ponto,<br />
especialmente para<br />
meus leitores cristãos.<br />
Se a história <strong>de</strong> Jesus<br />
como retratada nos<br />
Evangelhos fosse fato<br />
atual, e Jesus fosse um<br />
ju<strong>de</strong>u íntegro perseguido<br />
por malvados sacerdotes<br />
saduceus e os seus senhores<br />
romanos, eu próprio teria saído<br />
em sua <strong>de</strong>fesa, e até carregado<br />
sua cruz. Mais ainda, muitos dos ju<strong>de</strong>us<br />
religiosos que eu conheço teriam<br />
feito o mesmo. Nós ju<strong>de</strong>us não<br />
somos os assassinos <strong>de</strong> Cristo; nós<br />
somos as vítimas daqueles que nos<br />
acusaram <strong>de</strong> tal.<br />
* O rabino Ariel Bar<br />
Tzadok, da Yeshivat<br />
Benei N’vi’im escreveu<br />
este artigo, em inglês,<br />
no site<br />
KosherTorah.com<br />
Contatos:<br />
rabbi@koshertorah.com<br />
9<br />
B”H