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cronistas leigos, cronistas religiosos ea antropafagia

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Universidade Federal do Paraná<br />

Marcus Vinicius Strapasson<br />

CRONISTAS LEIGOS, CRONISTAS RELIGIOSOS E A ANTROPAFAGIA NA<br />

AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI<br />

Curitiba, 02 de julho de 2006


Universidade Federal do Paraná<br />

Marcus Vinicius Strapasson<br />

CRONISTAS LEIGOS, CRONISTAS RELIGIOSOS E A ANTROPAFAGIA NA<br />

AMÉRICA PORTUGUESA DO SÉCULO XVI<br />

Monografia apresentada na disciplina<br />

Estágio Supervisionado em Pesquisa<br />

Histórica (HH067), do curso de História<br />

da Universidade Federal do Paraná, sob<br />

a orientação do professor Dr. Carlos<br />

Alberto Medeiros Lima, pelo aluno<br />

Marcus Vinicius Strapasson.


Sumário<br />

Introdução ------------------------------------------------------------------------------------------- 01<br />

Impacto do Contato: Choque Cultural ---------------------------------------------------------- 04<br />

Cronistas Leigos e Cronistas Religiosos: Visões sobre a antropofagia indígena no<br />

decorrer do processo de colonização da América portuguesa no século XVI -------------<br />

Anthony Knivet ------------------------------------------------------------------------------------ 64<br />

Hans Staden ----------------------------------------------------------------------------------------- 85<br />

Pe. José de Anchieta, SJ --------------------------------------------------------------------------- 108<br />

Pe. Manuel da Nóbrega, SJ ----------------------------------------------------------------------- 129<br />

Comparação entre os Cronistas Leigos – Knivet e Staden – e os Cronistas Religiosos –<br />

Anchieta e Nóbrega --------------------------------------------------------------------------------<br />

Considerações Finais ------------------------------------------------------------------------------ 162<br />

Referências Bibliográficas ------------------------------------------------------------------------ 164<br />

25<br />

148


Introdução<br />

Este trabalho é apresentado pelo aluno do curso de graduação de História, da<br />

Universidade Federal do Paraná, Marcus Vinicius Strapasson, na disciplina de Estágio<br />

Supervisionado em Pesquisa Histórica (HH067), sob a orientação do professor Dr. Carlos<br />

Alberto Medeiros Lima. O objetivo deste trabalho consiste na averiguação da existência ou<br />

não de diferença(s) entre os relatos dos <strong>cronistas</strong> do século XVI, tendo como eixo de análise a<br />

descrição da prática antropofágica e ritos circundantes dos indígenas da América portuguesa.<br />

Podemos dividir esses <strong>cronistas</strong>, de uma maneira geral, em dois grupos: <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>.<br />

Essa simples diferenciação entre os <strong>cronistas</strong> demonstra que deve haver alguma diferença<br />

entre seus relatos. Para tal fim, serão utilizados os relatos de quatro <strong>cronistas</strong>, dois <strong>leigos</strong> e<br />

dois <strong>religiosos</strong>. Os relatos dos <strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong> são os dos padres jesuítas (portugueses)<br />

José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, e o dos <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> são os relatos dos viajantes<br />

Hans Staden (alemão) e Anthony Knivet (inglês).<br />

Antes de proceder à análise das fontes escolhidas é necessário vislumbrar o contexto –<br />

mesmo não o levando em conta na hora da análise, pois isso implicaria em outros inúmeros<br />

questionamentos que fugiriam ao objetivo de averiguar a existência de diferença entre esses<br />

relatos – em que esses <strong>cronistas</strong> escreveram suas obras, pois suas descrições sobre a<br />

antropofagia indígena 1 se inserem dentro desse contexto. Dessa forma dividi este trabalho em<br />

três partes. Na primeira parte, intitulada: Impacto do Contato: Choque Cultural. Demonstra-se<br />

que a r<strong>ea</strong>ção inicial dos europeus frente ao impacto da descoberta de novas terras – Novo<br />

Mundo (América) – e que o contato com povos – choque cultural – que eles desconheciam<br />

(nem imaginavam que existiam) se pautou inicialmente no maravilhoso, o qual fez com que<br />

um mundo, junto de seus habitantes, totalmente desconhecido pelos europeus se tornasse um<br />

mundo de semelhanças. Contudo, passado o período da descoberta e estando a conquista já<br />

consolidada, inicia-se o processo de colonização e com o avançar desse, as descrições<br />

bas<strong>ea</strong>das no maravilhoso se tornam inadequadas para representar a nova r<strong>ea</strong>lidade que se<br />

impõem frente aos olhos dos europeus. Com relação ao contato com os habitantes desse Novo<br />

Mundo, temos que os europeus demonstraram uma enorme incompreensão quanto a suas<br />

práticas, a seus costumes (ritos) e ao que eles queriam dizer aos europeus (questão<br />

lingüística), além de não reconhecerem a enorme diferença existente entre as inúmeras etnias<br />

1 A questão de me referir aqui e ao longo do trabalho, a antropofagia utilizando o termo antropofagia indígena<br />

não é redundância, mas a afirmação de que essa prática concerne aos habitantes do continente americano, pois a<br />

antropofagia não se constitui numa prática exclusiva dos povos da América. Temos relatos dessa prática, fora da<br />

América, principalmente na África e na Oc<strong>ea</strong>nia.<br />

1


indígenas que iam contatando nas diversas regiões do continente americano. Ao mesmo,<br />

tempo que os europeus tomavam posse das novas terras, através de cerimônias de posse, eles<br />

concomitantemente subjugavam os nativos. Essas cerimônias eram proferidas em presença<br />

dos nativos, mas, embora aparentemente dirigidas aos indígenas presentes, essas cerimônias,<br />

tinham seu verdadeiro significado frente aos países europeus, pois elas ratificavam a posse<br />

das terras de um país europeu frente a outro país europeu.<br />

A segunda parte é intitulada: Cronistas Leigos e Cronistas Religiosos: Visões sobre a<br />

antropofagia indígena no decorrer do processo de colonização da América portuguesa no<br />

século XVI. Inicia-se com uma diferenciação dos <strong>cronistas</strong>, que mostra ser mais complexa do<br />

que a simples diferenciação entre <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>. Passando-se a um breve vislumbre sobre<br />

a literatura da época, onde os europeus discutiram sobre a humanidade dos indígenas, a qual<br />

só é ratificada e aceita através de uma bula papal, mas mesmo assim, os europeus se viam tão<br />

diferentes dos indígenas, a ponto do índio, assemelhar-se mais aos animais do que ao gênero<br />

humano. O próprio termo, mesmo sendo incorreto, com o qual os europeus designaram todos<br />

os povos da América, serviu a essa lógica, pois, se mesmo que esses povos fossem tão<br />

diferentes entre si, todos eles eram denominados de índios (habitantes das Índias) – o que se<br />

constitui numa sinédoque –, pelos europeus e isso diferenciava os europeus dos índios –<br />

povos da América. Dessa forma, os povos nativos perderam a sua identidade própria em prol<br />

de uma cunhada pelo europeu, o que logicamente distorceu a percepção de seus costumes, de<br />

suas práticas e de seus mitos.<br />

A lógica, a centralidade na cosmologia, a importância e o significado que a prática<br />

antropofágica tinha para as tribos (etnias) indígenas do tronco tupi-guarani foi<br />

incompreendida pelos europeus, pois estes enfrentaram os costumes indígenas a partir dos<br />

costumes e da lógica de sua sociedade (referencial europeu) – como a antropofagia servirá de<br />

eixo para a diferenciação dos <strong>cronistas</strong>, descrevo essa prática pormenorizadamente,<br />

principalmente a antropofagia guerreira, pois também descrevo a antropofagia funerária.<br />

Depois, vê-se que o relacionamento dos portugueses com as tribos indígenas do Brasil, passou<br />

do escambo para a escravidão por causa das contingências do processo de colonização, sendo<br />

que nesse processo, a política da Coroa portuguesa, com relação ao elemento indígena, oscila<br />

e passa a ser o pomo da discórdia entre os colonos, que os queriam escravizar para obter mão-<br />

de-obra fácil e barata para seus empreendimentos, principalmente a incipiente indústria do<br />

açúcar e os padres jesuítas que tinham por missão convertê-los a fé cristã. Passando as<br />

estratégias de ação que os padres jesuítas utilizaram para a catequização dos povos indígenas,<br />

como a questão da aproximação do batismo com a morte, pois dessa forma os padres queriam<br />

2


alterar o vínculo que os índios tinham com a morte, sua simbologia e conseqüências tinham<br />

grande importância para as sociedades indígenas. Os padres também se apropriaram de<br />

elementos da própria cultura indígena, os quais podiam ser aproveitados por eles, como<br />

alguns mitos em que os padres identificavam semelhanças com a tradição cristã, e algumas<br />

entidades do universo sobrenatural indígena, como Tupã e Anhã ou Anhangá, as quais foram<br />

associadas respectivamente a Deus e ao Diabo.<br />

O final dessa segunda parte liga-se diretamente a terceira parte, pois descrevo como<br />

procederei à análise das obras dos <strong>cronistas</strong> escolhidos para verificar a existência ou não de<br />

diferença entre eles. Como disse, a terceira parte se refere à análise das obras dos <strong>cronistas</strong>, a<br />

qual será feita por separado, onde não será levado em conta a estrutura textual e a cronologia<br />

desses relatos, sendo que esse aspecto concerne principalmente às cartas dos jesuítas – além<br />

disso, outro aspecto que se deve levar em conta, quanto aos escritos de Nóbrega e Anchieta,<br />

se refere a que analiso neste trabalho, apenas uma fração de seus escritos, por isso alguns<br />

aspectos conhecidos deles são deixados de lado nessa análise, pois não estão nas cartas<br />

analisadas. Desse modo, a análise desses relatos será fragmentada em pontos, os quais estão<br />

explicitados ao final da segunda parte. Para finalizar, serão comparadas as concepções de cada<br />

um dos quatro <strong>cronistas</strong>, sendo que desse modo poderemos ver qual a diferença que existe<br />

entre eles, e não entre <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>, ou seja, eles não serão considerados em<br />

bloco – um leigo (Staden e Knivet) e outro religioso (Nóbrega e Anchieta) –, pois pode haver<br />

uma diferença entre Staden e Knivet (<strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong>) e entre Anchieta e Nóbrega (<strong>cronistas</strong><br />

<strong>religiosos</strong>), como também pode haver uma semelhança entre os relatos de Staden e Nóbrega<br />

(um cronista leigo e outro religioso), sendo que, mesmo que Knivet e Staden concordem entre<br />

si e o mesmo ocorra entre Anchieta e Nóbrega e que essas duas concepções demonstrem uma<br />

diferença marcante, não podemos peremptoriamente afirmar que essa diferença existe em<br />

todos os relatos de <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>, para tal fim, deve-se levar em conta a imensa<br />

gama de <strong>cronistas</strong> que registraram essa prática indígena no século XVI, não apenas na<br />

América portuguesa, mas também na América hispânica.<br />

3


Impacto do Contato: Choque Cultural<br />

As grandes navegações empreendidas pelos países ibéricos desde o início do século<br />

XV – fazem parte do período que é comumente denominado de Era dos Descobrimentos 1<br />

(explorações) –, expandiram o horizonte e o conhecimento europeu sobre os extremos do<br />

mundo que até então eram desconhecidos e tidos como inabitáveis ou habitados por monstros<br />

pavorosos e terríveis (como arimaspos e blêmios). Estas eram as terras antípodas, que se<br />

situavam no hemisfério sul 2 e contrabalançavam o ecúmeno europeu. A existência destas<br />

terras em si não se delin<strong>ea</strong>va num problema, mas a existência de habitantes nelas, ou seja, a<br />

existência de outros homens configurava-se num problema central para os europeus, pois se<br />

estes homens de fato existissem, eles desconheceriam a mensagem de Cristo e isso traria<br />

sérias implicações 3 ao esquema de concepção do mundo para os europeus cristãos.<br />

Nesse período, uma concatenação de fatores, tornou essas viagens necessárias para os<br />

europeus, sendo que um dos fatores mais importantes se refere à conquista de Constantinopla<br />

pelos Otomanos (1453), a qual acarretou no fechamento das antigas e conhecidas rotas de<br />

comércio para a Índia e a China. Ou seja, os Otomanos passaram a dominar todo o<br />

mediterrâneo oriental e desse modo às rotas das especiarias – seda, cravo, canela, pimenta,<br />

etc. – que tanto agradavam aos europeus, além de sobretaxa-las dez vezes mais que os<br />

bizantinos. Desse modo, com o avanço das técnicas de construção naval e navegação, além do<br />

aperfeiçoamento de equipamentos já existentes, como as bússolas – o que tornou as viagens<br />

menos arriscadas –, os europeus passaram a procurar rotas alternativas para esse comércio. 4<br />

1 A Era dos Descobrimentos ou Século dos Descobrimentos compreende os séculos XV e XVI, no período de<br />

1450-1550. ALENCASTRO, Luis Felipe de. Trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul – séculos<br />

XVI e XVII. São Paulo: Cia. Das Letras, 2000, p. 11.<br />

2 O hemisfério sul era considerado um lugar inóspito que de algum modo estaria corrompido, pois nele o<br />

demônio teria se escondido depois da expulsão do Paraíso. (…). No imaginário da Idade Media essa região era<br />

habitada por monstros e não por seres humanos. Para os que acreditavam ser essas terras habitáveis, ali viviam<br />

os antípodas, seres cujos pés estariam ligados às solas dos pés dos europeus. Ali tudo estaria invertido, sendo o<br />

oposto do ecúmeno conhecido e habitável. Para outros, como para Pierre d’Ailly, resumindo o pensamento dos<br />

antigos, nessas regiões extremas viveriam os selvagens, antropófagos, com faces disformes e horrendas,<br />

resultantes do clima maléfico. Para se chegar a essa região era necessário afrontar o oc<strong>ea</strong>no terrível, o Atlântico,<br />

sempre envolvido em neblina, desprovido de ventos que pudessem movimentar os barcos. Para os cristãos de<br />

então, a existência ou não desse mundo inferior era um enigma (…) e a infinita diversidade da natureza e o vasto<br />

campo que ela oferecia à insaciável procura de explicações. DIEGUES, Antonio Carlos. Ilhas e Mares:<br />

simbolismo e imaginário. São Paulo: HUCITEC, 1998, p. 150.<br />

3 Quatro seriam as implicações básicas a esse respeito: “Primeiro, a negação da possibilidade da conversão<br />

universal; segundo, o absurdo da exigência missioneira planetária; terceiro, o questionamento da centralidade da<br />

crucificação como evento redentor da história; quarto, a desarticulação da conexão intima entre profecia bíblica e<br />

cumprimento escatológico”. GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução de<br />

Josely Vianna Batista. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 58.<br />

4 KONING, Hans. Colombo: O mito Desvendado. Tradução de Maria Carmelita Pádua Dias. Rio de Janeiro:<br />

Zahar, 1992, p. 9.<br />

4


Na última década desse século, o périplo africano já se encontrava vencido pelos<br />

portugueses e a Carreira das Índias – que ficou afamada por inúmeros naufrágios – interligava<br />

o mundo até então conhecido – Europa, África e Ásia, quando: “viajantes que pensavam saber<br />

onde estavam indo acabaram num lugar cuja existência jamais haviam suspeitado” 5 . Esta era a<br />

esquadra do Almirante genovês Cristóvão Colombo que, a serviço dos Reis Católicos de<br />

Espanha, aporta em 12 de outubro de 1492 numa ilha do Caribe – Ganahaní, renom<strong>ea</strong>da San<br />

Salvador – e “descobre” a quarta parte da terra, o Novo Mundo 6 – a América –, embora o<br />

almirante tivesse a convicção, até o dia de sua morte, de que estas terras faziam parte das<br />

Índias (esta denominação/nom<strong>ea</strong>ção aparece pela primeira vez anotada no diário do almirante<br />

no dia 17 de outubro de 1492) 7 , no Oriente (Ásia) e que estavam localizadas perto do paraíso<br />

terrestre.<br />

Não entrarei no mérito da questão acerca da nomenclatura deste Novo Mundo, ou seja,<br />

do porque ele foi chamado/designado de América, em homenagem a Américo Vespúcio em<br />

detrimento de Cristóvão Colombo ou Pedro Álvares Cabral. O que sabemos é que:<br />

“Colombo nunca soube que descobrira a América, pois pensava que seu Novo Mundo tocava o Antigo,<br />

constituindo um único mundo com este. Quando aportou na América do Sul [embocadura do Orenoco],<br />

pressentiu por um momento a novidade desse outro mundo: mundo desconhecido dos Antigos (…)” 8 .<br />

Já Américo Vespúcio, no início da carta – que muitos consideram apócrifa – intitulada<br />

Mundus Novus e endereçada a Pierfrancesco dei Médici, não apenas achava lícito chamar esta<br />

terra de nova como apontava, para isso, duas razões:<br />

“Saúde. Nos dias passados, muito amplamente te escrevi sobre meu retorno daquelas novas terras que –<br />

por mando desse sereníssimo rei de Portugal, as suas custas e com sua frota – procuramos e<br />

encontramos, [1] as quais é licito chamar de Novo Mundo, porque nenhuma delas era conhecida dos<br />

nossos maiores [antepassados]; porque é coisa novíssima para todos os que ouviram [falar] delas; e<br />

porque isso excede a opinião de nossos antepassados, pois a maior parte deles diz que, [2] além da linha<br />

equinocial e para o meridiano, não há continente, mas apenas mar, que chamam de Atlântico. E, se<br />

alguns deles afirmaram que ali havia continente, negaram – por muitas razões – que aquela terra fosse<br />

habitável. (…) Todavia, essa última minha navegação constatou que essa opinião deles é falsa e<br />

totalmente contrária à verdade, já que encontrei naquelas partes meridionais um continente habitado por<br />

mais numerosos povos e animais do que na nossa Europa, ou Ásia, ou África” 9 .<br />

5<br />

GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas: o deslumbramento do Novo Mundo. Tradução: Gilson<br />

César Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 18.<br />

6<br />

Colombo anunciou suas descobertas aos Reis da Espanha, Fernando e Isabel, quando retornou de sua primeira<br />

viagem, através de uma carta intitulada: Carta de Santángel, datada de 15 de fevereiro de 1493. MAHN-LOT,<br />

Marianne. Retrato histórico de Cristóvão Colombo. Tradução da 2ª. Ed. Francesa por Lucy Magalhães. Rio<br />

de Janeiro: Zahar, 1992, p. 67-68.<br />

7<br />

Ibid., p. 55.<br />

8<br />

Ibid., p. 126.<br />

9<br />

VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo: as cartas que batizaram a América. Introdução e notas Eduardo Bueno.<br />

Tradução das cartas de João Ângelo Oliva, Janaina Amado Figueiredo e Luis Carlos Figueiredo. São Paulo: Ed.<br />

Planeta Brasil, 2003, p. 33-34. Grifos do autor.<br />

5


A par desta questão, temos que o primeiro documento cartográfico, no qual as Novas<br />

terras, que aparecem na forma de uma gigantesca ilha, ostentam o nome de América é o mapa,<br />

datado de 1507, do alemão Martin Waldseemüller, cognominado: Universalis Cosmographia<br />

secundum Ptolomaei traditionem et Americi Vespucii aliorumque lustrationes 10 .<br />

A convicção de Colombo de que estas terras faziam parte das Índias se dá porque ele<br />

sabe de antemão o mundo que vai encontrar. O objetivo dessa primeira viagem era encontrar<br />

o Grande Cã ou imperador da China, ou seja, achar o já conhecido, o Oriente, mas por uma<br />

rota diferente (desconhecida): a navegação para oeste, antes tida, por vários motivos, como<br />

impossível de ser r<strong>ea</strong>lizada, agora se apresentava como uma alternativa viável de ser<br />

r<strong>ea</strong>lizada. Dentre esses motivos, destacam-se a falta de técnicas auxiliares de navegação que<br />

impossibilitavam a navegação em alto mar, sendo que a maioria esmagadora das viagens<br />

nesse período era feita por cabotagem, mas também porque se considerava essa distância, não<br />

intransponível, mas muito grande, sendo que nenhum navio da época poderia carregar e<br />

armazenar suprimentos suficientes para completar essa travessia 11 .<br />

Colombo, para tornar seu projeto viável, precisava provar que a navegação para oeste<br />

era r<strong>ea</strong>lizável e para isso se debruçou sobre inúmeras obras acerca deste tema. Nestas obras<br />

eram utilizadas inúmeras unidades de medidas, como a milha romana e a árabe, mas não se<br />

tinha a preocupação de defini-las 12 . A par disso, Colombo em sua análise chegou à conclusão<br />

de que o mundo era menor do que se pensava. O mundo de Colombo era três quartos do r<strong>ea</strong>l,<br />

ou seja, a distância entre o ponto de partida – Espanha – e o de chegada – Índias (Oriente) –<br />

era menor do que comumente era imaginado, o que tornava seu projeto de viagem r<strong>ea</strong>lizável.<br />

Projeto que se apresentava de forma simples e objetiva: Colombo pretendia atravessar o<br />

oc<strong>ea</strong>no Atlântico, via Ocidente, e chegar à província de Catai na China, que se encontrava sob<br />

o domínio do Grande Cã, a qual, aliás, fica ao lado do Reino cristão do Preste João, e se fosse<br />

possível ele poderia voltar à Espanha pelo Oriente, através do Ganges, pela península arábica<br />

e de lá seguiria por terra para Jerusalém e Jaffa, onde embarcaria rumo a Espanha 13 .<br />

Durante a viagem, Colombo interpreta os sinais que a natureza lhe apresenta (em seu<br />

entorno) em função de seus interesses ou dos resultados ao qual deve chegar (atingir):<br />

“No mar, todos os sinais indicam a proximidade da terra, já que Colombo assim o deseja. Em terra,<br />

todos os sinais revelam a presença de ouro: aqui também, sua convicção já estava formada há muito<br />

10 O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo<br />

e do sentido do seu devir. Tradução de Ana Maria Martinez Corr<strong>ea</strong> e Manoel Lelo Belloto. São Paulo: Editora da<br />

Universidade Estadual Paulista, 1992, p 175/6. e GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 149.<br />

11 KONING, Hans. Op. cit., p. 24.<br />

12 Ibid., p. 25.<br />

13 MAHN-LOT, Marianne. Op. cit., p. 80.<br />

6


tempo. Ele diz ainda que achava que havia imensas riquezas, pedras preciosas e especiarias. O almirante<br />

presumia que ali havia bons rios e muito ouro. Ás vezes, a afirmação desta convicção mistura-se,<br />

ingenuamente, com uma confissão de ignorância: acha que as terras são ricas, pois deseja ardentemente,<br />

que o sejam; sua convicção é sempre anterior à experiência” 14 .<br />

Essa interpretação em prol do que se quer ver é resultado do desejo e da imaginação<br />

humana, pois “quando um homem deseja muito algo e se agarra firmemente a isso em sua<br />

imaginação, tem a impressão, a todo momento, de que tudo aquilo que ouve e vê testemunha a<br />

favor dessa coisa” 15 . Contudo, esse tipo de interpretação tem suas conseqüências, pois a<br />

r<strong>ea</strong>lidade que se apresenta para a análise é distorcida e corrompida pela ânsia do que se quer<br />

encontrar. Desse modo, podemos dizer que Colombo não descobriu a América, mas a<br />

encontrou onde sabia que estaria, ou pensava que estava: a costa oriental da Ásia 16 .<br />

A descoberta de um Novo Mundo, ainda por cima, habitado por seres humanos, se<br />

configura no encontro mais surpreendente que já ocorreu em nossa história, pois o sentimento<br />

de estranheza que ele produziu “não esteve presente na descoberta de outros continentes e de<br />

outros homens, pois os europeus nunca ignoraram a existência da África, da Índia ou da<br />

China, como fizeram até o final do século XV com o continente americano” 17 . Esse encontro<br />

entre civilizações que se desconheciam mutuamente nunca mais atingirá tal intensidade<br />

(choque cultural), pois nesse encontro do Velho com o Novo Mundo “os homens descobriram<br />

a totalidade de que faziam parte. Até então formavam uma parte sem um todo” 18 . Ou seja, o<br />

impacto desse encontro provocou/suscitou na cultura européia, ao mesmo tempo, uma série de<br />

indagações (questionamentos) e uma perplexidade que inicialmente se centra no<br />

maravilhoso 19 – experiência de uma surpresa atordoante 20 – do novo ou desconhecido<br />

(estranho), que colocou em xeque as crenças européias sobre a humanidade e sobre o mundo<br />

no qual viviam e pensavam conhecer. Sendo que este maravilhoso se constituiu:<br />

“(…) traço central no complexo sistema de representação como um todo, seja ele verbal ou visual,<br />

filosófico ou estético, intelectual ou emocional, através do qual as pessoas da Idade Média tardia e da<br />

Renascença apreendiam, e, portanto possuíam ou descartavam; o não familiar, o estranho, o terrível, o<br />

14<br />

TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. 3ª. edição brasileira. Tradução: B<strong>ea</strong>triz<br />

Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 21.<br />

15<br />

Ibid., p. 22.<br />

16<br />

Ibid., p. 22-23.<br />

17<br />

Ibid., p. 5.<br />

18<br />

Ibid., p. 6.<br />

19<br />

Podemos definir o maravilhoso como expressão de um critério de diferenciação cultural entre valores de<br />

referência propícios a instaurar uma comunicação entre o autor, seu público e as prerrogativas de um mundo<br />

disforme. E a maravilha se desencadeia pelo ingresso, em um contexto habitual, de uma estranheza mais ou<br />

menos acentuada, que reconduz a um outro lugar quase sempre identificado a paises longínquos, aos quais, um<br />

fascínio irresistível atribui valor nostálgico de um bem perdido que deve ser recuperado. LANCIANI, Giulia. O<br />

Maravilhoso como Critério de Diferenciação entre Sistemas Culturais. Revista Brasileira de Historia: América<br />

Américas. São Paulo: ANPUH/CNPq, v. 11, n° 21, p. 21-26, set.90/fev.91, p. 22.<br />

20<br />

GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 134.<br />

7


desejável e o odioso. (…) Dessa forma o maravilhoso não apenas assinalava o novo, mas faz a<br />

mediação entre o fora e o dentro – o vê ou pensa que vê 21 – pois seu eixo de sustentação baseia-se num<br />

sistema de oposição: reside na diferença, no contrário ao conhecido, no inaudito” 22 .<br />

O maravilhoso dominou o imaginário da era dos descobrimentos, constituindo-se na<br />

figura central da resposta inicial dos europeus ao Novo Mundo 23 , pois as regiões<br />

desconhecidas e estranhas, junto de sua natureza e de seus habitantes, despertam à curiosidade<br />

do europeu pela diferença em relação ao ambiente que estavam habituados (acostumados) a<br />

ver (através da comparação). Ao projetar suas fantasias nas terras desconhecidas, os europeus<br />

tinham “por objetivo apenas o conhecimento” 24 , que se dava através da experiência emocional<br />

e intelectual diante daquilo que é radicalmente diferente (estranho) da cultura européia. A<br />

“maravilha” – com seus mundos fantásticos povoados por prazeres sensoriais e monstros<br />

aterrorizantes – está presente nos relatos fantasiosos da literatura da Idade Média e do<br />

Renascimento, nos relatos de viajantes, no diário dos conquistadores, nas memórias dos<br />

missionários e na filosofia de autores como Montaigne, Descartes e Spinoza: o qual considera<br />

o maravilhoso um modo de concepção (imaginatio), ou seja, o maravilhoso se configura num<br />

componente quase inevitável do discurso da descoberta, pois por definição, ele é um<br />

reconhecimento instintivo da diferença 25 .<br />

Outra conseqüência desse impacto (choque cultural), foi que, à descoberta da América<br />

forneceu os subsídios necessários para que os símbolos/signos do maravilhoso ganhassem<br />

vigor, e se transformassem no instrumento (filtro da r<strong>ea</strong>lidade), pelo qual os europeus – em<br />

especial os viajantes – descreveram (em seus relatos/crônicas) esse Novo Mundo e seus<br />

habitantes. Sendo que esses símbolos/signos do maravilhoso expressam a mentalidade, não<br />

apenas dos viajantes, mas da sociedade européia ocidental, em especial, dos ibéricos – que no<br />

mesmo ano de 1492 reconquistam a península ibérica dos mouros (infiéis), cujo marco é a<br />

capitulação de Granada –, da época das grandes navegações, a qual tinha características<br />

medievais, cuja marca indelével é a teologia cristã 26 .<br />

21<br />

Ibid., p. 40.<br />

22<br />

GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 65.<br />

23<br />

GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 31.<br />

24<br />

Ibid., p. 37.<br />

25<br />

SPINOZA, Baruch. Chief Works. Trad. Ingl. R. H. M. Elwes, 2 vols. Londres: George Bell & Sons, 1884, II.<br />

174 Apud GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 37.<br />

26<br />

“O entendimento do mundo medieval é marcado pela teologia cristã que vê o universo por meio da idéia da<br />

harmonia e da perfeição. A capacidade de criar o maravilhoso, o fantástico faz parte da episteme medieval. Na<br />

sociedade medieval as lendas relativas a seres mágicos e excepcionais que habitam mares e ilhas estão<br />

claramente presentes e passam a constituir um elemento importante para se entender aquele período histórico e<br />

mesmo os descobrimentos.” DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 149.<br />

8


Então, no período inicial da descoberta e no subseqüente, que é o da conquista – cuja<br />

principal característica são as campanhas militares, dentre as quais, destacam-se às de Cortes<br />

e Pizarro, contra Astecas e Incas respectivamente, sendo que essas campanhas militares não<br />

contradiziam o interesse comercial, pois a guerra era um grande negócio, menos para os<br />

soldados 27 –, onde tudo era desconhecido e estranho aos olhos dos europeus, a percepção e a<br />

descrição do novo, para se tornarem compreensíveis (familiar), manifestavam-se através da<br />

re-visitação de símbolos/signos que faziam parte do maravilhoso no imaginário medieval – o<br />

qual é marcado pela dualidade religiosa onde se destacam as “manifestações de amor-temor a<br />

Deus e ao Diabo; o primeiro, premiando e castigando de acordo com sua suprema vontade; o<br />

segundo, recolhendo para sua glória os despojos dos condenados às penas eternas” 28 .<br />

A invocação do maravilhoso medieval se torna imprescindível, pois sem ela a<br />

descrição dos novos cenários e de seus habitantes não se torna transmissível (cognitiva) para a<br />

r<strong>ea</strong>lidade européia 29 . Dessa forma, um mundo completamente desconhecido e até então<br />

inimaginável frente às crenças européias da época, se torna um mundo de semelhanças, pois o<br />

“estranho é transformado em familiar e o familiar é transformado em estranho” 30 :<br />

“Colombo fundiu duas idéias preexistentes, transformando as terras que descobrira numa mescla de<br />

Oriente fabuloso com Europa id<strong>ea</strong>lizada. Suas ilhas puderam, por isso, ser visualizadas como imagens<br />

reconhecíveis. As novidades ficaram com um aspecto familiar. (…). Colombo que de acordo com o<br />

velho chiste, ao zarpar não sabia onde estava indo e, ao voltar, não soube dizer onde estivera. Relatos<br />

são frutos da intrincada inter-relação que mantêm acesso o conflito entre tradição e renovação” 31 .<br />

Desse modo, Colombo iniciou um longo trajeto, que será seguido por outros <strong>cronistas</strong>,<br />

de visualização da Europa na América, por isso podemos dizer que Colombo “via mais com a<br />

imaginação do que com a vista” 32 , sendo que essa imaginação – a que Colombo e outros<br />

inúmeros viajantes possuíam – é formada e impregnada pela leitura de autores antigos e<br />

medievais e ainda por cima, no caso de Colombo e outros, da fé (religião) cristã. Contudo:<br />

“Colombo não acreditava somente no dogma cristão: acreditava também (e não é o único na época) em<br />

ciclopes e sereias, amazonas e homens com cauda, e sua crença, tão forte quanto a de São Pedro,<br />

permite que ele os encontre” 33 .<br />

27<br />

MICELLI, Paulo. O ponto onde estamos viagens e viajantes na historia da expansão e da conquista<br />

(Portugal, séculos XV e XVI). 3ª. edição. Campinas: Editora da Unicamp, 1998, p. 121.<br />

28<br />

Ibid., p. 33.<br />

29<br />

LANCIANI, Giulia. Op. cit., p. 24-25.<br />

30<br />

GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 65.<br />

31<br />

VESPÚCIO, Américo. Op. cit., p.12.<br />

32<br />

SILVA, Janice Theodoro da. Colombo: entre a Experiência e a Imaginação. Revista de História<br />

Brasileira. São Paulo: ANPUH/CNPq, v. 11, n. 21, p. 27-44, set.90/fev.91, p. 35.<br />

33<br />

TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 16.<br />

9


A par disso, vê-se que as crenças que esses <strong>cronistas</strong> possuíam, influenciaram e<br />

interferiram em suas interpretações acerca das coisas do Novo Mundo. Contudo, essas<br />

descrições bas<strong>ea</strong>das nessa mentalidade medieval sustentada pelo maravilhoso – o<br />

desconhecido e estranho aos olhos europeus – só tem validade para o período da descoberta<br />

(choque ou contato inicial) e para o subseqüente, o do conquista, sendo que a partir do<br />

momento em que a conquista está finalizada e garantida, se inicia a colonização efetiva dessas<br />

novas terras, e isso, junto do acúmulo das experiências vivenciadas no período inicial, faz<br />

com que as interpretações bas<strong>ea</strong>das no maravilhoso se tornem inadequadas para representar a<br />

nova r<strong>ea</strong>lidade que se impõem frente aos olhos dos europeus (conquistadores).<br />

Contudo, o maravilhoso não se extingue totalmente, ele ganha uma sobrevida ao<br />

mesmo tempo, que se desgasta frente à mentalidade européia (em especial a dos<br />

conquistadores), principalmente no que diz respeito à representação da r<strong>ea</strong>lidade concreta do<br />

Novo Mundo. Isso ocorre por causa da característica do maravilhoso de “sofrer<br />

deslocamentos contínuos e ainda assim permanecer elusivo” 34 . Então, quando as ár<strong>ea</strong>s<br />

conquistadas se esvaziam dos sonhos de riquezas – tesouros deslumbrantes –, o maravilhoso<br />

faz esses sonhos, ou melhor, ilusões, ressurgirem, geralmente metamorfos<strong>ea</strong>dos a partir das<br />

incorporações das lendas nativas, em outras regiões ainda inexploradas – “na América o<br />

maravilhoso e a imagem de riquezas coincidiram” 35 . Um dos casos mais famosos se remete a<br />

procura da lendária cidade de ouro de El Dorado (Manoa) 36 – esse mito de ouro (riquezas),<br />

enobrecimento e fama (reputação), ceifou a vida de inúmeros conquistadores e aventureiros,<br />

que a procuraram desde as densas florestas até os áridos desertos da América.<br />

Com respeito, as crenças que os viajantes (<strong>cronistas</strong>) possuíam e que formaram o seu<br />

imaginário/mentalidade, ou seja, a sua bagagem cultural 37 , com a qual singravam os mares<br />

para ao chegar ao desconhecido, e o interpretar a partir desse ponto de vista. Elas foram<br />

adquiridas (formadas) através da literatura a que esses viajantes tiveram acesso, sendo esta<br />

literatura é bas<strong>ea</strong>da em relatos de viagens fantásticas, rech<strong>ea</strong>das de um repertório mitológico,<br />

rumo a lugares longínquos (inóspitos) da terra, que na maioria dos casos é atingida uma única<br />

34<br />

GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 79.<br />

35<br />

Ibid., p. 13.<br />

36<br />

ROY, Gabriel. A Busca do El Dourado. Revista de História. São Paulo: EDUSP, v. 49, n° 99, p. 45-60,<br />

julho/setembro, 1974.<br />

37<br />

A bagagem de todos os viajantes está repleta de valiosos componentes que escapam à visão e ao tato. (…)<br />

quem viajam carrega em seus caminhos uma bagagem cultural de que fazem parte lembranças, emoções e todo<br />

um vasto e confuso mosaico de aspirações, instintos, frustrações, além de enorme variedade de sentimentos<br />

dificilmente apreensíveis: se fosse possível conhecer a carga invisível de um viajante, a compreensão que<br />

teríamos de suas motivações seria surpreendente, diferindo bastante do que o discurso historiográfico, na ânsia<br />

de aplainar diferenças procurou registrar como razão de seus atos. MICELLI, Paulo. O Inferno no Espelho do<br />

Céu. Revista Brasileira de História. São Paulo: ANPUH/CNPq, v. 11, n. 21, p. 77-99, set.90/fev.91, p. 81.<br />

10


vez pelos viajantes, nunca mais este lugar sendo encontrado. Entre as inúmeras obras desta<br />

literatura, as que se destacam são as viagens ao oriente de Marco Pólo e Mandeville, as<br />

viagens por ilhas fantásticas como as de Homero (Odisséia – a viagem de Ulisses) e Heródoto<br />

e as que narram a busca pelo paraíso terrestre como as de São Brandão e a de Pierre d’Ally.<br />

Em sua viagem ao Oriente, Marco Pólo relata ilhas com grandes riquezas, onde seus<br />

habitantes apresentavam costumes fora da normalidade (aceitabilidade) européia:<br />

“No livro das Maravilhas, em Sumatra, os nativos praticavam a antropofagia e recorriam à eutanásia<br />

para apresar a morte dos anciões, que eram devorados ritualmente. Na ilha de Nicobar os homens e<br />

mulheres praticavam sexo como cães na rua, sem nenhuma vergonha” 38 .<br />

Desde a viagem de Ulisses até a época das grandes navegações ibéricas – ou melhor,<br />

até a transposição do Cabo das Tormentas, que se tornou o Cabo da Boa Esperança –, o<br />

Atlântico era visto como um oc<strong>ea</strong>no habitado por monstros, demônios e outras inúmeras<br />

bestas míticas, onde “não somente o herói mítico [Ulisses] pediu auxílio aos deuses como<br />

também os marinheiros portugueses e espanhóis lançavam relíquias ao mar para apaziguar as<br />

tempestades” 39 , cujo limite seguro para a navegação era marcado pelas Colunas de Hércules<br />

(estreito de Gibraltar), as quais “representavam o limite do mundo conhecido e um símbolo da<br />

proibição divina diante da insensata curiosidade humana” 40 . Este maré tenebrarum 41 se<br />

constituía em:<br />

“Um universo inquietante (um misto de explicações míticas e religiosas no qual o homem estava<br />

sempre presente, seja como habitante de ilhas e terras longínquas, seja como navegante e descobridor) 42 ,<br />

que seduz e aterroriza, mas que não se pode recusar, é o do ultramar atlântico. Para evitar ser por ele<br />

fagocitado, é necessário encontrar referências imediatas a contextos tranqüilizadores, concretos ou<br />

mentais – pouco importa. E o salto para além do mundo habitual só pode ocorrer – pelo menos<br />

inicialmente – recuperando-se as imagens ignotas com os olhos da familiaridade. O recurso ao antigo<br />

aparece então como a rede de linhas que o pensamento traça na intrincada selva do desconhecido para<br />

percorrê-lo sem desgarrar-se e encontrar, neste, um espaço onde o novo possa ter lugar e voz. A<br />

memória do passado como vereda de conhecimento: a função do mito é então a de tornar dizível o que<br />

não tem nome, evitando, assim, a vertigem da perda de referência no oc<strong>ea</strong>no do diverso” 43 .<br />

38<br />

POLO, Marco. Il milione. Florença: Ed. L. Benedetto, 1928, p. ? Apud DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p.<br />

150.<br />

39<br />

DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 68.<br />

40<br />

GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 23.<br />

41<br />

Entre os terrores vindos do mar, na era das grandes navegações, a figura satânica era certamente a<br />

manifestação mais freqüentemente avistada pelos marinheiros ibéricos católicos, cujas causa das tempestades,<br />

dos naufrágios e de grande parte dos infortúnios em alto mar lhe eram atribuídas. “O diabo vindo do mar estava<br />

associado sempre à morte, tanto do corpo quanto da alma. Existiam muitas lendas de almas errantes de<br />

navegadores desaparecidos como pagãos e destinados a vagar sem fim por sobre as vagas ou a bordo de navios<br />

fantasmas. O navio tinha cheiro de enxofre, empestando o mar por quilômetros, capturando os marinheiros que<br />

encontrava em sua passagem. Se a lenda do navio fantasma, em que sobressaia a do holandês voador,<br />

simbolizava a atitude do homem em relação a deus, seu orgulho, sua revolta, a negação do divino, a presença<br />

constante do demônio a bordo transformava-se em instrumento da justiça divina sem comiseração para os<br />

homens que pecassem gravemente”. DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 83.<br />

42<br />

Ibid., p. 70-71.<br />

43 LANCIANI, Giulia. Op. cit., p. 24.<br />

11


Isso se dava porque as viagens pelo Atlântico suscitavam muitas dúvidas nos<br />

navegantes 44 – a vida a bordo de um navio 45 era marcada não somente por contingências<br />

naturais, mas por temores, medos, acidentes e naufrágios –, pois as viagens marítimas em alto<br />

mar eram perigosas, por inúmeros motivos que vão desde a inabilidade dos pilotos, do<br />

desconhecimento da região a navegar e da construção do próprio navio, sendo que os<br />

viajantes não tinham a certeza de que voltariam vivos dessa empresa, principalmente porque<br />

nesse período eram mais freqüentes os naufrágios do que as chegadas aos portos de destino:<br />

“vão para voltar se é possível” 46 . Os motivos para essas viagens serem empreendidas são os<br />

mais variados, sendo que estes vão desde encontrar uma passagem para o oriente em direção<br />

ao oeste, a de contornar o continente africano para se chegar as Índias, a de encontrar novas<br />

terras, mas também por causa de lendas e mitos de “montes de ouro como o de Zambésia e<br />

outras riquezas” 47 , inclusive, viagens com o intuito para achar o Paraíso terrestre 48 , perdido<br />

pela humanidade, por seus ancestrais – Adão e Eva – desde os tempos primordiais, e que<br />

segundo muitas lendas, se encontrava em algum lugar no Oriente.<br />

A existência do Paraíso terrestre não é fruto dessas viagens de descobertas, ela já<br />

existia a algum tempo na mentalidade européia do ocidente cristão, sendo embasada por<br />

relatos de viajantes que o teriam atingido ou passado ao largo dele. A sua localização era<br />

sempre apontada como estando no Oriente. Um dos principais relatos sobre o paraíso terrestre<br />

era a lendária Viagem de São Brandão, que teria viajado rumo ao oriente (oeste), bem antes<br />

que Colombo e teria atingido inúmeras ilhas 49 lendárias, que nunca mais foram avistadas por<br />

outros viajantes, e dentre elas o paraíso terrestre, cuja localização, segundo o Imago Mundi de<br />

Pierre d’Ally (teólogo/card<strong>ea</strong>l) era “numa região temperada além do equador” 50 . Nessa<br />

mesma obra – que Colombo e outros viajantes leram – Pierre d’Ally:<br />

44<br />

No tempo das descobertas, a gente do mar, ou homens do mar ou simplesmente marinheiros apareciam como<br />

gente de baixa condição, desrespeitosa violenta, alheia aos valores da religião e da sociedade, dados a<br />

prostituição e a vagabundagem. DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 77.<br />

45<br />

O navio revela-se um mundo profundamente heterogêneo, não se podendo reduzir os personagens do navio a<br />

marinheiros simplesmente, sem que essa simplificação grosseira não esconda a divisão do trabalho que sustenta<br />

o espaço rigidamente hierarquizado característico daquela sociedade flutuante. Constitui-se sobre o espaço<br />

reduzido um emaranhado de relações de poder, bas<strong>ea</strong>das nos postos e funções de trabalho a bordo,<br />

rigorosamente estabelecidas, e que descartam qualquer tentativa de simplificação. O valor de cada um –<br />

diferenciação social – se dá através dos postos e das remunerações de cada um. MICELLI, Paulo. O ponto onde<br />

estamos… Op. cit., p. 100 e 102-103.<br />

46<br />

Ibid., p. 87.<br />

47<br />

Ibid., p. 124.<br />

48<br />

A origem dos mitos edênicos remonta ao século III d.C. “de Lactâncio ou de quem fosse o autor do poema<br />

Latino De aue Phoénix”. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: Os motivos edênicos no<br />

descobrimento e colonização do Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional: Edusp, 1969, p. 162.<br />

49<br />

As representações simbólicas das ilhas são marcadas pelos extremos; de um lado o espaço paradisíaco, e, de<br />

outro lado, o infernal, o amaldiçoado… DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 110.<br />

50<br />

TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 17.<br />

12


“(…) r<strong>ea</strong>firma a idéia de que a distância entre a Península Ibérica e a China era pequena. Colombo fez<br />

anotações no livro em que aparecem as Ilhas Afortunadas na altura das Canárias, em cuja existência o<br />

almirante acreditava e estas estariam próximas de Cipango [Japão]. No famoso mapa terrestre de Martin<br />

Behaim de 1492, a ilha de San Borondon (São Brandão) aparece no centro do oc<strong>ea</strong>no que se estende das<br />

costas da Espanha até a ilha de Cipango (Japão), alguns graus somente ao norte do Equador” 51 .<br />

Por isso, Colombo, quando estava navegando pelas Antilhas acreditava estar<br />

navegando nas proximidades do Paraíso terrestre. Lógico que outros fatores, como a<br />

amenidade do clima, a exuberâncias da matas entre outros também contribuirão para ele<br />

chegar a essa conclusão. Outra informação do livro de Pierre d’Ally que Colombo dava<br />

importância era a que dizia que:<br />

“(…) por razões de simetria, deve haver quatro continentes no globo: dois ao norte e dois aos sul; ou,<br />

vistos em sentido contrário, dois a leste e dois a oeste. A Europa e a África (Etiópia) formam o primeiro<br />

par norte-sul; a Ásia é o elemento do norte do segundo; resta descobrir, não, achar onde está localizado,<br />

o quarto continente” 52 .<br />

Apenas na terceira viagem, Colombo faz uma menção sobre o continente Americano<br />

propriamente dito, ou, sendo mais especifico da América do Sul, porque nas outras duas<br />

viagens anteriores, Colombo apenas aportou nas ilhas do Caribe.<br />

“Digo [Colombo], portanto, que, se este rio [embocadura do Orenoco] não sai do paraíso terrestre, vem<br />

e sai de um continente infinito que se estende em direção ao sul (...). Atualmente, e durante um tempo<br />

em que estas novas estiverem chegando a seu destino, envio o Adelantado para essas terras recémdescobertas<br />

e nas quais não posso deixar de crer que está o paraíso terrestre” 53 .<br />

A par disso, Colombo escreve que o mundo não é perfeitamente redondo<br />

(anteriormente achava-se que o mundo era plano e que se navegasse rumo a oeste em uma<br />

determinada altura você despencaria num abismo, porém os gregos – Erastóstenes – no século<br />

III a.C. já sabiam que a terra era redonda e mediram sua circunferência com uma<br />

surpreendente precisão 54 ), mas que sua forma se aproxima (é similar) a de uma pêra, ou a de<br />

um mamilo, em cujo cume se localizaria o Paraíso terrestre. Essa consideração de Colombo<br />

nos leva à questão cartográfica, pois “os mapas completavam os espaços imaginários e os<br />

confins do mundo com emblemas teratológicos, símbolos teriomórficos. Sagas, lendas e<br />

relatos de viajantes” 55 .<br />

51 DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 169.<br />

52 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 23.<br />

53 COLOMBO, C. La découverte de l’Amérique, Journal de Bord 1492-1493. Paris: Éditions de la<br />

Découverte, 1984, p. 75 Apud DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 170.<br />

54 KONING, Hans. Op. cit., p. 23.<br />

55 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 80.<br />

13


“Vários mapas-múndi da época revelam certa simetria, sobretudo os circulares, nos quais existiam duas<br />

zonas temperadas, duas polares e uma tórrida não-habitada. Em muitos deles, no ápice do circulo,<br />

situava-se o paraíso terrestre. Existia também uma gradação de valores dos espaços, partindo-se<br />

daqueles menos valorizados, a zona tórrida, para os mais valorizados, o ecúmeno europeu e finalmente<br />

o paraíso terrestre que se supunha existir no norte ou no oeste” 56 .<br />

Outros mapas seguem o plano “T em O”, ou seja, uma circunferência limitada<br />

perifericamente pelo oc<strong>ea</strong>no que é dividido em mares e rios interiores, onde os três<br />

continentes conhecidos – Europa, África e Ásia – estão dispostos de modo que a cidade de<br />

Jerusalém seja exatamente o centro desse mapa, ou seja, do mundo. 57 Contudo, essas formas<br />

de representação começam a sofrer alterações na forma de representar o mundo e em sua<br />

composição com o advento de novas técnicas. As novas terras surgem no oeste, desse modo<br />

Jerusalém se desloca para o leste e deixa assim de ser o centro do mundo, porém mesmo<br />

representando agora grande parte do mundo – a Oc<strong>ea</strong>nia, ou Novíssimo Mundo só é<br />

descoberta no século XVIII –, o que demonstra que o mundo se expandiu, essas cartas<br />

(mapas) ainda se mostram imprecisas na demarcação de fronteiras e contornos,<br />

principalmente no que diz respeito às novas terras – continente americano propriamente dito –<br />

e as ilhas, cuja imprecisão em sua localização aumentava:<br />

“(…) a força e o prazer da imaginação e da fantasia, que representavam e situavam as terras<br />

desconhecidas pelos espaços dos mares também desconhecidos. Essa imprecisão na localização das<br />

ilhas distantes e paradisíacas potencializa o mirífico e o maravilhoso medieval” 58 .<br />

Com relação às representações cartográficas, pode-se notar que elas passam, no século<br />

XVI, no que tange a representação das terras recém-descobertas, por três estágios distintos<br />

que demonstram as concepções européias sobre essas terras, mas também, deve-se levar em<br />

conta, que esses primeiros viajantes, cujas informações eram levadas em conta para a<br />

confecção dos mapas, viam apenas uma parte, o resto eles apenas imaginavam, pois a<br />

“imaginação fornece e amplia o campo perceptivo, abrangendo vales e colinas distantes, toda<br />

uma ilha ou todo um continente, e o pouco que r<strong>ea</strong>lmente se viu torna-se por metonímia, uma<br />

representação do todo” 59 . No que diz respeito à representação do Brasil, temos que:<br />

“(…) o primeiro [estágio], de absoluto maravilhamento, levou os cartógrafos a objetivar lindos<br />

papagaios e uma vegetação exuberante no que já se conhecia do Novo Mundo. O Brasil vira ‘Terra<br />

Papagalli’ em uma carta de 1507. Transforma-se, pela necessidade da conversão dos infiéis, em ‘Terra<br />

Sancte Crucis’ ainda em 1508. Já em 1519, o segundo momento se sobrepõe ao primeiro, e o<br />

maravilhamento cede lugar ao medo e a desconfiança: um dragão – considerado um dos receptáculos<br />

mais comuns do Demônio – cuspindo chamas é representado em uma das capitanias centrais. Uma<br />

56 DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 149.<br />

57 GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 64.<br />

58 DIEGUES, Antonio Carlos. Op. cit., p. 151.<br />

59 GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 163.<br />

14


mulher nua sentada sobre um lagarto olha furtivamente, do canto inferior esquerdo da carta, para todo o<br />

continente americano. Uma palhoça aparece no centro do que é hoje a Bahia com a inscrição<br />

‘canibalis’. Na África, negros de tangas aparecem colhendo pepitas de ouro como frutos do chão. O que<br />

nos leva, para o terceiro momento. Nas cartas de fins do século XVI, o que predomina não é<br />

encantamento ou medo, mas a objetividade como critério na representação das rotas comerciais. No<br />

Brasil, um índio corta madeira e colhe frutos perto do litoral” 60 .<br />

Os viajantes europeus utilizaram frente ao desconhecido – a terra recém-descoberta e<br />

seus habitantes – “suas estruturais intelectuais e organizacionais”, ou seja, sua mentalidade<br />

(bagagem cultural) que se encontrava impregnada dessas lendas e crenças, para interpretar e<br />

explicar, o que viam, o que descreviam e o que escreviam em seus relatos (crônicas), através<br />

de representações que eram moldadas, na maioria dos casos, nos aspectos do repertório<br />

mitológico dessas lendas e crenças. Contudo essas estruturas de ver e pensar o Novo Mundo e<br />

seus habitantes: “impediam em grande parte uma percepção clara da radical alteridade das<br />

terras e dos povos americanos” 61 que se apresentavam perante suas vistas. Uma das causas<br />

dessa disparidade se dá porque o maravilhoso, além de se apoiar no desconhecido, “não exige<br />

concordância entre o objeto [que se vê] e o narrado [o que se escreve]” 62 .<br />

Então, quando Colombo escreve em seu diário, que ouvi dos indígenas que:<br />

“(…) existiam pessoas (…) com focinho de cão, que devoravam os homens e decapitavam todos<br />

aqueles que capturavam e bebiam seu sangue e cortavam-lhes os órgãos sexuais, ou quando vê, nas<br />

focas, três sereias não tão belas como as descrevem, porque tem traços mais certamente masculinos, ou<br />

quando projeta passar pela ilha das mulheres, na viagem de regresso, para levar consigo cinco ou seis<br />

delas para mostrar aos reis católicos, é evidente que sobrepõem elementos do próprio imaginário a uma<br />

r<strong>ea</strong>lidade apta, sem dúvida, a fazer funcionar de novo os mecanismos alimentadores da cultura do<br />

maravilhoso” 63 .<br />

Devemos considerar, não apenas esta descrição ou outras de Colombo – como quando<br />

ele diz que os homens de Caniba eram os responsáveis pelas cicatrizes nos rostos e corpos dos<br />

índios com que entrou em contato (Taínos), ou quando se dizia informado através dos<br />

mesmos indígenas da existência de seres com um só olho na testa (ciclopes) –, mas a de<br />

outros viajantes (<strong>cronistas</strong>), como “uma representação mesmo que inconsciente da tradição<br />

clássica e medieval (…) do que notícias a ele[s] veiculadas pelos índios” 64 , principalmente no<br />

que tange o fator lingüístico, ou seja, a comunicação entre as partes, ou melhor, a<br />

incompreensão mútua – o que prejudicou não apenas o entendimento do que o outro queria<br />

dizer (se expressar/falar), como também o entendimento do outro enquanto ser humano –,<br />

60 NORONHA, Isabel. A corografia medieval e a cartografia renascentista: testemunhos iconográficos de<br />

duas visões de mundo. Disponível em: . Acessado em 27/04/2006.<br />

61 GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 78.<br />

62 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 14.<br />

63 LANCIANI, Giulia. Op. cit., p. 23-24.<br />

64 Ibid., p. 24.<br />

15


pois, como disse Las Casas: “estavam todos no escuro, pois não compreendiam o que os<br />

índios diziam” 65 .<br />

Contudo, essa incompreensão lingüística se mostrou interessante ao elemento<br />

Europeu, pois a partir dela, a imagem (e os mitos) dos nativos foi manipulada em prol de seus<br />

interesses, ou seja, o fato de não compreender a língua nativa permitiu “uma liberdade até<br />

certo ponto agradável de interpretar os sinais do outro” 66 . A manipulação da imagem dos<br />

nativos foi feita, principalmente através da escrita, mas também era feita através de imagens.<br />

A escrita é considerada um elemento que distingue as sociedades européias das nativas<br />

americanas 67 . Porém é preciso ressaltar que, embora grande parte das sociedades americanas<br />

fossem apócrifas, existiam sociedades letradas que possuíam um complexo sistema de escrita,<br />

representações e contagem do tempo.<br />

Na falta de uma linguagem mutuamente compreensível, os indígenas e os europeus se<br />

comunicavam por intermédios de sinais (mímica) e pela permuta de objetos (escambo – sendo<br />

que este só tem sentido, na medida, que se remete a dinâmica interna das sociedades<br />

indígenas) 68 . Essa troca era id<strong>ea</strong>lizada pelo europeu, que trocava:<br />

“(…) generosidade por informação, amizade por conversão e miçangas por amostras de ouro. Ao<br />

aborígine cabe cumprir a lei da reciprocidade e satisfazer as expectativas do europeu: deve revelar a<br />

localização secreta das minas de ouro, cristianizar-se e trabalhar em beneficio do estrangeiro” 69 .<br />

De mesma forma, o sentido das trocas e dos sinais indígenas eram interpretados pelos<br />

europeus a seu bel prazer, pois não compreendiam o que os índios queriam r<strong>ea</strong>lmente lhes<br />

informar/dizer. Podemos verificar um registro dessa prática no diário do almirante (18 de<br />

dezembro de 1492), quando Colombo recebe em seu navio um jovem rei e seus conselheiros:<br />

“Percebi [Colombo] que ele se agradara de uma colcha que eu tinha em minha cama. Dei-lha,<br />

juntamente com algumas bonitas contas de âmbar que trazia no pescoço, uns escarpins vermelhos e um<br />

frasco de água de flores de laranjeira, com o que ele se mostrou tão satisfeito que foi mesmo de admirar.<br />

Como seu tutor e seus conselheiros, estava muito perturbado porque não me entendiam, nem eu a eles.<br />

Ainda assim, concluí que ele dizia que, se algo me agradava naquele lugar, toda a ilha estava a minha<br />

disposição. Mandei buscar um colar ao qual trago preso, como lembrança, um medalhão de outro com a<br />

figura de Vossas Altezas, e mostrei-lho; e de novo, como ontem, contei-lhe que Vossas Altezas reinam<br />

sobre a maior parte do mundo e que não existem outros príncipes tão grandes. Mostrei-lhe as bandeiras<br />

r<strong>ea</strong>is e as que ostentam a cruz, das quais gostou muito. Quão grande devem ser mesmo Vossas Altezas,<br />

disse ele (falando a seus conselheiros), já que de tão longe e dos céus me haveis enviado cá sem medo;<br />

65<br />

TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 30.<br />

66<br />

Ibid., p. 144.<br />

67<br />

GREENBLAT, Stephen. Op. cit., p. 28.<br />

68<br />

MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios bandeirantes nas origens de São Paulo: São Paulo: Cia.<br />

Das Letras, 1994, p. 32-33.<br />

69 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 125.<br />

16


diversas outras coisas se passaram entre eles, que não cheguei a compreender, exceto que tudo o que<br />

viam lhes parecia maravilhoso” 70 .<br />

Pode-se perceber que por maior que fosse a diferença, em todos os aspectos entre os<br />

europeus e os indígenas, os europeus (viajantes) acreditavam que compreendiam os sinais e as<br />

representações que os nativos lhes dirigiam. O próprio Colombo – no trecho em destaque<br />

acima – diz que não compreendia o que os índios falavam entre si, mas mesmo assim,<br />

concluindo por conta própria, disse que os sinais que os índios lhe fizeram, indicavam que<br />

eles estavam colocando toda a ilha a sua disposição. A par disso, Las Casas, adverte que:<br />

“Narrativas onde índios e espanhóis aparecem travando sofisticados diálogos não passam quase sempre,<br />

(…) de falsificações intencionais destinadas a fazer com que as ações violentas e arbitrárias dos<br />

conquistadores pareçam mais justas do que de fato o foram” 71 .<br />

Em seu diário, Colombo, admite que não consegue, a não ser por conjecturas (que se<br />

constitui num método pouco seguro), se comunicar com os nativos através da fala (língua):<br />

“Não conheço a língua das gentes daqui, eles não me compreendem e nem eu nem nenhum de<br />

meus homens os entendemos” 72 . Ao mesmo tempo, e no mesmo diário, o almirante,<br />

reconhece a diversidade das línguas indígenas e coloca isso como um obstáculo a ser vencido,<br />

para se conseguir as riquezas da terra: “numa ilha chamam o ouro tuob, de caona em outra, de<br />

nocay numa terceira” 73 . Ou seja, Colombo aponta que o aprendizado da língua nativa<br />

facilitaria, em todos os sentidos (aspectos), a tarefa dos europeus nessas terras, porém nenhum<br />

conquistador, a não ser os que, por algum acaso do destino, passaram algum tempo<br />

convivendo entre os indígenas, aprenderam suas línguas. Está tarefa recaía geralmente sobre<br />

os desterrados, dos quais Caminha, especifica três funções:<br />

“A primeira, o aprendizado dos usos e dos costumes dos tupiniquins, reforça a segunda, a obtenção de<br />

informação sobre as riquezas das terras. Ambos os aspectos conduzem o conhecimento da América em<br />

direção a Europa, privilegiando por um lado à decifração do sujeito, e, por outro, a revelação do objeto.<br />

A pouco de curiosidade intelectual nestes encargos, e muito de domínio e de poder. Conhecer o ignoto,<br />

desmistificá-lo, torná-lo familiar, humanizá-lo. Os expedicionários pretendem ordenar o descoberto,<br />

planificar os contatos ulteriores com terras e seres desprovidos de seu mistério, eliminar os obstáculos<br />

do imprevisível: no intuito de simplificar o expansionismo futuro. Enquanto as duas primeiras funções<br />

conduzem a informação da colônia à metrópole (por intermédio das cartas ou na pessoa do viajante), a<br />

terceira inverte o percurso. Também chega o conhecimento da Europa para a América, porém elevado<br />

sob a forma da palavra da Santa Fé, que não aspira instruir e sim converter. Ironicamente, corresponde a<br />

escoria da sociedade lusitana a preparação do terreno religioso para a vinda dos clérigos. Disseminar a<br />

70 Christopher, Columbus. The “Diário” of Christopher Columbus’s First Voyage to America, 1492-1943.<br />

Transcrito e traduzido para o inglês por Oliver e Dunn e James E. Kelley, Jr. Normam. Oklahoma: University of<br />

Oklahoma Press, 1989, p. 243-245 Apud GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 30. Grifos e destaque do autor.<br />

71 LAS CASA, Bartolomé de. History of the Indies. trad. E ed. Ingl. Andrée Collard. Nova York: Harper & Row,<br />

1971, p. 50-52 Apud GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 135.<br />

72 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 31.<br />

73 COLOMBO, Cristóvão. Diário de a bordo. Madrid: Ed. L. Arranz, 1985, p. ? (13.01.1493) Apud GIUCCI,<br />

Guillermo. Op. cit., 116.<br />

17


palavra do Senhor é uma das três funções que o cronista atribui aos desterrados neste trópico perdido do<br />

Atlântico meridional” 74 .<br />

O estudo sistemático e a compilação das línguas nativas em gramáticas serão<br />

r<strong>ea</strong>lizados (sistematizado) pelos missionários das variadas ordens religiosas que vêm para a<br />

América para o trabalho de catequização. Alguns índios aprenderam à língua dos<br />

conquistadores, pelo convívio ou forçados, pois o próprio Colombo achava interessante ter<br />

alguém como interprete, por isso, em sua primeira viagem ele envia a Espanha alguns índios<br />

para que esses aprendessem o espanhol e nas próximas viagens servissem de interpretes.<br />

Dentre os indígenas que serviram a esse propósito, destacam-se: Malinche e Feliopillo que<br />

serviram de interpretes respectivamente a Hernán Cortez e Francisco Pizarro 75 .<br />

Ao mesmo tempo em que os nativos eram incompreendidos pelos europeus, eles eram<br />

subjugados pelos mesmos, através de cerimônias de posse que eram professadas o mais rápido<br />

possível e de preferência em frente a um grupo de nativos, pois estas cerimônias<br />

aparentemente eram dirigidas aos nativos, mas estes não compreendiam o que estava<br />

acontecendo, contudo os europeus geralmente assinalam a complacência e a aceitação por<br />

parte dos indígenas de seu domínio.<br />

“O domínio colonial sobre o novo mundo foi instaurado por meio de praticas basicamente cerimoniais –<br />

os colonizadores fincaram cruzes, estandartes, bandeiras e brasões; marcharam em procissões,<br />

apanharam um torrão do solo, mediram as estrelas, desenharam mapas, proferiram algumas palavras ou<br />

permaneceram em silêncio. Embora a força militar tenha efetivamente assegurado seu poder sobre o<br />

novo mundo, os europeus dos séculos XVI e XVII também acreditavam em seu direito de governar. E<br />

criaram para si próprios esses direitos empregando palavras e gestos significativos que algumas vezes<br />

precediam, outras vezes sucediam, e outras ainda acompanharam a conquista militar” 76 .<br />

Como referimos acima, esses rituais aparentemente se dirigiam aos nativos, mas o<br />

verdadeiro significado (sentido) dessas cerimônias de posse só tem sentido frente aos próprios<br />

europeus, ou seja, ela ratifica os domínios de um país europeu frente a outro país europeu e<br />

não frente aos nativos. A estes, o ritual de posse “converte-se em signo anunciador de guerras<br />

e morte, submissão e escravismo, despojo de riquezas e exploração de minas de metais<br />

preciosos” 77 além da fundação de cidades e de uma nascente ordem colonial.<br />

Cada país europeu tinha o seu cerimonial para ratificar seus domínios (sua posse)<br />

sobre as terras do Novo Mundo. Os ingleses ratificavam a posse das terras através do ato de<br />

74 GIUCCI, Guillermo. A Visão Inaugural do Brasil: a Terra de Vera Cruz. Revista Brasileira de História. São<br />

Paulo: ANPUH/CNPq, v.11, n° 21, p. 45-64, set.90/fev.91, p. 52.<br />

75 GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso… Op. cit., p. 119.<br />

76 SEED, Patrícia. Cerimônias de Posse na conquista européia do novo mundo (1492-1640). Tradução de<br />

Lenita R. Esteves. São Paulo: UNESP, 1999, p. 10.<br />

77 GIUCCI, Guilhermo. Op. cit., p. 18.<br />

18


cercar a terra, para nela cultivar uma horta/jardim e construir casas para habitação<br />

permanente, ao contrário do que, geralmente, faziam, portugueses e espanhóis, pois eles não<br />

vinham para a América com o objetivo de fixar morada, mas para negociar, coletar metais<br />

preciosos ou especiarias, ou seja, um enobrecimento, para depois retornarem aos seus<br />

reinos 78 . Os franceses ratificavam a sua posse das terras através de uma encenação t<strong>ea</strong>tral, na<br />

qual os nativos participavam como personagens secundários (e logicamente não entendiam o<br />

sentido de tal cerimônia) a fim de justificar seu domínio sobre as terras e sobre as pessoas que<br />

nela habitavam. Os holandeses embasavam o seu domínio (posse) através da confecção de<br />

mapas altamente detalhados, que eram resultado de observações e descrições detalhadas da<br />

região antes desconhecida. Os portugueses bas<strong>ea</strong>vam sua reinvidicação de posse sobre as<br />

novas terras através da descoberta, cujo significado era o de “encontrar um lugar em relação à<br />

latitude” 79 . Para tal fim os portugueses desenvolveram o que chamamos de astronomia náutica<br />

– herança dos estudiosos judeus e árabes –, que se bas<strong>ea</strong>va na observação das estrelas e não<br />

da terra em si, pois os navegantes portugueses estavam numa região, o Atlântico Sul, que<br />

nunca fora navegada anteriormente e precisavam descrever localidades que não existiam em<br />

mapas ou guias de navegação, por isso era preciso localizar-se através de objetos “mais<br />

estáveis e previsíveis que conheciam, ou seja, o Sol e as estrelas” 80 . Já os espanhóis<br />

reinvidicavam o domínio sobre as terras e os povos que nelas habitavam, através do discurso<br />

que se corporifica na figura do Requerimento (Requirimiento) que nada mais era do que um<br />

ultimato militar, cuja origem remonta a reconquista da península ibérica 81 . Este discurso<br />

deveria ser lido perante um escrivão público, o maior número de testemunhas possíveis (os<br />

próprios marinheiros constituíam essas testemunhas) e os nativos, sendo que ao final eram<br />

lavrados papéis que eram:<br />

“(…) cuidadosamente selados, preservados e levados, através de milhares de léguas oceânicas, a<br />

funcionários que por sua vez os contra-assinam e os processam de acordo com as normas legais; os<br />

documentos autenticados são um penhor da verdade da descoberta e, portanto, da legalidade da<br />

reinvidicação de posse” 82 .<br />

Basicamente esse documento requeria que os povos indígenas reconhecessem a Igreja<br />

católica como à entidade suprema do mundo, e dessa forma consentir as pregações dos padres<br />

78 KONING, Hans. Op. cit,. p. 75.<br />

79 SEDD, Patrícia. Op. cit., p. 235.<br />

80 Ibid., p. 155.<br />

81 O Requerimento não era a típica declaração de guerra ocidental ou católica nem a intimação islâmica ortodoxa<br />

para a rendição a Alá, mas uma forma nova, hibrida, que continha combinados em um único enunciado dois<br />

estilos, dois sistemas de crença. Ibid., p. 124.<br />

82 GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 81.<br />

19


e a submissão aos seus emissários, que nesse caso eram os próprios espanhóis. Uma promessa<br />

de que se eles se submeterem pacificamente, os soldados deixarão seus filhos e mulheres<br />

livres, caso contrário, se não fossem mortos durante a investida, eles seriam escravizados.<br />

Contudo, essa não era uma opção para os nativos, pois se não reconhecessem os termos dessa<br />

capitulação, os espanhóis se viam no direito legítimo de guerr<strong>ea</strong>r contra eles “onde e como<br />

fosse possível”, e ainda por cima, imputando a culpa das mortes e da devastação causadas por<br />

tal contenda nos próprios nativos. 83<br />

Para garantir seus domínios e ao mesmo tempo garantir a ordem de suas colônias, os<br />

países europeus mandaram ao Novo Mundo, “agentes do colonialismo”, que diferiam de<br />

função (cargo) em cada país, mas mantinham-se atrelados aos quesitos que embasavam a<br />

definição de posse (domínio) de cada país:<br />

“Os colonialistas ingleses mandaram um agrimensor com seus instrumentos para registrar<br />

cuidadosamente às fronteiras da terra. O primeiro representante do colonialismo português foi o<br />

astrônomo que tomou as medidas do céu; seu sucessor, o agente do tesouro coletando impostos, figura<br />

também central no colonialismo holandês. O emissário da autoridade colonial francesa teve a função de<br />

um diretor t<strong>ea</strong>tral, coreografando e encenando a aliança cerimonial dos franceses com os povos nativos.<br />

O primeiro enviado do colonialismo espanhol proclamou a superioridade do cristianismo; seu sucessor<br />

foi o encarregado do recens<strong>ea</strong>mento, listando nomes dos que deviam tributos ao governo espanhol” 84 .<br />

Percebe-se que cada país tinha um método diferente para garantir a posse de seus<br />

domínios ultramarinos (coloniais), sendo que esses métodos (ou cerimoniais) tinham a função<br />

de registrar perante os outros países europeus, e não dos nativos, o seu domínio (a posse)<br />

sobre aquela localidade (terras e gente). Contudo, cada nação – embora partilhassem uma<br />

plataforma tecnológica e ecológica comum 85 –, ao mesmo tempo em que achava seus métodos<br />

corretos e legais perante a lei, não reconhecia os métodos e o embasamento legal dos outros<br />

países, ou seja, não havia um entendimento comum entre os países europeus sobre como<br />

proceder, tanto no âmbito político (legalidade da posse) como no militar no Novo Mundo.<br />

Os desentendimentos sobre o modo de proceder no Novo Mundo, já que os países<br />

europeus não reconheciam mutuamente as formas de posse de cada país, geraram hostilidades<br />

entre os países e acusações mútuas sobre a prática colonial empregada, principalmente no que<br />

se refere ao tratamento dispensado ao elemento indígena.<br />

Uma das principais razões acerca desse desentendimento sobre os procedimentos de<br />

posse no Novo Mundo foi provocada pela questão semântica, ou em outros termos, o<br />

significado das palavras em uma determinada língua – no século XVI as línguas estavam se<br />

83 SEDD, Patricia. Op. cit., p. 103-104.<br />

84 Ibid., p. 260.<br />

85 Ibid., p. 11.<br />

20


constituindo dentro de “parâmetros próprios (independentes) para o que era correto e<br />

incorreto em termo de sintaxe e significado”. A primeira língua que atinge tal definição é a<br />

espanhola. Antonio de Nebrija lança a primeira gramática espanhola no ano de 1492 e diz “a<br />

rainha que a língua é a companheira do Império” 86 . Pois, por mais que uma palavra seja<br />

escrita da mesma forma em diferentes línguas, o seu significado pode ser semelhante ou<br />

completamente diferente, como é o casso do termo posse – possession em inglês; posse em<br />

português; posesión em espanhol; possesio em holandês; possession em francês –, cuja<br />

sutileza na diferença de seu significado, muitas vezes ignoradas ou interpretadas<br />

erron<strong>ea</strong>mente nas traduções alteravam o sentido do que se devia entender, sendo notório, que:<br />

“Cada código legal europeu definia o significado (e a história) da posse, do domínio, da autoridade e da<br />

soberania r<strong>ea</strong>l de forma diferente. As ações ou praticas simbólicas para a instituição da autoridade<br />

diferiam muitas vezes de forma flagrante de uma nação européia pra outra” 87 .<br />

Nas cerimônias de posse ocorre o encontro (contato) entre os europeus e os indígenas,<br />

sendo que concomitantemente, ao tomar posse das terras, os europeus subjugam as<br />

populações nativas. Um dos aspectos mais importantes desses encontros se refere que o<br />

“procedimento relativo ao outro não gira em torno de uma problemática ética, e sim da<br />

efetividade das estratégias de dominação” 88 sobre o outro, ou seja, o indígena, sendo que o<br />

modo como o indígena é visto, interfere no modo de ação que os europeus tomarão.<br />

Nos contatos iniciais os indígenas são descritos pelos europeus como pessoas de uma<br />

imensa simplicidade, muito gentis, inocentes, pois não sabem fazer mal algum, medrosos,<br />

pois se um dos europeus quisesse se divertir ele poderia sozinho fazer fugir cem deles e aptos<br />

a aprender a língua européia e a religião cristã, pois não possuíam nenhuma seita e não eram<br />

idolatras, além de saberem que existe um Deus no Céu. 89 Porém, essa concepção edenizante é<br />

logo deixada de lado por uma mais r<strong>ea</strong>lista, quando os europeus acham provas da existência<br />

da prática antropofágica entre os indígenas, a qual consideravam como uma prática indigna de<br />

um homem cristão e civilizado e por isso os indígenas passaram a ser considerados como<br />

inferiores aos europeus. Dessa forma era justificado ao mesmo tempo o expansionismo<br />

europeu, que se personifica na própria expressão que Colombo utilizava para o seu<br />

empreendimento: “La empresa de las Índias” – “nome perfeito, pois sua força motora<br />

consistia na procura de lucros” 90 , que poderiam se dar através dos metais preciosos, do<br />

86 Ibid., p. 16.<br />

87 Ibid., p. 19.<br />

88 GIUCCI, Guillermo. A Visão Inaugural do Brasil… Op. cit., p. 59.<br />

89 MAHN-LOT, Marianne. Op. cit., p. 57.<br />

90 KONING, Hans. Op. cit., p. 9.<br />

21


comércio das especiarias ou da própria venda dos escravos – e a tarefa civilizadora – a qual<br />

estava ligada diretamente ao direito da posse das terras – a expansão do cristianismo.<br />

Com isso, os índios passaram a ser diferenciados pelos europeus em “índios inocentes,<br />

cristão em potencial, e índios idolatras, praticantes do canibalismo; ou índios pacíficos (que se<br />

submetem ao poder deles) e índios belicosos, que merecem por isso ser punidos” 91 , contudo<br />

essa diferenciação entre os indígenas, em duas categorias, conduzia a lógica de que aos<br />

indígenas não cristãos só restaria à escravidão, pois não existia outra (terceira) possibilidade.<br />

Dessa forma, as atrocidades perpetradas pelos europeus, especialmente, os espanhóis,<br />

são justificáveis, pois de certa forma, se apresentam como “fatores subordinados do progresso<br />

espiritual da humanidade”, ou seja, as matanças e a violência utilizadas sobre o elemento<br />

indígena, mesmo, sendo essa postura criticada pelos próprios europeus, é “implicitamente<br />

justificada na medida em que simbolizava a implantação do reino cristão”. 92<br />

Dentre as inúmeras atrocidades cometidas contra os indígenas, exporemos o modo<br />

como alguns conquistadores cristãos agiam sem o mínimo de escrúpulos e com grande<br />

crueldade com as crianças:<br />

“Alguns cristãos encontraram uma índia, que trazia nos braços uma criança que estava amamentando; e<br />

como o cão que os acompanhava tinha fome, arrancaram à criança dos braços da mãe e, viva, jogaramna<br />

ao cão, que se pos a despedaçá-la diante da mãe (…). Quando havia entre os prisioneiros mulheres<br />

recém-paridas, por pouco que os recém-nascidos corassem pegavam-nos pelas pernas e matavam-nos<br />

contra as rochas ou jogavam-nos no mato para que acabassem de morrer” 93 .<br />

Esses atos violentos, desfechados contra os indígenas, em grande parte dos casos, se<br />

relacionam com a avidez pelo ouro (ou metais e pedras preciosas) demonstrada pelos<br />

europeus desde o primeiro contato que tiveram com a América, mesmo que ela fosse<br />

id<strong>ea</strong>lizada, como Colombo o fazia ao dizer em carta ao Papa (1502) que dentro de algum<br />

tempo, a empresa das Índias possibilitará a preparação e o pagamento de um exército de<br />

cinqüenta mil infantes e cinco mil cavaleiros para libertar a Terra Santa dos infiéis 94 . Na Ilha<br />

de Hispaniola, os índios deveriam pagar um tributo em ouro aos espanhóis e aqueles que não<br />

o pagassem teriam suas mãos cortadas fora – essa prática está retratada em uma gravura,<br />

onde: “os índios aparecem cambal<strong>ea</strong>ndo, olhando com surpresa para tocos de braços de onde<br />

jorrava sangue” 95 . Essa febre por ouro é perfeitamente sintetizada nas palavras de Cortés<br />

quando este diz, aos Astecas, que os espanhóis possuem uma doença que só pode ser curada<br />

91 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 44.<br />

92 GIUCCI, Guillermo. Viajantes do Maravilhoso… Op. cit., p. 141-142.<br />

93 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 136-137.<br />

94 MAHN-LOT, Marianne. Op. cit., p. 103.<br />

95 KONING, Hans. Op. cit., p. 72.<br />

22


com ouro. Há uma gravura que representa um grupo de índios punindo um conquistador<br />

espanhol, por sua insaciável sede de ouro, derramando ouro derretido por sua goela abaixo 96 .<br />

A partir dessa exposição, pode-se dizer que o maravilhamento que os europeus tiveram<br />

ao entrar em contato com o Novo Mundo e seus habitantes, provocou “tanto o fracasso das<br />

palavras quanto o fracasso da visão, pois o ver não garante que o visto r<strong>ea</strong>lmente exista” 97 .<br />

Desse modo, os europeus, para descreverem o(s) outro(s) (que se corporifica na figura dos<br />

indígenas), tiveram de fazer uso de sua estrutura intelectual, a qual estava moldada pela<br />

bagagem cultural que possuíam. Ou seja, esse outro e seu entorno foram descritos com base<br />

na similitude das idéias, linguagem e imagens preexistentes 98 – nas pessoas que fizeram à<br />

descrição –, as quais se referem aos inúmeros relatos sobre as maravilhas que existiam no<br />

Oriente. Então se o maravilhoso age com base na similitude, ele possuí um limite para as<br />

descrições, pois nem sempre o que se sabe e o que se vai ver – numa região desconhecida<br />

como era o continente americano nesta época – é passível de ser explicado a partir de uma<br />

comparação, mesmo que essa comparação distorça a r<strong>ea</strong>lidade que se apresenta frente aos<br />

olhos do cronista. Ao ultrapassar o limite que esse maravilhoso oferece para a descrição do<br />

que se vê em relação ao que se sabe, passa-se a “uma sensação de irr<strong>ea</strong>lidade onírica” 99 , como<br />

a que ocorreu aos espanhóis que vislumbraram a capital asteca – Tenotchtitlán – pela primeira<br />

vez, pois nunca tinham imaginado achar algo dessa magnitude, mas também nunca tinham<br />

visto algo semelhante, para que por similitude pudessem a descrever como algo conhecido.<br />

Desse modo, a hermenêutica do outro (o índio) é construída pelos viajantes europeus<br />

que por aqui estiveram através das crônicas que eles escreveram, mas como eles fizeram para<br />

que os outros (europeus) acreditassem na novidade que eles presenciaram/viram e<br />

descreveram em seus relatos, ou melhor, como fazer as pessoas acreditarem:<br />

“(…) no que só pode ser visto a duas mil léguas do local onde vivem: coisas jamais conhecidas (e muito<br />

menos contadas por escrito) pelos Antigos; coisas tão fabulosas que a própria experiência mal consegue<br />

imprimi-las no entendimento daqueles mesmos que as presenciaram?” 100 .<br />

Simplesmente, esses <strong>cronistas</strong> escrevem seus relatos de modo “que nada permaneça<br />

estranho” 101 , ou seja, os fatos ou as coisas raras, singulares e estranhas são descritas de modo<br />

que elas podem ser reconhecidas, pelas pessoas que vão ler esse relato, a partir do que essas<br />

96<br />

GREENBLATT, Stephen. Op. cit., p. 89 .<br />

97<br />

Ibid., p. 174.<br />

98<br />

Ibid., p. 176.<br />

99<br />

Ibid., p. 174.<br />

100<br />

Ibid., p. 39.<br />

101<br />

CERTAU, Michel de. ETNO-GRAFIA: A oralidade ou o espaço do outro: Léry. In: A Escrita da História.<br />

Tradução de Maria de Lourdes Meneses. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 211-242, p. 231.<br />

23


pessoas já sabem/conhecem. Desse modo, o mundo que se apresentava totalmente<br />

desconhecido é reduzido a um mundo que as pessoas podem reconhecer, pois a estranheza<br />

que a descrição dos novos cenários e de seus habitantes (e seus costumes) causaria, é<br />

transformada em familiaridade através da invocação do maravilhoso medieval como filtro da<br />

r<strong>ea</strong>lidade do que se vislumbra. Isso torna essa r<strong>ea</strong>lidade, inicialmente estranha, numa<br />

r<strong>ea</strong>lidade assimilável para a r<strong>ea</strong>lidade européia, ou seja, o maravilhoso serve para transformar<br />

a exterioridade em interioridade 102 , ou em outras palavras, o estranho em familiar.<br />

Ao mesmo tempo, esses relatos mantêm uma distinção entre o Selvagem (índio) e o<br />

Civilizado (europeu) por termos que se opõem: Ao Selvagem são referidos os termos: nudez,<br />

(festa) ornamento, passatempos, lazer, festa, unanimidade, proximidade, coesão, prazer; ao<br />

Civilizado são dirigidos os termos: vestimenta, enfeite (coqueteira), trabalho, profissão,<br />

divisão, distância, ética 103 .<br />

102 Ibid., p. 221.<br />

103 Ibid., p. 227-228.<br />

24


Cronistas Leigos e Cronistas Religiosos: Visões sobre a antropofagia indígena<br />

no decorrer do processo de colonização da América portuguesa no século XVI<br />

Os viajantes (<strong>cronistas</strong>) europeus do século XVI que registram por escrito suas<br />

aventuras (ou peripécias) no Novo Mundo, o fizeram de várias formas, mas quer sob a forma<br />

de cartas, diários, tratados, crônicas, esses relatos trazem além da aventura que esses viajantes<br />

empreenderam no Novo Mundo, as práticas e os costumes das mais diversas etnias indígenas,<br />

e dentre essas práticas se encontra a antropofágica. Esses autores escreveram suas obras, não<br />

apenas com a finalidade de relatar a sua aventura no Novo Mundo, mas também para informar<br />

aos outros europeus, que não podiam vir para estas paragens, o deslumbrante e exuberante<br />

Mundo Novo que existia nos Trópicos, além dos exóticos, horrendos e repugnantes costumes<br />

praticados pelos nativos.<br />

A prática antropofagia ou o ato de comer carne humana – designado de canibalismo –<br />

foi junto da poligamia e da nudez – este é o aspecto que primeiro chamou a atenção dos<br />

europeus, pois a falta de roupas na cultura indígena contrastava com a sua cultura, onde o<br />

“uso de roupas pesadas que recobriam todo o corpo era a regra social e moral (…)” 1 –, um dos<br />

costumes praticados por algumas civilizações americanas que chocaram e horrorizaram os<br />

europeus. Contudo, sabemos que o canibalismo por si só é impossível, pois ninguém comeu<br />

carne humana simplesmente para saciar seu apetite ou se deliciar com esta iguaria, “mas só os<br />

ingênuos deduzem que por isso ele não é r<strong>ea</strong>l” 2 . Ao contrário, a antropofagia era um elemento<br />

integrante e central da cultura de alguns povos ameríndios 3 . Deste fato parece não haver<br />

dúvida, pois são muitos os registros deixados por contemporâneos – devemos chamá-los de<br />

<strong>cronistas</strong> e podemos dividi-los em duas categorias ou grupos. Num grupo teríamos os<br />

<strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong> que pertenciam às ordens religiosas que vieram ao Novo Mundo, tais<br />

como os jesuítas, franciscanos e capuchinhos. O outro grupo é constituído de <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong><br />

de diferentes nacionalidades que se aventuravam no Novo Mundo, desde os primeiros<br />

contatos entre os europeus com os nativos americanos. Dentre esses registros temos os dos<br />

<strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong>, J<strong>ea</strong>n de Lery (francês), Hans Staden (alemão), Anthony Knivet (inglês),<br />

Gaspar Barléu (holandês) entre outros, por parte dos <strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong> temos os relatos do<br />

Pe. Manuel da Nóbrega (jesuíta), do Pe. José de Anchieta (jesuíta), do Frei André Thevet<br />

1 MESGRAVIS, Laima. O Brasil nos séculos XVI e XVII. 3ª. ed. São Paulo: Contexto, 1997, p. 29.<br />

2 CASTRO, Eduardo B. Viveiros de. Os Deuses canibais – A morte e o destino da alma entre os Araweté.<br />

Revista de Antropologia, São Paulo: Edusp, v. 27/28, p. 55-89, 1984/1985, p. 83.<br />

3 Dentre as diversas tribos (etnias) ameríndias que praticavam à antropofagia, as que aparecem com mais<br />

freqüência nos relatos dos <strong>cronistas</strong> – tanto <strong>leigos</strong> quanto <strong>religiosos</strong> – são as: tupi, guarani e caribe. Sendo que à<br />

prática antropofágica tupi e guarani apresentam grande similaridade, mas não são iguais.<br />

25


(franciscano), do Frei Yves D’Evreux (capuchinho), do Frei Claude D’Abbeville<br />

(capuchinho), entre inúmeros outros.<br />

No que diz respeito a esses relatos, deve-se levar em consideração três aspectos: em<br />

primeiro lugar, que esses <strong>cronistas</strong> do século XVI – tanto os <strong>leigos</strong> como os <strong>religiosos</strong> – se<br />

inscrevem no contexto da conquista/colonização do Novo Mundo, ou seja, eles<br />

descrevem/narram os fatos contidos em suas crônicas – entre esses fatos se encontra a questão<br />

da antropofagia indígena – sob o viés do europeu como elemento civilizador (levando em<br />

consideração o seu padrão cultural e cristão), em segundo lugar, deve-se levar em conta, que a<br />

maioria desses <strong>cronistas</strong> viram/presenciaram a antropofagia indígena nas mais diversas<br />

regiões do continente americano – neste trabalho nos interessa a região da América<br />

portuguesa (Brasil) –, mas não escreveram suas obras aqui, mas na Europa, com exceção das<br />

cartas dos jesuítas. Contudo é preciso ressaltar que embora tenham escrito (em grande parte)<br />

suas obras na Europa e não aqui no Novo Mundo, estes <strong>cronistas</strong> seiscentistas escreveram-nas<br />

sob o impacto do contato com o outro – que até então tinha sua existência ignorada – (choque<br />

cultural). Sendo que este outro se materializa na figura do indígena e suas diversas<br />

sociedades. E em terceiro lugar, que esse contato altera e fundamenta o pensamento<br />

(mentalidade) europeu, principalmente, no que diz respeito às políticas de colonização da<br />

América e o tratamento que é dispensado à questão indígena, ou seja, esses escritos:<br />

“(…) correspondia ao gosto dos leitores amantes de histórias curiosas e aventuras, cuja autenticidade<br />

não os preocupava. Correspondia também aos interesses dos colonos e a razão estatal, à busca de<br />

argumentos a favor da escravidão dos índios e aos interesses da igreja que buscava razoes para sua<br />

missão civilizatória” 4 .<br />

Outro ponto importante que se deve levar em conta, em relação a esses relatos, é a<br />

questão da procedência, ou seja, a origem (nacionalidade) das pessoas que os escreveram,<br />

pois nesse período do século XVI:<br />

“Havia profundas diferenças entre as culturas nacionais e as religiões dos diversos viajantes europeus,<br />

as quais, em definitivo, moldaram suas percepções e representações. (…) Mas não se trata apenas de<br />

polêmica: católicos e protestantes tendiam a fazer diferentes perguntas, reparar em coisas diferentes,<br />

modelar diferentes imagens” 5 .<br />

Contudo, tais diferenças, inicialmente não causaram uma grande diferença de<br />

interpretação/descrição nesses relatos, pois o “capital mimético europeu embora distinto e<br />

4 FLEISCHMANN, Ulrich, ASSUNÇÃO, Matthias Rohrig & ZIEBELL-WENDT, Zinka. Os Tupinambás:<br />

R<strong>ea</strong>lidade e Ficção nos Relatos Quinhentistas. Revista Brasileira de História, São Paulo: ANPUH/CNPq, v. 11,<br />

n. 21, p. 125-145, set.90/fev.91, p. 139.<br />

5 GREENBLATT, Stephen. Possessões Maravilhosas: o deslumbramento do Novo Mundo. Tradução: Gilson<br />

César Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 1996 p. 24.<br />

26


internamente competitivo, facilmente saltou sobre as fronteiras nacionais e religiosas” 6 .<br />

Porém, com a finalização da conquista e o início da colonização efetiva do Novo Mundo – o<br />

que vai gerar desavenças e hostilidades entre os países europeus –, surgiram:<br />

“(…) algumas divisões muito claras, que não apenas assinalaram a distinção entre católicos e<br />

protestantes como fragmentaram cada um desses grupos. Desde então foi possível distinguir<br />

confortavelmente entre franciscanos e dominicanos, calvinistas e luteranos em suas representações do<br />

Novo Mundo (…) com referência as diferenças bastante consideráveis entre culturas nacionais, classes<br />

sociais e profissões” 7 .<br />

Ou seja, não basta apenas rotularmos esses <strong>cronistas</strong> de acordo com a sua religião, mas<br />

também, deve-se levar em conta a nacionalidade desses <strong>cronistas</strong>, pois ao rotularmos um<br />

cronista de protestante, devemos levar em conta que esse termo cobre um conjunto diverso de<br />

pessoas de vários grupos nacionais. Entre os protestantes havia holandeses (calvinistas e<br />

anabatistas), franceses (huguenotes) e ingleses (puritanos, anglicanos e quacres). Dentro do<br />

rotulo católico encontramos franceses, espanhóis e portugueses, onde cada um desses grupos<br />

tinha concepções diferentes em relação ao seu direito sobre o Novo Mundo, aos textos e<br />

fontes de suas legitimidade (como no estabelecimento de impérios colônias). 8 Ainda temos<br />

uma divisão entre as várias ordens religiosas que vieram ao Novo Mundo, como franciscanos,<br />

dominicanos, jesuítas entre outras ordens religiosas. Contudo, embora essas obras fossem<br />

escritas por pessoas de variada procedência – tanto religiosa como nacional – elas possuem<br />

uma estrutura literária, até certo pondo comum, sendo que nessas obras:<br />

“(…) a anedota, a aventura e a fantasia se misturam com as informações sobre a terra e os<br />

acontecimentos históricos, gerando narrativas com as quais o leitor não consegue deixar de se envolver<br />

(…). O exemplo mais evidente é a obra de Hans Staden, repleta de peripécias e de episódios<br />

emocionantes, em que a vida do protagonista corre perigo. Porém, até numa carta de Anchieta (Ao<br />

padre geral, 1/6/1560) podem-se encontrar, lado a lado, a expulsão dos franceses da Guanabara e as<br />

aventuras do padre para salvar índios cristianizados que caíram prisioneiros de uma tribo antropófaga” 9 .<br />

Nesta literatura, temos que a descoberta e a conquista do Novo Mundo, junto de seu<br />

período inicial de colonização, fizeram ressurgir entre os europeus, em especial pelos relatos<br />

dos primeiros viajantes que aqui aportaram, o mito idílico do paraíso perdido (terrestre), pois<br />

achavam que um verdadeiro Éden tinha sido encontrado, pois a América aparece nesses<br />

relatos como uma terra abundante, livre das doenças que grassavam na Europa. Contudo, no<br />

correr do século XVI, essa visão idílica do Novo Mundo foi sendo deixada de lado por uma<br />

6 Ibid., p. 25.<br />

7 Ibidem.<br />

8 SEED, Patrícia. Cerimônias de Posse na conquista européia do novo mundo (1492-1640). Tradução de<br />

Lenita R. Esteves. São Paulo: UNESP, 1999, p. 256.<br />

9 OLIVEIRA. Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio. Cronistas do Descobrimento. São Paulo: Ática,<br />

1999, p. 10.<br />

27


visão mais r<strong>ea</strong>lista, que se configurava na visão de um continente hostil habitado por<br />

guerreiros selvagens e canibais, embrenhados na selva tropical, a espreita dos soldados e<br />

missionários para se deliciarem com suas carnes, principalmente por parte dos portugueses,<br />

pois, embora também participassem dessa sedução universal, os motivos para tal fim não se<br />

repetiram com a mesma intensidade do que em outros ambientes, principalmente o espanhol,<br />

ou seja, os portugueses não tiveram os mesmos motivos que os espanhóis para verem<br />

eldorados, amazonas e o próprio paraíso em várias partes, pois já se encontravam desiludidos<br />

com a experiência que acumularam na África e no Oriente (r<strong>ea</strong>lismo pedestre), ou seja, para<br />

os portugueses esses mitos edênicos tiveram uma “atuação plausível” ou em outros termos<br />

eles se enquadraram nas dimensões do verossímil 10 .<br />

Outro motivo da perca desta visão idílica do Novo Mundo foi o choque cultural<br />

provocado pela presença de povos até então desconhecidos pelos europeus. Então temos que<br />

no início do século XVI, os índios da América estão ali, bem presentes, mas deles nada se<br />

sabe, ainda que, como é de se esperar, sejam projetadas sobre os seres recentemente<br />

descobertos imagens e idéias relacionadas a outras populações distantes, ou seja, as visões que<br />

os europeus tiveram dos indígenas, oscilou entre o inferno bestial e o paraíso terrestre, sendo<br />

sua imagem representada ao sabor dos interesses e das fantasias que presidiram o período da<br />

descoberta, da conquista e o período inicial da colonização do Novo Mundo 11 .<br />

“A primeira r<strong>ea</strong>ção espontân<strong>ea</strong>, em relação ao estrangeiro é imaginá-lo inferior, porque diferente de nós:<br />

não chega nem a ser homem, e, se for homem, é um bárbaro inferior; se não fala nossa língua, é porque<br />

não fala língua nenhuma, não sabe falar” 12 .<br />

Este fato, a descoberta de uma parcela da humanidade até então ignorada, provocou<br />

nos europeus, da época dos descobrimentos, uma questão de ordem intelectual e prática que<br />

diz respeito ao problema até hoje controverso da origem do homem americano – foram<br />

formuladas às mais desencontradas e extravagantes hipóteses para se explicar a origem do<br />

homem americano. Essa questão era de ordem intelectual porque a existência desses povos –<br />

erron<strong>ea</strong>mente designados de indígenas – desafiava os europeus a encontrar para eles um lugar<br />

em seu sistema tradicional de explicação do mundo, e de ordem prática porque, caso se<br />

mostrasse que esses povos tivessem uma origem independente de qualquer contato com o<br />

Velho Mundo, equivaleria a defini-los como não-homens, por não serem descendentes de<br />

10 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: Os motivos edênicos no descobrimento e colonização do<br />

Brasil. 2ª. ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional: Edusp, 1969, p. 238.<br />

11 GRUPIONI, Luis Donisete B. Alteridade: Figurações do Outro. In: GRUPIONI, Luis Donisete B. (Org.).<br />

Índios do Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p. 233.<br />

12 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: A questão do outro. 3ª. edição brasileira. Tradução: B<strong>ea</strong>triz<br />

Perrone Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 73.<br />

28


Adão, pois a narrativa bíblica era então a única explicação que os europeus possuíam para a<br />

origem dos homens. Se fossem definidos como não-homens, os europeus se viam no direito<br />

de submetê-los a todos os tipos de exploração, da qual não escaparam, mesmo depois da<br />

intervenção do Papa Paulo III, que através da bula papal Sublimis Dei, no ano de 1537,<br />

declarou que os nativos americanos eram “veri homines, fidei catholicae et sacramentorum<br />

capaces” 13 , ou seja, verdadeiros homens que possuíam alma e eram capazes de receber a<br />

doutrina cristã. 14<br />

Contudo, a consciência (concepção) européia de que os índios são tão diferentes a<br />

ponto de assemelhar-se mais a animais do que ao gênero humano é largamente reiterada nos<br />

escritos da época, com podemos observar no trecho abaixo extraído da carta que Villegagnon<br />

enviou a Calvino sobre os tupinambás do Brasil:<br />

“O país era completamente inculto, sem casas, sem nenhuma fonte de cer<strong>ea</strong>is. Só havia gente selvagem,<br />

afastados de toda cultura e humanidade; diferenciados de nós pelos costumes e regras de vida, sem<br />

religião, sem conhecimento nenhum do que seja a honra, a virtude, incapazes de distinguir o justo do<br />

injusto, tanto que me veio a dúvida se tínhamos encontrado feras 15 revestidas de aparência humana” 16 .<br />

Os europeus ao qualificarem os indígenas como selvagens e bárbaros – o conceito de<br />

bárbaro que é utilizado para rotular algumas tribos indígenas, não possuí seu significado<br />

original (aristotélico), pois sofreu uma pseudometamorfose na transmigração para o Novo<br />

Mundo, ou seja, adaptou-se aos interesses: dos padres para legitimar a catequização e dos<br />

colonos para legitimar a escravidão indígena 17 –, além de “agirem na impossibilidade de<br />

julgá-los por outro critério que não seja o prisma de sua própria cultura” 18 , criaram<br />

13<br />

SCHADEN, Egon. O estudo do índio brasileiro – Ontem e Hoje. Revista de História, São Paulo: Edusp, v. 5,<br />

n. 12, p. 385-401, out./dez, 1952, p. 386.<br />

14<br />

MELATTI, Julio César. Índios do Brasil. 4ª. edição. São Paulo: HUCITEC, 1983, p. 5-7.<br />

15<br />

A noção da ferocidade animal do gentio e tudo o que ela implica, inclusive a duvidosa natureza humana do<br />

índio, nasceu, logo no inicio do século XVI, em parte por causa de r<strong>ea</strong>ções agressivas – ou, mas objetivamente,<br />

defensivas – contra o colono que viera perturbar, com a sua presença e os seus interesses, o equilíbrio da vida<br />

tribal, procurando explorar o silvícola a pô-lo a seu serviço, muito mais pela força do que pela persuasão, e em<br />

parte como decorrência da estupefação ante o que, na maneira de ser e de viver do índio aparecia aos olhos do<br />

europeu como demasiado grotesco e repugnante para coadunar-se com a sua concepção de um ente dotado de<br />

discernimento e de juízo moral (…). Reciprocamente, e bem sabemos porquê, o índio tinha o branco por<br />

selvagem feroz. Caso não pudesse ser amansado, outra solução não havia senão trucidá-lo. SCHADEN, Egon. O<br />

Índio brasileiro: Imagem e r<strong>ea</strong>lidade. Revista de Historia. São Paulo: Edusp, v. 55, n. 110, p. 321-346,<br />

abril/junho 1977, p. 323.<br />

16<br />

VILLEGAGNON. Carta de Villegagnon a Calvino. 31 de março de 1557. In: Documentário – Os Franceses na<br />

Guanabara (Correspondência da Franca Antártica). Tradução de Yves Bruand. Revista de História, São Paulo:<br />

Edusp, v.28, n° 57/64, p. 209-231, 1964, p.223.<br />

17<br />

RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização: A representação do Índio de Caminha a Vieira. Rio de<br />

Janeiro: Zahar, 1996, p. 17.<br />

18<br />

SCHADEN, Egon. O estudo do índio brasileiro – Ontem e Hoje. Op. cit., p. 387.<br />

29


estereótipos 19 dos mesmos, sendo que dois desses estereótipos se configuram em uma<br />

sinédoque, ou seja, a prática de nom<strong>ea</strong>r ou conferir uma identidade ao todo através do<br />

conhecimento de uma parte deste todo.<br />

O primeiro se refere ao nome genérico que foi conferido a todas as civilizações<br />

americanas por Cristóvão Colombo que achava que tinha chegado às Índias, mas na verdade<br />

chegou ao Caribe e nomeou a população que lá encontrou de índios (habitantes das Índias):<br />

“(…) a primeira roupa de que a América se travestiu, aos olhos do europeu, foi dada por Colombo<br />

através da palavra Índias. Colombo pensou ter chegado às Índias, e, portanto, tudo o que viu<br />

correspondia a um indicio capaz de comprovar sua hipótese. (…) O seu imaginário era regido por<br />

inúmeras informações, trazidas por viajantes [bagagem cultural] (como Marco Pólo, por exemplo) que<br />

gostavam de contar suas façanhas, sem que os interlocutores estivessem interessados em pedir provas.<br />

O prazer de produzir uma narração, de acordo com as suas expectativas, construídas bem antes da<br />

viagem, era superior a sua capacidade de descrever um continente desconhecido. Neste sentido,<br />

Colombo vai estruturar em seu diário não apenas o seu sonho, mas principalmente, um sonho italiano,<br />

um sonho europeu intercalado de informações retiradas de cartas elaboradas por navegadores<br />

experientes e observações astronômicas recolhidas em viagens. A r<strong>ea</strong>lidade e a fantasia se<br />

entrelaçam.” 20 .<br />

Sendo que esta designação permaneceu inerente aos nativos americanos, mesmo após<br />

os europeus se darem conta de que aqui eram novas terras. Contudo esta designação serviu<br />

aos interesses da colonização do Novo Mundo, pois:<br />

“(…) os europeus utilizavam este termo para designaram todas as civilizações americanas desde o norte<br />

ao sul do continente, mesmo que tais sociedades diferissem umas das outras em inúmeros aspectos, ou<br />

seja, civilizações tão distintas quanto Incas e Tupinambás – que falavam línguas diferentes, que tinham<br />

os costumes mais diversos, sendo os primeiros construtores de estradas e cidades, vivendo num império<br />

administrado por um corpo de burocratas e organizado em camadas sociais hierarquizadas, enquanto os<br />

segundos viviam em aldeias de casas de palha, numa sociedade sem camadas sociais em que a maior<br />

unidade política era provavelmente a aldeia – eram incluídas na mesma categoria: índios. Ou seja, não<br />

há nada em comum entre as inúmeras civilizações americanas, a não ser o fato de não serem européias,<br />

que justificasse que todas elas fossem denominadas por um único termo. Contudo para os europeus isso<br />

foi muito fácil, pois para eles, índios eram todos aqueles que habitavam o Novo Mundo” 21 .<br />

Sob a perspectiva européia, na América portuguesa, à complexidade cultural do<br />

gentio, num primeiro momento, a natureza do contato é pautada, por conclusões tais como,<br />

“(...) a língua de que usam toda pela costa, é uma: ainda que certos vocábulos difere nalgumas<br />

partes; mas não de maneira que se deixem uns aos outros de entender: e isto até a altura de<br />

vinte e sete graus, que daí por diante é outra gentilidade, (…) que falam já outra língua<br />

19 Egon Schaden define estereótipos como: “produto da mentalidade de uma época, de uma situação histórica<br />

peculiar, dos representantes de uma categoria social ou de um grupo cultural, uma vez incorporado a um sistema<br />

de idéias, convertem-se em fatores que condicionam e, até certo ponto, determinam as atitudes e o<br />

comportamento dos membros das respectivas etnias”. SCHADEN, Egon. O Índio brasileiro: Imagem e r<strong>ea</strong>lidade.<br />

Op. cit., p. 321.<br />

20 SILVA, Janice Theodoro da. Colombo: entre a Experiência e a Imaginação. Revista de História Brasileira.<br />

São Paulo: ANPUH/CNPq, v. 11, n. 21, p. 27-44, set.90/fev.91, p. 33-34.<br />

21 MELATTI, Julio César. Op. cit., p. 25-27.<br />

30


diferente. (...) carece de três letras, convém a saber, não se acha nela F nem L, nem R, cousa<br />

digna de espanto porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei (...)” 22 . Esses povos da costa<br />

ficaram conhecidos como Tupi(s). Mesmo não havendo uma unidade política rígida entre<br />

eles, havendo grande diversidade lingüística e guerra constante entre aldeias.<br />

Ao longo do progressivo crescimento do contato com os gentis, os portugueses, foram<br />

percebendo que mais ao interior, havia um povo que não falava tupi. Os portugueses os<br />

denominaram Tapuias, índios de língua travada 23 , cuja cultura material, era menos complexa<br />

que a cultura material Tupi. Essa denominação de tapuias não partiu dos portugueses, mas dos<br />

próprios índios tupi, pois em sua língua tapuia significa bárbaro (escravo).<br />

Daí se desenvolveu o binômio Tupi-Tapuia. Muito embora levasse em conta, critérios,<br />

lingüísticos, materiais e históricos, essa classificação, é de certa forma arbitrária, para os<br />

parâmetros atuais, pois a maioria, dos povos Tapuia, pertence ao tronco macro-jê, mas há<br />

diversos povos não jê, que eram considerados tapuias pelos portugueses – “A designação dos<br />

grupos étnicos é, sem duvida, bastante problemática e controvertida, sobretudo se levarmos<br />

em conta as dificuldades dos portugueses em identificar e compreender a etimologia<br />

indígena” 24 . Esse binômio também ordenou a percepção européia, nesse caso mais<br />

especificamente dos portugueses, do mosaico indígena que se apresentava em terras<br />

brasílicas, o que mascarou uma complexidade cultural que continua até os dias de hoje, a<br />

desafiar etno-historiadores e lingüistas, pois existiam no Brasil, na época da chegada dos<br />

portugueses, pelo menos quarenta famílias distintas, pertencentes em sua maioria aos três<br />

principais troncos lingüísticos: tupi-guarani, macro-jê e arawak. 25<br />

“Em princípio, o indígena é visto como um grupo homogêneo, sem diferenças significativas quer<br />

quanto à ‘raça’, cultura, origem ou qualquer outro traço distintivo. Portanto, não há ‘índios’ não sentido<br />

de uma pluralidade e especificidades culturais ou ‘raciais’ ou históricas. Quando se fala de ‘índio’, o<br />

plural é relativo a uma coleção de indivíduos que podem entre si nom<strong>ea</strong>r-se de maneira distinta, mas<br />

que, para o português, é, no essencial, uma mesma e única r<strong>ea</strong>lidade. O colonizador português – ou,<br />

pelo menos o catequista – tende, coerentemente, a nominar os locais por um coletivo: gentio. A visão do<br />

gentio como incontável e indiferenciada coleção de indivíduos não leva a uma percepção de<br />

individualidades, de pessoas humanas singulares entre os indígenas; e uma coleção de indivíduos sem<br />

nomes, sem diferenças: são apenas ‘índios’, algarismos mais ou menos próximos e/ou perigosos. Há,<br />

22 GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil e História da Província de Santa Cruz. Rio<br />

de Janeiro: Edição do Anuário do Brasil, 1924, p. 124-125.<br />

23 MONTEIRO, John Manuel. As populações indígenas do litoral brasileiro no século XVI. In: DIAS, Jill (Org.).<br />

Brasil nas vésperas do mundo moderno. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos<br />

Descobrimentos portugueses, 1992, p. 121-136, p. 122.<br />

24 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais<br />

do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003, p. 48.<br />

25 MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p. 122-123.<br />

31


então, um movimento duplo em direção a homogeneização: apagam-se as diferenças culturais tribais e<br />

as diferenças inter-individuais” 26 .<br />

A organização social, básica, era a aldeia – esta não se constituía em um povoado fixo<br />

(permanente), pois por diversos motivos, dentre eles o desgaste do solo, a diminuição das<br />

reservas de caça, a atração de um líder carismático, uma disputa intera ou a morte de um<br />

chefe, os índios após alguns anos, geralmente de dois a três, abandonam a aldeia e construíam<br />

uma nova em outro lugar 27 . Em termos gerais, o modo de vida e as trocas eram regulados<br />

pela reciprocidade e redistribuição. A divisão do trabalho era marcada pela diferenciação<br />

entre os sexos. Os homens caçavam, pescavam, e eram responsáveis pela atividade guerreira.<br />

As mulheres estavam destinadas à agricultura, o preparo dos alimentos e ao artesanato, sendo<br />

que a distribuição dessas e de outras tarefas dentro dessa diferenciação por sexo eram<br />

distribuídas de acordo com a idade dos indivíduos.<br />

Entre os povos tupis, mas não somente entre eles, a chefia, não era hereditária, mas<br />

sim dada pelo carisma que determinado indivíduo possuía entre seus companheiros de tribo, o<br />

qual era pautado principalmente por suas proezas na guerra, ou seja, a autoridade do chefe<br />

tinha limites, pois dependia do consentimento de seus seguidores, o que para os jesuítas era<br />

lamentável – a falta de um rei –, pois tal fato permitia uma maior fragmentação dos índios e<br />

estes não se viam obrigados a obedecer às ordens e determinações de seu chefe, o que<br />

constituía um obstáculo à missão inaciana de cristianização dos índios do Brasil 28 . As funções<br />

de um chefe indígena variavam de etnia para etnia, contudo os principais atributos de um<br />

chefe eram três: indicar quando e para onde a aldeia ia se mudar; conduzir os guerreiros para a<br />

guerra; e velar para a conservação das tradições da tribo 29 .<br />

O segundo corresponde à generalização das tribos (etnias) indígenas que praticavam a<br />

antropofagia, pois na medida em que os europeus acentuavam sua penetração no continente,<br />

descobriram cada vez mais tribos antropófagas, e a América (em especial a do Sul) chegava a<br />

aparecer não mais como o paraíso terrestre, assim como Colombo tinha acreditado por um<br />

momento ao aproximar-se do delta do Orenoco, cujos diversos braços, confundiu com um dos<br />

rios do Éden, mas como um Inferno terrestre, cujos habitantes não sonhavam e desejavam<br />

senão em comer-se uns aos outros. Contudo, deve-se considerar que “colonos, historiadores,<br />

<strong>cronistas</strong>, navegantes, caçadores, enfim, os que criaram essa zoologia fantástica do Brasil não<br />

26 NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de cristo na terra dos papagaios: Colonialismo e<br />

Repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 45-46.<br />

27 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra: índios bandeirantes nas origens de São Paulo: São Paulo: Cia.<br />

Das Letras, 1994, p. 22.<br />

28 Ibid., p. 23.<br />

29 MELATTI, Julio César. Op. cit., p. 111.<br />

32


precisavam ver ninguém ser comido para crer em antropofagia. Bastava que alguém o<br />

referisse” 30 . O que se passava na r<strong>ea</strong>lidade? Na maior parte dos casos, o canibalismo foi tão<br />

simplesmente inventado:<br />

“(…) não como fruto de uma imaginação – o que teria sido desculpável em se tratando de pessoas<br />

ancorando em rios de um mundo totalmente desconhecido – pronta a exagerar os riscos corridos e as<br />

disposições bárbaras desses selvagens de que não se tinha certeza que fossem mais homens que bichos,<br />

mas como uma mentira cínica destinada a encobrir e justificar a política dos colonizadores brancos” 31 .<br />

A palavra canibal, que infundiu espanto e terror na Europa, deriva do termo aruaque<br />

Cariba, que por corruptela – causada pelo não entendimento do que os indígenas queriam<br />

dizer por parte dos europeus – transforma-se em Caniba. Este termo se refere, ao nome pelo<br />

qual, os Indígenas da etnia Caribe das Pequenas Antilhas, se autodenominavam e que em sua<br />

língua significa “altivo, ousado, valente”, contudo para seus inimigos, os Aruaques, esse<br />

nome designava ferocidade e barbárie, 32 pois essas etnias viviam em guerras constantes, ou<br />

seja, tal termo não se refere em nada a antropofagia, se constituindo numa maledicência, uma<br />

injustiça em relação ao povo que emprestou seu nome à prática antropofágica. 33 Havia,<br />

porém, canibais (antropófagos) assumidos, que paradoxalmente, se encontravam entre os<br />

melhores amigos (aliados) dos brancos (europeus) no Novo Mundo: guaranis e tupis, não<br />

escondiam seu interesse pela carne humana, e a colocavam no centro do seu sistema político e<br />

cosmológico. Comeram alguns brancos – poucos – e convidaram alguns outros para o festim:<br />

destes, nem todos recusaram. Portugueses e tupiniquins, franceses e tupinambás selaram suas<br />

respectivas alianças em guerras movidas à cobiça e “apetite” (vingança).<br />

Quando a colonização começou efetivamente a ser posta em prática, uma nova<br />

imagem da América – que perdurou por um bom tempo – surgiu, ela não era mais vista como<br />

o paraíso perdido, mas representava agora o inferno na terra, especialmente por causa do<br />

costume da antropofagia que se tornou o signo distintivo de todo o continente, e muito<br />

especialmente da terra do Pau-Brasil. 34 É difícil achar um planisfério quinhentista onde as<br />

superfícies ignotas da América do Sul não sejam preenchidas por imagens de refeições<br />

canibais, ou de moquéns cheios de braços, pernas e cabeças ou ainda de açougues bem<br />

30<br />

CARNEIRO, J. Fernando. A Antropofagia entre os indígenas do Brasil. Coleção Brasileira de Divulgação<br />

n° 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, p. 5.<br />

31<br />

CLASTRES, Pierre. Os Canibais. In: Crônica dos Índios Guayaki. Rio de Janeiro: Editora Trinta e Quatro,<br />

1995, p. 223-245, p. 224-225.<br />

32<br />

VESPÚCIO, Américo. Novo Mundo: as cartas que batizaram a América. Introdução e notas Eduardo Bueno.<br />

Tradução das cartas de João Ângelo Oliva, Janaina Amado Figueiredo e Luis Carlos Figueiredo. São Paulo: Ed.<br />

Planeta Brasil, 2003, p. 93 e 138.<br />

33<br />

CLASTRES, Pierre. Op. cit., p. 224.<br />

34<br />

BETTENCOURT, Lucia. Cartas brasileiras: visão e revisão dos Índios. In: GRUPIONI, Luis Donisete B.<br />

Índios do Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p. 39-46, p. 44.<br />

33


organizados, com os cortes selecionados expostos à venda. Uma gravura pouco conhecida de<br />

Hans Holbein, que ilustra o Mapa Mundi: Novus Orbis Regionum, chega a representar um<br />

atarefado canibal carregando (para o mercado?) um bom número de peças a lombo de mula! 35 .<br />

Sobre as representações dos indígenas (de suas sociedades) e de seus costumes, vê-se<br />

que eles foram apresentados para a sociedade européia de duas formas/maneiras. Uma delas<br />

corresponde às representações iconográficas e a outra as representações mentais contidas nos<br />

relatos dos viajantes, sendo estas as que vou analisar nesse trabalho. Contudo essas duas<br />

formas de representações apresentam diferenças, principalmente quando se trata da<br />

representação da prática antropofágica. Enquanto nos relatos (representações mentais), o<br />

papel da mulher no repasto canibal é secundário, cabendo aos guerreiros protagonizar a morte<br />

do prisioneiro – “(…) não há menção a morte de um inimigo levado a cabo por uma<br />

mulher” 36 . “Os relatos quinhentistas e seiscentistas restringem bastante o papel desempenhado<br />

pelo grupo feminino na ingestão da carne humana” 37 –, o contrário se sucede nas<br />

representações iconográficas, onde a mulher ganha centralidade nestes atos, ou seja, ocorre<br />

uma supervalorização do papel da mulher no sacrifício dos prisioneiros, o que denota uma<br />

“veiculação de dados ausentes nos textos [dos <strong>cronistas</strong>]” 38 . Tais representações difundiram<br />

estereótipos de barbarismo – “Bárbaro é quem devora os inimigos, não quem deseja riquezas,<br />

invade terras, assassina ou tortura para enriquecer; idolatra é quem confia no poder oracular<br />

de ídolos de madeira, não quem reza diante da cruz cristã” 39 –, não raro imputando-lhes<br />

características demoníacas. Ou seja, a visão que os europeus tiveram do “canibalismo” foi<br />

quase sempre um pouco crassa: opção gastronômica ou alimentícia indigna de um homem<br />

civilizado e cristão – “(…) as cozinhas canibais da América já se encontram num portulano<br />

português de 1502” 40 .<br />

“O índio representado na iconografia européia é o índio bárbaro, selvagem, antropófago, incapaz por<br />

todos esses atributos, de gerir a própria vida, e justificando, sem maiores problemas, a dominação<br />

européia – tanto a econômica e política quanto a espiritual, viabilizada pela catequese” 41 .<br />

35<br />

RAMINELLI, Ronald. Op. cit., 64-65. O mapa se encontra entre as paginas 64 e 65, fig. 3.<br />

36<br />

RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. In: PRIORE, Mary Del. (Org.). História das Mulheres no Brasil. 5ª.<br />

ed. São Paulo: Unesp/Contexto, 2001, p. 11-44, p. 29.<br />

37<br />

RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização… Op. cit., p. 101.<br />

38<br />

RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá… Op. cit., p. 34.<br />

39<br />

GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução de Josely Vianna Batista. São<br />

Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 231.<br />

40<br />

LESTRINGANT, Frank. O Canibal: Grandeza e Decadência. Tradução: Mary Lucy Murray Del Priore.<br />

Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997, p. 44.<br />

41<br />

RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização… Op. cit., p. 9.<br />

34


A primeira descrição de um ato antropofágico, em que a vítima é um europeu, nos é<br />

narrada por Américo Vespúcio, quando este estava em sua terceira viagem à América, no ano<br />

de 1501, na carta intitulada, Quatro Navegações – essa mesma carta é o primeiro documento<br />

que ostenta imagens junto às descrições do Novo Mundo, sendo que o impacto dessas<br />

imagens “ajudaram a introjetar abstrações fantasiosas no imaginário europeu, fazendo com<br />

que um outro mundo, habitado por homens diferentes, pudesse ser incorporado ao sistema de<br />

razões e crenças do Velho Mundo (…)” 42 :<br />

“(…) No sétimo dia, dirigindo-nos outra vez à terra firme, percebemos que aquela gente trouxera<br />

consigo as mulheres. Assim que chegamos, logo enviaram muitas esposas para falar conosco, embora<br />

não estivessem inteiramente seguras a nosso respeito. Percebendo-o, concordamos em enviar até elas<br />

um dos nossos jovens, que era valente e ágil, e para torná-las menos temerosas, entramos nos navios.<br />

Assim que desembarcou, misturou-se com elas, que, circundando-o, tocavam-no e apalpavam-no,<br />

maravilhadas por ele: eis que do monte vem uma mulher portando uma grande estaca, aproxima-se do<br />

jovem e, pelas costas, deu-lhe tamanho golpe com a estaca que, imediatamente, ele caiu morto ao chão.<br />

Num instante, outras mulheres o pegaram e pelos pés arrastaram-no ao monte. Os homens que ali<br />

estavam, descendo à praia com arcos e flechas, puseram-se a disparar e infligiram tal terror em nossa<br />

gente – os bateis em que estavam resvalavam na areia ao navegar, não podendo fugir com rapidez -, que<br />

ninguém então se lembrou de pegar em armas, de modo que muitas flechas eles disparavam até que<br />

desferimos quatro tiros de bombarda sem atingir ninguém. Ao ouvir o estrondo, todos em fuga correram<br />

de volta para o monte onde estavam as mulheres a esquartejar o jovem que haviam matado, enquanto<br />

nós olhávamos em vão, mas não era em vão que nos mostravam os pedaços que, assando num grande<br />

fogo que tinham acesso, depois comiam: também os homens, fazendo-nos sinais semelhantes, davam a<br />

entender que haviam matado e assim comido outros dois cristãos nossos, e exatamente por isso<br />

acreditamos que falavam a verdade. Esse ultraje ofendeu-nos a fundo, pois vimos com nossos próprios<br />

olhos à profanação com que trataram o morto. Por isso, mais de quarenta de nossos homens tomamos a<br />

deliberação de descer todos em terra firme e impetuosamente ataca-los para tirar vingança de ação tão<br />

desumana, de ferocidade tão bestial. Mas o capitão da frota não permitiu e, assim agindo nosso<br />

comandante, apesar de termos sofrido injúria tão grande e tão grave contra nossa vontade e com grande<br />

desonra, partimos dali, sem puni-los” 43 .<br />

Os primeiros relatos sobre a antropofagia praticada pelos indígenas – em especial aos<br />

que dizem respeito ao Brasil – estão longe de qualquer indicação da antropofagia ritual. Esses<br />

relatos apresentam “a questão como sendo os nossos índios antropófagos no sentido bestial,<br />

comendo com prazer seus inimigos e se deliciando com o gosto saboroso da carne humana” 44 ,<br />

contudo, sabemos que essa é uma visão européia que constrói a imagem do índio a partir de<br />

seus interesses (dos colonizadores):<br />

“A imagem do índio foi construída a partir da r<strong>ea</strong>lidade americana e da cultura européia. Os<br />

colonizadores pouco se preocupavam em abarcar a complexidade cultural dos povos 45 do além-mar.<br />

Observando o cotidiano indígena, selecionaram determinadas informações e relacionaram-nas ao<br />

universo cultural europeu. Os rituais de canibalismo, os comportamentos sexuais, o desprezo pelo<br />

42 VESPÚCIO, Américo. Op. cit., p. 58-59.<br />

43 Ibid., p. 104-106. Grifos do autor.<br />

44 CARNEIRO, J. Fernando. Op. cit., p. 34.<br />

45 Cada tribo se distingue por uma personalidade cultural própria, cuja natureza singular não raro se revela<br />

precisamente na atitude e nas r<strong>ea</strong>ções em face de coisas novas e estranhas. SCHADEN, Egon. O estudo do índio<br />

brasileiro – Ontem e Hoje. Op. cit., p. 398.<br />

35


trabalho e as superstições ganharam conotação estranha à tradição indígena, receberam uma nova<br />

racionalidade” 46 .<br />

Ou seja, o índio perdeu a sua identidade própria em prol de uma cunhada pelo<br />

europeu 47 – o que logicamente distorceu a lógica dos ritos e dos mitos indígenas – pois os<br />

antropófagos, ou como os europeus os denominavam: canibais, não eram tantos como queria a<br />

propaganda colonial, mas existiam, mal que pese à propaganda anti-colonial. Nem sempre é<br />

fácil saber quem era o canibal: rumores que o multiplicassem eram sempre ouvidos de bom<br />

grado pelos conquistadores, porque justificavam a guerra justa e conseqüentemente a<br />

escravidão indígena. Via de regra, canibal era o vizinho, o inimigo virtual ou atual, ou seja,<br />

nunca eram antropófagas as tribos aliadas ou que se estava descrevendo, mas as tribos<br />

inimigas destas eram quase sempre vistas como antropófagas, como vemos no relato do Frei<br />

capuchinho francês Yvers d’Evreux:<br />

“O prisioneiro, por maior que tivesse sido entre os seus se reconhece escravo e vencido, acompanha o<br />

vencedor, serve-o finalmente sem que seu senhor ande vigiando-o, tendo liberdade para andar por onde<br />

quiser, fazendo o que for de sua vontade, e de ordinário casa-se com a filha ou a irmã do seu senhor e<br />

assim vive até o dia em que deve ser morto e comido, o que não se prática mais em Maranhão,<br />

Tapuitapera e em Cumã, e só raras vezes em Caité” 48 .<br />

Um dos relatos mais conhecidos que nos traz a descrição da prática antropofágica é o<br />

do Padre Antonio Ruiz de Montoya (jesuíta espanhol), na obra escrita entre 1638-1639, “A<br />

Conquista Espiritual”, que diz respeito aos índios guarani:<br />

“(…) ao cativo colhido em guerra engordam-no, dando-lhe liberdade quanto à comida e mulheres, que<br />

escolhe a seu gosto. Já estando gordo, matam-no com muita solenidade. Todos tocam com a mão neste<br />

corpo morto ou, dando-lhe alguma batida com um pau, dá-se cada a si o seu nome. Pela comarca<br />

repartem as porções deste corpo. Cada pedaço vem a cozinhar-se em muita água. Fazem disso uma papa<br />

ou mingau. As mulheres dão a seus filhinhos dessa massa, e com isso lhe põe o nome. Trata-se de uma<br />

festa muito especial para os guaranis, que eles fazem com muita cerimônia” 49 .<br />

Nota-se que o prisioneiro, desempenhava um papel primordial nas relações inter-<br />

aldeias devendo ser exibido nas povoações vizinhas (aliadas). Era visto, desde a sua captura<br />

até a sua morte, como responsável pela morte de parentes queridos 50 . Geralmente as tabas<br />

aliadas eram convidadas a participar do ritual antropofágico, transformando-o numa<br />

manifestação coletiva, que ao mesmo tempo consolidava as alianças e perpetuava a vingança.<br />

Entre os antigos tupinambás, o prisioneiro de guerra era propriedade daquele que o tinha<br />

46<br />

RAMINELLI, Ronald. Op. cit., p. 163. Grifos do autor.<br />

47<br />

Ibid., p. 164.<br />

48<br />

CARNEIRO, J. Fernando. Op. cit., p. 46. Grifos do autor.<br />

49<br />

MARTINS, Maria Cristina Bohn. A antropofagia e os guaranis. Estudos Leopoldenses, São Leopoldo, v. 24,<br />

n. 104, p. 43-52, jun./jul.1998, p. 45-46.<br />

50 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 222.<br />

36


capturado. O proprietário podia mesmo dá-lo de presente a outros indivíduos, mas o<br />

prisioneiro não se destinava a produzir bens para seu proprietário. Este, depois de algum<br />

tempo, sacrificava-o no ritual antropofágico, ganhando assim mais um nome 51 .<br />

Na data aprazada, dava-se início a cauinagem – que geralmente durava três dias –<br />

acompanhada de cantos e danças. Este ato festivo antecedia o ritual antropofágico. Ao<br />

alvorecer do dia escolhido, o prisioneiro era lavado, enfeitado e amarrado pela cintura com a<br />

mussurana (corda grossa feita de algodão) e conduzido ao centro do terreiro, onde se<br />

encontravam reunidos os convivas. O prisioneiro mostrava-se tranqüilo, altivo e exacerbava<br />

coragem, lançando desafios aos presentes, de modo a r<strong>ea</strong>cender a promessa de vingança por<br />

parte dos seus:<br />

“Também eu, valente que sou, já amarrei e matei vossos maiores. (…) Comi teu pai, matei e moqueei a<br />

teus irmãos; comi tantos homens e mulheres, filhos de vós outros tupinambás, e que capturei na guerra,<br />

que nem posso dizer-lhes os nomes; e ficai certos de que para vingar a minha morte os maracajás da<br />

nação a que pertenço hão de comer ainda tanto de vós quantos possam agarrar” 52 .<br />

Chegando o executor, profusamente enfeitado, recebia cerimonialmente o ibirapema<br />

(tacape cerimonial), com o qual iniciava uma dança junto ao prisioneiro, imitando as<br />

evoluções de uma ave de rapina. Terminada a gesticulação, o algoz e a vítima travavam um<br />

curto diálogo, onde o executor qualificava a matança iminente como uma vingança por mortes<br />

passadas e o prisioneiro afirmava que sua morte será vingada, ou seja, “a vingança será<br />

vingada: a morte será a razão de mortes futuras” 53 , findo o diálogo, o executor esmagava a<br />

cabeça do inimigo – geralmente isso se dava com apenas uma pancada. O modo como o<br />

prisioneiro caía no chão era importante, pois se caísse de bruços era bom sinal, mas se caísse<br />

de costas era mau sinal, principalmente para o executor. Abatido o prisioneiro, escaldavam-no<br />

para lhe retirar a pele e esquartejavam-no. Algumas partes do corpo (braços e pernas) eram<br />

moqu<strong>ea</strong>das e as vísceras eram aproveitadas para fazer um cozido. Existiam regras para a<br />

distribuição do corpo da vítima, que era integralmente aproveitado, sendo que “todos os<br />

parentes, amigos, aliados, homens, mulheres, crianças com a exceção única e forte do<br />

matador, deviam participar do festim” 54 . Desse modo, a morte do prisioneiro perpetuava a<br />

promessa de vingança por parte da comunidade da vítima, ao mesmo tempo em que acionava<br />

51 MELATTI, Julio César. Op. cit., p. 66.<br />

52 LERY, J<strong>ea</strong>n de. Viagem à terra do Brasil. Tradução de Sergio Millet. Belo Horizonte/São Paulo:<br />

Itatiaia/EDUSP, 1980, p. 194 apud KOK, Maria da Glória. Os vivos e os mortos na América portuguesa: Da<br />

Antropofagia à água do Batismo. Campinas: Fapesp, 2001, p. 23.<br />

53 CUNHA, Manuela Carneiro da. & CASTRO, Eduardo Viveiros de. Vingança e Temporalidade: Os<br />

Tupinambás. Anuário Antropológico 85. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 57-78, 1986, p. 64.<br />

54 Ibid., p. 59.<br />

37


a memória dos antepassados para aqueles que se vingam. Além, disso, simultan<strong>ea</strong>mente, a<br />

morte em terreiro sublimava a superioridade do grupo em relação a seus inimigos 55 . Ou seja, a<br />

vingança cria um elo entre o passado e o futuro – “os que já viveram (e morreram) e os que<br />

viverão” 56 –, se configurando em uma mnemotécnica que é perpetuada por grupos inimigos e<br />

que permite há esses mesmos grupos indígenas, a consolidação de uma identidade própria em<br />

oposição há do inimigo, contudo ao se “abandonar a vingança é romper com o passado; mas<br />

é, também e sobretudo, não ter mais futuro (…). A memória aparece, portanto, não como um<br />

fim em si mesmo – lembrar os mortos –, mas como um meio, um morto, para novas<br />

vinganças” 57 , ou seja, a vingança na forma de memória é legada (herdada) as gerações futuras<br />

como uma instituição capaz de manter a integridade de uma cultura indígena.<br />

“O que é transmitido de uma geração a outra pelos Tupinambás? Nomes, não; posições cerimoniais,<br />

não. Apenas a memória da vingança, isto é, a vontade de se vingar, a identidade dos inimigos que<br />

devem ser guerr<strong>ea</strong>dos, a memória dos mortos na guerra, isto é, o que se herda é uma promessa, um lugar<br />

virtual que só é preenchido pela morte do inimigo. Herda-se uma memória. Neste sentido, a memória<br />

não é resgate de uma origem ou de uma identidade que o tempo corroeu, mas é, ao contrário, fabricação<br />

de uma identidade que se dá no tempo, produzida pelo tempo, e que não aponta para o início dos<br />

tempos, mas para seu fim” 58 .<br />

Com isso, podemos afirmar que o ritual antropofágico encontra-se intimamente<br />

associado à guerra, à religião, à economia de reciprocidade e às festas e que é em si, uma<br />

cerimônia revestida de grande solenidade bastante ritualizada, onde geralmente é<br />

exteriorizada a religiosidade indígena. 59 Ao guerreiro morto era dada, além da morte id<strong>ea</strong>l, a<br />

oportunidade (honra) de ascender à morada dos antepassados, e ao matador, abria-se a<br />

oportunidade, além de vingar seus antepassados mortos, de adquirir um novo status na aldeia<br />

– esse “guerreiro não acumulava apenas mulheres: a cada morte que inflige, vai somando os<br />

nomes que toma e vai desenhando no próprio corpo um riscado que lhe entalha a pele” 60 .<br />

Outro status que esse ritual podia marcar era o do rito de passagem para a vida adulta:<br />

“(…) o jovem só passava a ser considerado homem adulto depois de matar ritualmente um prisioneiro<br />

de guerra. O abatimento do prisioneiro de guerra, na praça da aldeia, poderia talvez ser considerado<br />

como ritual de separação, pois, logo, após isso, enquanto os outros consumiam o corpo do morto no<br />

festim antropofágico, o matador se afastava, indo para sua casa, sendo-lhe proibido ingerir a carne do<br />

individuo que matara. O matador fazia resguardo como se estivesse doente, abstinha-se de comer certas<br />

coisas, deixa crescer os cabelos, submetia-se a escarificações. Eram os ritos de transição. Quando<br />

saravam as feridas, celebravam-se as festas que marcavam a adoção de novo nome pelo matador, o que<br />

55<br />

KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 24.<br />

56<br />

CUNHA, Manuela Carneiro da. & CASTRO, Eduardo Viveiros de. Op. cit., p. 67.<br />

57<br />

Ibid., p. 70.<br />

58<br />

Ibid., p. 69.<br />

59<br />

MARTINS, Maria Cristina Bohn. Op. cit., p. 47.<br />

60<br />

CUNHA, Manuela Carneiro da. & CASTRO, Eduardo Viveiros de. Op. cit., p. 62.<br />

38


constituía a sua volta à vida normal. Era o rito da incorporação. O matador já não era mais o mesmo; era<br />

considerado adulto e podia contrair matrimonio” 61 .<br />

Com relação às guerras indígenas, Montaigne em seu ensaio “Dos Canibais” 62 aponta<br />

para a racionalidade superior das guerras “canibais”, que acabam em banquete, quando<br />

comparadas às guerras européias, que só produzem destruição e carniça. 63 Luiz Koshiba diz<br />

que as guerras indígenas não visavam nem a dominação, nem a exploração, e, por fim, nem a<br />

aniquilação do inimigo. Elas se faziam simplesmente para efetivar a vingança dos<br />

antepassados mortos pelos inimigos 64 . Quanto à visão de vingança(s) dos antepassados,<br />

Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro dizem que “a vingança é um elo<br />

entre o que foi e o que será, os mortos do passado e os mortos por vir ou, o que dá no mesmo,<br />

os vivos pretéritos e os vivos futuros” 65 . Américo Vespúcio questiona a racionalidade das<br />

guerras dos indígenas e a explica da seguinte forma:<br />

“O que mais me maravilhou nessas suas guerras e crueldade é que não pude saber deles por que fazem<br />

guerra uns aos outros, pois não têm bens próprios nem domínio de impérios ou reinos, nem sabem que<br />

coisa seja cobiça, isto é, riquezas ou cupidez de reinar, o que me parece ser a causa das guerras ou de<br />

todo ato desordenado. Quando lhes pedimos que dissessem a causa, não sabiam dar outra razão, salvo<br />

que dizem que há muito tempo começou entre eles essa maldição e querem vingar a morte de seus pais<br />

antepassados. Em conclusão, é coisa bestial. Certo é que um homem deles me confessou ter comido a<br />

carne de mais de duzentos corpos; e tenho isso por certo, e basta” 66 .<br />

Desse modo, a guerra se constitui num dos pilares da organização social das tribos<br />

indígenas – principalmente as que praticavam o ritual antropofágico – sendo movida<br />

(vivenciada) por causas (vinganças) passadas e futuras, o que a torna numa continuidade que<br />

orienta (situa) a tribo indígena no tempo e no espaço. Podemos constatar isso no diálogo que é<br />

travado entre o executor e a vítima, pois o primeiro se referencia a vinganças passadas e o<br />

segundo reporta-se a vinganças futuras, ou seja, a uma continuidade dos conflitos bélicos<br />

entre as tribos inimigas. Sobre a importância que a guerra tem para os indígenas, temos a<br />

afirmativa de um cacique tabajara:<br />

“Se quisesse comer os inimigos, não ficaria um só, porém conservei-os para satisfazer minha vontade,<br />

uns após outros, entreter meu apetite, e exercitar diariamente minha gente na guerra; e de que serviria<br />

61<br />

MELATTI, Julio César. Op. cit., p. 124.<br />

62<br />

Montaigne não promoveu uma reificação do estado de barbárie. Antes, a antropofagia serviu de mote para uma<br />

dura crítica a sociedade européia e as atrocidades cometidas durante as guerras religiosas. RAMINELLI, Ronald.<br />

Imagens da colonização… Op. cit., p. 38.<br />

63<br />

MONTAIGNE, Michel de. Dos Canibais. In: Ensaios. Volume 1. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo:<br />

Nova Cultural, 2000, p. 199-200.<br />

64<br />

KOSHIBA, Luiz. A honra e a cobiça. Tese de doutoramento inédita apresentada no Departamento de História<br />

da FFLCH-USP, São Paulo, 1988, 2 vol., p. 55 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p.18.<br />

65<br />

CUNHA, Manuela Carneiro da. & CASTRO, Eduardo Viveiros de. Op. cit., p. 70.<br />

66 VESPÚCIO, Américo. Op. cit., p. 188.<br />

39


matá-los todos de uma só vez se não havia quem os comesse? Além disso, não tendo minha gente com<br />

quem se bater, se desuniriam e separar-se-iam (…)” 67 .<br />

A par disso, podemos entender que para a mentalidade européia da época, afeita a<br />

promover suas guerras por interesses políticos e expansionistas (conquista de terras, bens e<br />

povos), para fins imediatos de enriquecimento, as guerras indígenas eram totalmente<br />

destituídas de sentido, pois o que motivava as guerras era o motivo de vingança dos<br />

antepassados mortos pelo inimigo. Para tal fim organizavam-se incursões guerreiras que<br />

mobilizavam grande contingente de homens, cujo resultado, muitas vezes, era a captura de um<br />

único prisioneiro, que seria ritualmente morto e comido pela tribo.<br />

Em relação às expedições guerreiras, tem-se que elas eram conduzidas por um chefe e<br />

que percorriam grandes distâncias até chegarem ao território inimigo. Nessas, segundo a<br />

descrição de Thevet, “os prisioneiros de guerra que não podiam ser conduzidos à aldeia<br />

tinham seus braços e pernas cortados e, se houvesse tempo antes de recomeçar o combate,<br />

eram devorados ali mesmo” 68 . Quanto aos inimigos capturados com vida, estes eram trazidos<br />

à aldeia dos vitoriosos e ali eram ornados, com o intuito de serem mostrados como troféus nas<br />

aldeias por onde desfilassem. O padre jesuíta Fernão Cardim, presenciou um desses cortejos e<br />

assim o descreveu:<br />

“(…) os que tomados na guerra vivos são destinados a matar, vêm logo de lá com um sinal, que é uma<br />

cordinha delgada no pescoço, e se é homem que pode fugir traz uma mão atada ao pescoço debaixo da<br />

barba, e antes de entrar nas povoações que há pelo caminho os enfeitam, depenando-lhes as pestanas e<br />

sobrancelhas e barbas, tosquiando-os ao seu modo, e empenando-os com penas amarelas tão bem<br />

assentadas que lhes não aparece cabelo e as quais os fazem tão lustrosos como aos Espanhóis os seus<br />

vestidos ricos, e assim vão mostrando sua vitória por onde passam” 69 .<br />

Os prisioneiros mais velhos, segundo o capuchinho francês Claude D’Abbeville,<br />

tinham uma vida mais curta, pois “comem-no antes que emagreça” 70 . Já os jovens podiam<br />

viver de quinze a vinte anos no cativeiro antes de serem mortos ritualmente. Durante esse<br />

período que permaneciam na tribo inimiga, eram bem tratados e viviam soltos e pouco<br />

vigiados, pois se caso o prisioneiro tentasse fugir, ele seria considerado um “cuave eim”, ou<br />

seja, um covarde, que envergonharia por esse feito a sua tribo, além disso, existia uma razão<br />

67 D’EVREUX, Padre Ives. Viagem ao norte do Brasil, feita nos anos de 1613 e 1614. Maranhão: Tip. de<br />

Frias, 1874, p. 35 apud ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 52.<br />

68 THEVET, André. As singularidades da França Antártica. Tradução de Eugenio Amado. Belo<br />

Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1978, p. 118 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 20.<br />

69 CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1980, p.<br />

181-182 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 21.<br />

70 D’ABEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras<br />

circunvizinhas. Tradução de Sérgio Millet. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975, p. 230 apud KOK,<br />

Maria da Glória. Op. cit., p. 22.<br />

40


mais forte que fazia com que os prisioneiros nem pensassem em fugir. Essa era a morte id<strong>ea</strong>l<br />

(com honra), que todos os guerreiros almejavam, pois era a consagração máxima do guerreiro,<br />

o fato que coroava com êxito os seus feitos e as suas qualidades 71 , fazendo sua alma viajar<br />

para a morada dos mortos, terra de certa forma paradisíaca, situada “além das montanhas”,<br />

onde os ancestrais já se juntaram à “grande mãe”, para dançar, beber e usufruir de todos os<br />

bens em sua companhia, sendo essa viagem: “a suprema felicidade dos guerreiros mortos na<br />

guerra ou daqueles que tiveram o corpo devorado pelos inimigos; seu acesso é proibido aos<br />

efeminados e covardes, muito difícil para as mulheres, exceto para as esposas de guerreiros<br />

valorosos” 72 . Segundo Montaigne essa era a razão “de não se encontrar nenhum prisioneiro<br />

que não preferisse ser morto e comido a pedir perdão” 73 . Cronistas como o holandês, Gaspar<br />

Barléu relatam: “marcham alegres para a morte aqueles a quem está reservado tal destino” 74 .<br />

Ainda com relação a este fato, conta-nos o frei capuchinho Yves d’Évreux que caso o<br />

prisioneiro adoecesse antes da morte ritual, levavam-no para o mato e lá “partem-lhe a<br />

cabeça, espalham o cérebro, e deixam o corpo insepulto e entregue a certas aves grandes” 75 .<br />

Desse modo temos que:<br />

“O prisioneiro indígena contemplava a morte como uma honra. Participava da festividade, na qual<br />

desempenhava papel importante. Devia justamente fazer o papel de prisioneiro, e gritar orgulhoso que<br />

seus familiares vingariam sua morte devorando os matadores. Alguns <strong>cronistas</strong> anotam inclusive que o<br />

prisioneiro não fugia da sentença de morte porque seria rejeitado em sua própria comunidade como<br />

covarde” 76 .<br />

Vê-se que a antropofagia é movida por uma economia de reciprocidade pautada pela<br />

vingança, pois a morte ritual (sacrifício) do prisioneiro – que preferia morrer no vínculo<br />

valente da vingança do que na covardia do perdão 77 – renova os ciclos de vingança entre as<br />

tribos inimigas e ao mesmo tempo essa morte ritual reforça os laços de amizade entre as tribos<br />

aliadas, pois a distribuição da carne do prisioneiro é feita de forma a contemplar o maior<br />

número possível de pessoas 78 .<br />

71<br />

KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 22.<br />

72<br />

HAUBERT, Máxime. A vida quotidiana no Paraguai no tempo dos jesuítas. Lisboa: Ed. Livros do Brasil,<br />

s/d, p. 30.<br />

73<br />

MONTAIGNE, Michel de. Op. cit., p. 200.<br />

74<br />

BARLÉU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Tradução de<br />

Cláudio Brandão. Belo Horizonte/São Paulo: Itatitia/EDUSP, p. 1974, p. 23 apud KOK, Maria da Glória. Op.<br />

cit., p. 22.<br />

75<br />

D’ÉVREUX, Yves. Viagem ao norte do Brasil feita nos anos de 1613 e 1614. Tradução de Fernando Diniz.<br />

Rio de Janeiro: Depositário Freitas e Livraria Leite Ribeiro, 1929, p. 107 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit.,<br />

p. 22.<br />

76<br />

GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 225.<br />

77<br />

MELIÀ, Bartomeu. José de Anchieta: Etnógrafo de la Antropofagia. Estudos Leopoldenses. São Leopoldo, v.<br />

3, n. 1, p. 5-20, 1999, p. 12.<br />

78 Ibid., p. 16.<br />

41


A prática do canibalismo – antropofagia – tem para os indígenas do tronco lingüístico<br />

tupi-guarani um mito/lenda de origem. A história começa com uma velha cujo único filho<br />

morreu nas mãos de inimigos. Tempos depois, o assassino torna-se prisioneiro e é conduzido<br />

a presença da anciã. A mulher comporta-se como fera, atira-se sobre o oponente com o desejo<br />

de devorá-lo vivo e fere seu ombro. O prisioneiro consegue se desvencilhar das garras e<br />

retorna a sua aldeia, onde relata o acontecimento. A notícia provoca uma contra r<strong>ea</strong>ção e, a<br />

partir daquele momento, os guerreiros, desejando superar a valentia da velha, partem contra o<br />

inimigo a fim de transformá-lo em repasto, dando continuidade a ação iniciada pela índia. 79<br />

Nesse tipo de antropofagia – guerreira – (exocanibalismo) o que motiva a ingestão da<br />

carne do inimigo é a vingança, contudo existem outros tipos de ritos antropofágicos, que não<br />

utilizam a vingança como vetor, como é o caso da antropofagia funerária (endocanibalismo),<br />

cujo vetor não se pauta na vingança contra o inimigo, mas na ingestão da carne de amigos<br />

e/ou parentes já mortos, ou seja, nesse tipo de antropofagia não se mata ninguém, espera-se a<br />

morte da pessoa. O estômago (entranhas) é considerado melhor túmulo do que a terra.<br />

Citaremos como exemplo, o rito que os índios guayaki utilizam em seus mortos.<br />

Os índios guayaki comem seus mortos, quaisquer que seja a sua idade, o sexo e as<br />

circunstâncias da morte, salvo raras exceções. A primeira coisa que faziam quando perdiam<br />

um de seus membros era avisar o resto da tribo, para eles se reunirem para o ritual ser<br />

executado, mas se isso não era possível, pois não se pode adiar muito os preparativos. Nisso,<br />

depois de concluído o ritual, vai-se ao encontro dos ausentes para oferecer-lhes:<br />

“(…) em penhor da amizade, alguns pedaços conservados para eles, com isso eles ficam felizes em ver<br />

que não foram esquecidos (…). Descuidar-se de levar aos amigos longínquos um pouco da carne do<br />

companheiro desaparecido seria sentido como uma injúria sem desculpa, imperdoável, seria motivo<br />

suficiente para que as hostilidades se desencad<strong>ea</strong>ssem entre os ofensores e as vítimas” 80 .<br />

Mas quando chegam há tempo o ritual têm inicio. A primeira ação feita é a construção<br />

do moquém (byta), que é confiada aos jovens recém iniciados. Eles plantam na terra quatro<br />

paus bifurcados, com mais ou menos cinqüenta centímetros de altura, sobre as quais são<br />

apoiadas quatro barras, essa armação é completada com travessas um pouco espaçadas,<br />

ligando as barras com lianas. Obtêm-se assim um platô, que gira em torno de um metro e<br />

meio de comprimento por um metro de largura, sob o qual será acesso um grande fogo. É<br />

sobre o byta, que se põem a grelhar os mortos, com exceção de crianças muito pequenas, que<br />

cozinham em potes de barro, pela simples razão de que não haveria o bastante para todos, por<br />

79 RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá… Op. cit., p. 27-28.<br />

80 CLASTRES, Pierre. Op. cit., p. 232.<br />

42


isso a criança é cozida na água com tangy 81 , pois depois, pode-se oferecer, a cada um, uma<br />

ração de sopa.<br />

Durante a preparação do byta, ocupa-se do cadáver, que é cortado com uma faca de<br />

bambu, preferencialmente pelo padrinho do defunto, se este se encontrar vivo.<br />

“A cabeça e os membros são separados do tronco, braços e pernas são desarticulados, órgãos e vísceras<br />

são extraídos de seus alojamento. A cabeça é cuidadosamente raspada, barba e cabelos se se tratar de<br />

um homem; em principio é a esposa que se encarrega disto, assim como uma mãe raspa a cabeça de um<br />

filho. Diferentemente das partes musculosas e dos órgãos – a carne propriamente dita -, a cabeça e os<br />

intestinos são cozidos em panelas. Nada é eliminado do corpo do homem; do corpo da mulher, tira-se<br />

somente, seu pere, seu sexo, que não é consumido; enterrando-no. Todo é resto é disposto sobre o byta.<br />

Embaixo há muitas brasas, as chamas não atingem o moquém, a carne cozinha lentamente. A gordura, a<br />

deliciosa kyra de Aché, espoca e escorre em grossas gotas odoríferas ao longo das ripas. Para não se<br />

perder nada dessa gostosura, pegam-nas com os pinceis sugados com grande ruído. Quando não se vê<br />

mais nenhum traço de sangue, reparte-se a carne entre os assistentes. Quem participa do repasto, quem<br />

come o morto? Todos os presentes, jovens e velhos, mulheres e homens, todo mundo salvo os parentes<br />

próximos do defunto. Um pai e uma mãe não comem seus filhos, os filhos não comem seus pais e não<br />

se comem entre si: esta é a regra, mas como toda regra, isso não se respeita sempre, toleram-se algumas<br />

infrações” 82 .<br />

Pode-se, comer qualquer coisa, menos a cabeça e o pênis, pois a primeira é reservada<br />

aos anciãos e o segundo é sempre destinado às mulheres grávidas, pois assim elas têm a<br />

certeza de dar à luz a um menino. Algumas proibições são respeitadas pelos índios guayaki,<br />

“não se verá jamais um irmão comer a irmã, um pai comer a filha, uma mãe comer seu filho e<br />

reciprocamente. Os membros da família de sexo oposto não se comem entre si” Por quê?<br />

Porque comer alguém na concepção dos índios guayaki, significa fazer amor com ele, ou seja,<br />

“que um pai coma sua filha e ele se encontra então, metaforicamente, em estado de incesto” 83 .<br />

Em suma, os guayaki não comem aqueles com quem é proibido fazer meno (amor/sexo):<br />

proibição do incesto e tabu alimentar se recobrem exatamente no espaço unitário da exogamia<br />

e da exocozinha. Quando o banquete está terminado, os jovens que construíram o moquém<br />

são submetidos ao ritual de purificação:<br />

“Lavam-nos com a água onde se mergulharam as aparas da liana kymata, para evitar-lhes o baivwã.<br />

Depois, como os irõiangi, quebra-se o crânio e queima-se. Isto feito vai-se embora. O moquém é<br />

deixado ali mesmo, ao menos quando serviu para assar um adulto. Duas razões para isso, explicam os<br />

índios: se os irondy vêm a passar pó lá, compreenderão que um Ache [guayaki] morreu, e eles o<br />

chorarão. Mas se os visitantes Estrangeiros, portanto inimigos, saberão que há na região canibais,<br />

ficarão com medo e fugirão. Se o byta foi utilizado para uma criança, destroem-no” 84 .<br />

Um dos significados desse ritual é fazer a alma da pessoa morta, encontrar e seguir seu<br />

rumo em direção ao país dos mortos: “Leva-a então a fumaça que, das cinzas do crânio<br />

81 Ibid., p. 243.<br />

82 Ibid., p. 233.<br />

83 Ibid., p. 234.<br />

84 Ibid., p. 235.<br />

43


voltado para o oeste, sobe no céu para perder-se no mundo superior, Floresta Invisível,<br />

Grande Savana, país dos mortos” 85 . É por tudo isso que, vemos que até hoje o esforço por<br />

racionalizar a prática dos indígenas produz ou legitima explicações bromatológicas, em<br />

função de carências de proteína, ou daquela crença de que se comendo algo se absorvem os<br />

seus caracteres ou poderes. No melhor dos casos esses expedientes apenas dão conta de um<br />

canibalismo muito pobre. O valor nutritivo da carne humana sempre esteve muito por debaixo<br />

do seu valor simbólico; o canibalismo “r<strong>ea</strong>l” foi um caso valioso, muito pouco freqüente, ao<br />

contrário do canibalismo virtual ou ideológico muito mais comum.<br />

Os padres jesuítas, embora considerassem esse costume indígena como contrário ao<br />

cristianismo, que precisava ser extirpado, conceberam uma interpretação que confere a<br />

antropofagia um caráter ritual:<br />

“De certo não era como regime alimentar: tinha caráter diferente, quer guerreiro, quer religioso. Alguns<br />

autores modernos, que escrevem sobre religiões primitivas, inclinados a ver manifestações religiosas<br />

nos usos mais comuns e salientes, parecem dar à antropofagia dos indígenas brasileiros sentido<br />

exclusivamente religioso. De fato, a cerimônia da matança em público terreiro, era pretexto para<br />

grandes ajuntamentos e festas com costumes, sempre idênticos, no espaço e no tempo. Daqui a<br />

denominação que alguns lhe dão de antropofagia ritual” 86 .<br />

Os jesuítas não fizeram isso porque eram bonzinhos ou porque queriam entender<br />

(racionalizar) essa prática, mas o fizeram por necessidade de justificar o seu trabalho de<br />

catequização, pois se concebessem a antropofagia de forma diferente, como o faziam os<br />

colonos, justificariam a escravidão do índio. Então, conferindo a antropofagia um caráter<br />

ritual – rito de vingança – os padres negam a prática desse costume pela necessidade<br />

alimentar (fome) e pelo gosto de se comer carne humana: “Esta é, em particular, a estratégia<br />

dos missionários do Brasil e do Canadá, que refutam por todos os meios a hipótese do<br />

canibalismo alimentar, a fim de salvar a alma do índio, mesmo que esta estivesse enfeitiçada<br />

por sortilégios de satã” 87 .<br />

Por isso, deve-se considerar que os viajantes europeus (<strong>cronistas</strong>), tanto <strong>leigos</strong> quanto<br />

<strong>religiosos</strong>, enfrentaram os costumes das sociedades nativas a partir dos costumes de suas<br />

sociedades. Dessa forma, os diversos agentes do colonialismo europeu, como os colonos<br />

(<strong>leigos</strong>) e os padres jesuítas (<strong>religiosos</strong>), interpretaram, ou melhor, conceberam interpretações<br />

acerca dos costumes/praticas indígenas, dentre eles, a prática antropofágica, que atendiam a<br />

seus interesses. Os colonos portugueses colocaram em dúvida a viabilidade de cristianizar os<br />

nativos. Para tal fim, procuravam ressaltar as características (atributos) bárbaras e bestiais dos<br />

85 Ibid., p. 239.<br />

86 LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo II. Lisboa: Antígona, 1938, p. 35.<br />

87 LESTRINGANT, Frank. Op. cit., p. 22.<br />

44


índios, como o hábito de comer carne humana, reforçando dessa forma, a natureza servil do<br />

índio (escravo natural), já os padres, mesmo se referindo aos índios como bárbaros, não o<br />

faziam para denegrir a imagem do índio, mas para ressaltar a importância do trabalho de<br />

conversão, ou seja, o conceito de bárbaro adaptou-se aos interesses dos padres para legitimar<br />

a catequese e dos colonos para legitimar a escravidão dos indígenas. Por isso, Montaigne<br />

afirma que: “cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural,<br />

porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia<br />

dos usos e costumes do país em que vivemos” 88 .<br />

O controle sobre o trabalho indígena foi o pomo da discórdia entre os colonos e os<br />

padres jesuítas. A disputa entre os dois grupos (colonos X padres) centrava-se “tanto na<br />

legislação quanto nos postos-chaves cobiçados: a direção das aldeias e a autoridade para<br />

repartir os índios para o trabalho fora dos ald<strong>ea</strong>mentos” 89 . Este conflito com relação ao<br />

elemento indígena, ou melhor, sobre a força de trabalho indígena, vai se delin<strong>ea</strong>ndo<br />

juntamente com o processo de colonização do Brasil. Por isso, os colonizadores reforçavam a<br />

necessidade de “escravização dos índios, dizendo que eles eram seres bárbaros, incapazes de<br />

receber a conversão, enquanto os padres procuravam representar os índios como cristãos em<br />

potencial, pois, do contrário à catequese estaria am<strong>ea</strong>çada” 90 . “Os enfrentamentos entre<br />

jesuítas e colonos no Rio de Janeiro e a expulsão dos padres em São Paulo demonstram a<br />

inviabilidade da convivência harmônica entre projetos coloniais antagônicos” 91 .<br />

Passado o choque inicial da descoberta de um Novo Mundo e de novos homens,<br />

resolvido o problema acerca da humanidade dos indígenas – sim eles possuem alma –, os<br />

europeus, principalmente os ibéricos, procuram efetivar a conquista/posse das novas<br />

terras/possessões. Nos primórdios, a colonização da América tinha por característica “a pouca<br />

disponibilidade de capitais, abundância de terras, alta densidade demográfica indígena e<br />

população européia rarefeita” 92 . Desse modo, as populações indígenas, tanto na América<br />

hispânica quanto na portuguesa, se configuraram num elemento indispensável para a<br />

efetivação da colonização. Inicialmente porque os europeus tiveram uma grande dependência<br />

de algumas tribos indígenas, com as quais firmaram alianças, contudo essas alianças entre<br />

tribos indígenas e colonizadores europeus, embora freqüentes, não tinham caráter permanente,<br />

pois dependiam dos interesses que ambas as partes tinham no acordo. Como exemplo, temos<br />

88<br />

MONTAIGNE, Michel de. Op. cit., p. 195.<br />

89<br />

CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução a uma história indígena. In: Cunha, Manuela Carneiro da. (Org.).<br />

História dos Índios do Brasil. 2ª. edição. São Paulo: Cia. das letras, 1998, p. 9-24, p. 16.<br />

90<br />

RAMINELLI, Ronald. Op. cit., p. 16.<br />

91<br />

Ibid., p. 50.<br />

92<br />

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 79.<br />

45


que os portugueses ao se aliarem aos índios temiminós, tinham por objetivo a conquista do<br />

Rio de Janeiro e a eliminação dos franceses, já os índios tinham por objetivo regressar para<br />

suas terras e dar combate a seus inimigos os tamoios 93 – além da guerra, os europeus e os<br />

indígenas faziam alianças com base no escambo e na troca de mulheres (cunhadismo).<br />

No início do século XVI os portugueses r<strong>ea</strong>lizaram várias viagens ao litoral brasileiro,<br />

onde os habitantes nativos olhavam para eles com perplexidade, porém amistosamente, pois<br />

nesse período os portugueses trocavam com os indígenas, na base do escambo, quinquilharias<br />

por pau-brasil. Contudo, com o avanço da colonização, o escambo passou a tornar-se<br />

desvantajoso aos portugueses, na medida em que se saturou o mercado de quinquilharias e os<br />

nativos passaram a voltar seu interesse a armas de fogo e ferragens, cujo custo era mais<br />

elevado. A utilização destes instrumentos permitia aos indígenas executar suas tarefas com<br />

maior rapidez, oferecendo-lhes assim maior tempo livre, o que levava a crer serem eles<br />

“menos do que racionais em termos de maximização econômica” 94 . O escambo com os índios<br />

era tido também como um tanto quanto inseguro, ao passo que: “os aborígines eram homens<br />

econômicos, imersos em um mercado de trabalho auto-regulável e prontos a tomar decisões<br />

com base nos interesses pessoais ou comunitários” 95 . Outro fator de grande importância na<br />

transição “do escambo a escravidão” foi o aumento do número de colonos, que passaram a<br />

competir por mão-de-obra indígena com os exploradores de pau-brasil, por causa da<br />

introdução do sistema de donatarias (capitanias hereditárias), que trouxe o negócio do açúcar<br />

para o Brasil, o qual passou a exigir novas necessidades, a fim de assegurar a mão-de-obra<br />

necessária à lavoura açucareira, que não eram mais atendidas pelo esquema de escambo, que<br />

até então era amplamente praticado com o intuito de conseguir “pau-brasil, alimentos e força<br />

de trabalho para a construção das cidades” 96 .<br />

A resistência dos indígenas ao novo tipo de relação com os europeus, o da escravidão,<br />

deu-se devido a fatores culturais presentes em seu mundo. De certa forma, o escambo poderia<br />

ser enquadrado em seus padrões culturais tradicionais, diferentemente do trabalho na lavoura<br />

do açúcar, uma vez que na mentalidade nativa, a agricultura era trabalho para mulheres. No<br />

caso tupinambá, por exemplo, não era dada muita importância aos excedentes alimentícios, e<br />

a troca destes produtos por coisas que lhes seriam úteis, tais como um machado, era vantajosa.<br />

Não pareceria coerente e proveitoso a eles fornecer seu trabalho em troca de nada, conforme<br />

93 Ibid., p. 45.<br />

94 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São<br />

Paulo/ Brasília: Cia. Das Letras/ CNPq, 1988, p. 45.<br />

95 Ibidem.<br />

96 Ibid., p. 44.<br />

46


os ditames de um esquema escravista. Tendo em vista esta recusa ao trabalho escravo, que<br />

fora vista como atitude preguiçosa dos índios, é que se preferiu mais tarde o uso da mão-de-<br />

obra africana, teoricamente mais adaptável a novos esquemas. Segundo Laima Mesgravis:<br />

“(…) é interessante ressaltar que, apesar das descrições bastante depreciativas dos índios, nenhum dos<br />

<strong>cronistas</strong> dos séculos XVI e XVII consideram-nos indolentes e preguiçosos. Esta imagem mais tarde<br />

incorporada à historiografia foi elaborada no século XIX, quando se quis argumentar com os<br />

abolicionistas as razões da escolha do negro para o trabalho escravo 97 ”. Mas mesmo com a introdução<br />

dos africanos em grande escala nas lavouras, ainda se encontrava índios nos engenhos do Nordeste, em<br />

m<strong>ea</strong>dos do século XVII” 98 .<br />

Em m<strong>ea</strong>dos deste mesmo século, com a chegada do primeiro governador geral, Tomé<br />

de Souza (1549), chegando juntamente a primeira missão jesuítica, chefiada pelo padre<br />

Manuel da Nóbrega, a relação dos portugueses com os indígenas sofre profundas<br />

transformações, pois as atividades econômicas ao longo da costa se intensificam e o cativeiro<br />

dos índios, segundo John Monteiro, “visava solucionar, de uma só vez, dois imperativos da<br />

colonização: a questão militar e o suprimento de mão-de-obra para a incipiente indústria<br />

açucareira” 99 . Com o intuito de conseguir escravos, os portugueses se aproveitaram da própria<br />

divisão interna que existia entre os indígenas, incitando as tribos que eram suas aliadas a<br />

guerr<strong>ea</strong>rem com tribos inimigas, pois acreditavam que o aumento do número de prisioneiros<br />

de guerra, formaria um considerável mercado de escravos, uma vez que a legislação colonial<br />

sancionava esta forma de conseguir escravos (guerra justa), porém os cativos indígenas não<br />

viravam tão facilmente escravos dos portugueses, pois o sentido da guerra para os indígenas,<br />

era completamente diferente do europeu, pois os indígenas não queriam conquistar terras ou<br />

povos, mas vingar seus antepassados mortos por aquela tribo inimiga. Essa vingança era<br />

consumada com a morte ritual do prisioneiro, por isso, mesmo as grandes expedições<br />

indígenas resultavam na maioria das vezes na captura de um único prisioneiro 100 . Dessa<br />

forma, os europeus enfrentavam resistência à venda do cativo não apenas por parte de seus<br />

captores, mas pelo próprio cativo. Como exemplo desse fato, temos que o jesuíta Azpilcueta<br />

Navarro fez uma oferta para comprar um prisioneiro tupinambá na hora do sacrifício deste,<br />

contudo foi à própria vítima que impediu a transação: “ele disse que não o vendessem, porque<br />

lhe cumpria a sua honra passar por tal morte como valente capitão” 101 .<br />

97 MESGRAVIS, Laima. Op. cit., p. 34.<br />

98 SCHWARTZ, Stuart B. Op. cit., p. 40.<br />

99 MONTEIRO, John Manuel. O escravo Índio, esse desconhecido. In: GRUPIONI, Luis Donisete B. (Org.).<br />

Índios do Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p. 105-120, p. 105.<br />

100 KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 18.<br />

101 MONTEIRO, John Manuel. Negros da Terra… Op. cit., p. 33.<br />

47


Os padres jesuítas, tão logo, desembarcaram em solo brasílico, iniciaram o trabalho de<br />

catequização junto aos indígenas, porém as circunstâncias (contexto) em que se deu o trabalho<br />

missionário, não foram das mais propícias. O desenvolvimento econômico da colônia<br />

dependia da utilização de mão-de-obra escrava, que recaiu num primeiro momento<br />

exclusivamente sobre os indígenas. As dificuldades que os jesuítas enfrentaram iam desde as<br />

duras privações de ordem material, a resistência (inconsistência) dos índios e, sobretudo, a<br />

ação anti-catequética – ambição escravista – dos colonos.<br />

Através da catequese, que consiste num “esforço racionalmente feito para conquistar<br />

homens; é um esforço para acentuar a semelhança e apagar as diferenças” 102 , os jesuítas<br />

buscavam induzir os índios a abandonar os seus costumes que eram incompatíveis com a fé<br />

católica, como a poligamia, a nudez e a antropofagia. Muitas vezes os índios deixavam de<br />

praticar à antropofagia por simples respeito, ou reverência para com os padres, porém sem<br />

uma convicção profunda. Desse modo: “Se os gentios vizinhos os importunavam, recaíam” 103 .<br />

Deve-se assinalar que uma das maiores preocupações dos padres concernia aos índios recém-<br />

batizados, pois segundo os próprios padres, quando entregues a si próprios, esses índios<br />

voltam com extrema facilidade aos antigos hábitos antropofágicos. A esse fato, Simão de<br />

Vasconcelos nos relata que um padre da Companhia de Jesus adentrou no sertão, a procura de<br />

índios para catequizar, nisso, chegou numa aldeia, onde encontrou uma índia muito velha,<br />

segundo ele, “no último da vida”, e catequizou-a, lhe ensinado demoradamente “as cousas da<br />

fé”, porém ao final:<br />

“(…) Depois de haver-se cansado em cousas de tanta importância, atendendo à sua fraqueza, e fastio,<br />

lhe disse (falando a modo seu da terra): Minha avó (assim chamam às que são muito velhas) se eu vos<br />

dera agora um pequeno torrão de açúcar, ou outro bocado de conforto de lá de nossas partes do mar, não<br />

o comeríeis? Respondeu a velha, catequizada já! Meu neto, nenhuma cousa da vida desejo, tudo já me<br />

aborrece; só uma cousa me pudera abrir agora o fastio: se eu tivera uma mãozinha de um rapaz Tapuia<br />

de pouca idade tenrinha, e lhe chupara aqueles ossinhos, então me parece tomara algum alento: porém<br />

eu (coitada de mim) não tenho quem me vá frechar um destes” 104 .<br />

Nesse período inicial, a influência dos jesuítas não se estendia muito além das<br />

cercanias de seus colégios, onde eram amparados pelas autoridades coloniais, pois em suas<br />

aventuras pelo interior, viam que não era fácil fazer os índios largarem seus costumes, seus<br />

hábitos e seu modo de viver, para passar a viver de acordo com as normas (preceitos) da<br />

civilização européia. Os padres obtinham sucesso em sua empreitada, quando conseguiam<br />

102 NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 45.<br />

103 LEITE, Serafim. Op. cit., p. 40.<br />

104 VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. 3ª. Ed. Petrópolis: Vozes e INL, 1977, vol.<br />

1, p. 200 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 94.<br />

48


convencer os índios, a deixar batizar o cativo prestes a ser imolado, a enterrar o mesmo, a<br />

moda cristã; quando conseguiam resgatar os cativos que estavam destinados a esse fim, porém<br />

muitos índios, não vendiam os seus cativos, pelo mesmo motivo já citado 105 . Outro motivo<br />

para a recaída dos índios, segundo os padres, era o mau exemplo que alguns colonos<br />

praticavam, inclusive, contemporizavam e tornaram-se em certa medida cúmplices da prática<br />

antropofágica, pois entregavam aos chefes índios outros contrários, quer a troco de vantagens<br />

comerciais ou políticas, quer para dividir mais os índios entre si 106 . O padre Manuel da<br />

Nóbrega mostrou insatisfação com o tratamento violento que os índios recebiam por parte de<br />

alguns colonos portugueses, já nos primeiros meses após sua chegada no Brasil.<br />

Os monarcas, tanto dos de Aviz como os de Habsburgo, tiveram de criar leis que<br />

protegiam e impediam a pura e simples escravização do gentio sem uma justa causa, pois<br />

estes monarcas eram impelidos por considerações morais e teológicas a reconhecer a<br />

“humanidade” dos índios, e a levar a sério à obrigação que a coroa tinha de convertê-los a fé<br />

católica 107 , pois este é um dos motivos que levou o papa Alexandre VI, através de uma bula<br />

Inter Caetera (4 de maio de 1493), a dividir o domínio da América entre Portugal e Espanha.<br />

Porém mesmo com essas leis que regulavam a escravidão indígena, os colonos lançavam mão<br />

de várias formas de coerção para obter em seu beneficio o trabalho escravo indígena. A<br />

catequese e a civilização se constituem nos princípios centrais de todo o projeto de<br />

colonização: “justificam o próprio ald<strong>ea</strong>mento, a localização das aldeias, as regras de<br />

repartição da mão-de-obra ald<strong>ea</strong>da, tanto a administração jesuítica quanto a secular, a<br />

escravização e o uso da força em alguns casos” 108 . Desse modo, durante todo o período<br />

colonial, o governo português, no que concerne a legislação sobre os indígenas, oscilou entre<br />

os interesses dos colonos, que desejavam escravizar os índios e os esforços dos missionários<br />

jesuítas que tinham por objetivo convertê-los ao cristianismo e ao mesmo tempo fazê-los<br />

adotar os costumes dos civilizados. Por isso, segundo B<strong>ea</strong>triz Perrone-Moisés, a legislação e a<br />

política da Coroa portuguesa em relação aos povos indígenas do Brasil colonial, deve ser<br />

qualificada, por três adjetivos: “contraditória, oscilante e hipócrita” 109 .<br />

No regimento do primeiro governador geral, Tomé de Sousa, já existia essa<br />

contradição. Em tal regimento se dizia que a conversão dos indígenas constituía o motivo do<br />

105<br />

LEITE, Serafim. Op. cit., p. 38.<br />

106<br />

Ibid., p. 37.<br />

107<br />

SCHWARTZ, Stuart B. Op. Cit., p. 46.<br />

108<br />

PERRONE-MOISÉS, B<strong>ea</strong>triz. Índios livres e índios escravos: Os princípios da legislação indigenista do<br />

período colonial (séculos XVI-XVIII). In: Cunha, Manuela Carneiro da. (Org.). História dos Índios do Brasil.<br />

2ª. ed. São Paulo: Cia. das letras, 1998, p. 115-132, p. 122.<br />

109<br />

PERRONE-MOISÉS, B<strong>ea</strong>triz. Op. cit., p. 115.<br />

49


povoamento do Brasil. Recomendando que fossem bem tratados e que, se sofressem algum<br />

dano, lhes fosse concedida toda a reparação, punindo-se os responsáveis. Mas o mesmo<br />

documento permitia que se desse combate aos índios que agissem como inimigos, que se os<br />

matassem e fossem feitos prisioneiros. 110<br />

“Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para [que] a gente<br />

dela se convertesse à nossa Santa Fé Católica, vos encomendo muito que para isso se pode ter, e de<br />

mina parte lhe direis que lhes agradecerei muito terem especial cuidado de os provocar a serem cristãos,<br />

e para eles mais folgarem de o ser, tratem bem todos os que foram de paz, e os favoreçam sempre, e não<br />

consintam que lhes seja feita opressão nem agravo algum e fazendo-se-lhe lho façam corrigir e emendar<br />

de maneira que fiquem satisfeitos e as pessoas que lhas fizerem sejam castigadas com for justiça” 111 .<br />

Um dos pilares dessa legislação indigenista da Coroa portuguesa consistia na divisão<br />

(diferenciação) dos índios em duas grandes categorias, que teriam tratamento diferenciado:<br />

índios aliados e índios inimigos, que se tornariam respectivamente, ald<strong>ea</strong>dos e escravos. 112<br />

Os ald<strong>ea</strong>mentos indígenas foram id<strong>ea</strong>lizados pelo padre Nóbrega no século XVI, “mas<br />

o grande mentor e principal responsável pelas diretrizes básicas que orientavam seu<br />

funcionamento foi o padre Vieira” 113 . A construção e o funcionamento dos ald<strong>ea</strong>mentos,<br />

interessava a diversos grupos sociais na Colônia, contudo, cada um desses grupos tinha uma<br />

expectativa diferente:<br />

“Espaço de sobrevivência no mundo colonial para os índios, os colonos as viam como amplas<br />

possibilidades de acesso à mão de obra ou a um exército de fiéis seguidores particulares, que seus<br />

parcos rendimentos não permitiam adquirir no mercado de escravos negros; enquanto para a Coroa,<br />

além da garantia da soberania da região, deviam fornecer braços necessários para cumprir muitos e<br />

indispensáveis serviços de Sua Majestade” 114 .<br />

Os jesuítas concebiam os ald<strong>ea</strong>mentos como uma forma de proteção dos índios perante<br />

a fugaz ganância dos colonos, mas também, como um local mais propício para o trabalho<br />

catequético, pois os indígenas estariam sob a supervisão constante dos padres. O trabalho dos<br />

padres recebeu apoio de autoridades públicas: Mem de Sá, terceiro Governador Geral do<br />

Brasil promulgou uma lei, que proibia os índios ald<strong>ea</strong>dos de entrar em guerra com os<br />

portugueses, entrar em guerra contra seus contrários sem autorização do governador, a<br />

proibição em absoluto da antropofagia, cujo quem desobedecesse tal deliberação seria<br />

110 MELATTI, Julio César. Op. cit., p. 186.<br />

111 Regimento de Tomé de Sousa (17/12/1548). In: TAPAJÓS, História Administrativa do Brasil, v.2, p. 263<br />

apud EISENBERG, José de. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais,<br />

aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, p. 63. Grifos do autor.<br />

112 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 72.<br />

113 Ibid., p. 131.<br />

114 Ibid., p. 198.<br />

50


castigado severamente, podendo inclusive ser condenado à morte 115 , as migrações estavam<br />

proibidas, os pajés não seriam aceitos, os índios deveriam vestir roupas, de resto, os índios<br />

ficavam sujeitos às mesmas leis que os portugueses. 116<br />

“A nominação r<strong>ea</strong>lmente importante para as políticas da catequese não é aquela que pespega nomes<br />

próprios às unidades do gentio. (…) esta nominação é produzida por determinações políticas, assim<br />

como a nominação das tribos é engolida, porque facilita a sua distribuição no espaço e permite também<br />

uma adjetivação político-militar e religiosa – ‘inimigos, aliados, cristãos’” 117 .<br />

Os índios aliados tinham à sua liberdade garantida, salvo em algumas exceções, os<br />

portugueses os consideravam povos estratégicos. A principal função destes índios aliados era<br />

a de lutar nas guerras movidas pelos portugueses contra índios hostis e estrangeiros, ou seja,<br />

esses índios formavam uma barreira (podemos dizer, uma linha de defesa) à penetração de<br />

inimigos de todo tipo. 118 A política determinava que a priori, estes índios tinham de ser<br />

“descidos” de suas aldeias localizadas no interior (sertão) para os ald<strong>ea</strong>mentos que se<br />

localizavam próximos de povoações portuguesas, onde nesses ald<strong>ea</strong>mentos, deviam ser<br />

catequizados e civilizados pelos jesuítas a fim de servirem de defesa contra inimigos e de<br />

mão-de-obra remunerada, “por períodos não superiores a dois meses contra o recebimento de<br />

uma remuneração digna por seu trabalho” 119 – quanto à forma de pagamento dos indígenas<br />

por seu trabalho, temos que “eram variados, podendo ser em espécie, sobretudo em rolos de<br />

algodão, ou em dinheiro” 120 –, quanto este for solicitada pelos moradores (colonos).<br />

No que se refere aos descimentos, temos que estes são concebidos como deslocamento<br />

de povos indígenas para novas aldeias permanentes que se localizavam próximas de<br />

povoações portuguesas. De acordo com a lei, o descimento deve resultar da persuasão, ou<br />

seja, devem ser voluntários, e não exercido por meio da violência. Este empreendimento<br />

deveria ser liderado ou acompanhado por um missionário, cuja tarefa era a de convencer os<br />

índios do sertão, que era de seu interesse, ald<strong>ea</strong>r-se junto aos portugueses, para sua própria<br />

segurança e bem-estar. Este convencimento, geralmente era seguido da celebração de pactos,<br />

onde eram garantidos aos índios: a sua liberdade nas aldeias, à posse de suas terras, os bons<br />

tratos por parte dos colonos e que o seu trabalho seria remunerado. 121<br />

115 LEITE, Serafim. Op. cit., p. 40.<br />

116 EISENBERG, José de. Op. Cit., p. 113.<br />

117 NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 48.<br />

118 PERRONE-MOISÉS, B<strong>ea</strong>triz. Op. cit., p. 121.<br />

119 MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p. 132.<br />

120 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 209.<br />

121 PERRONE-MOISÉS, B<strong>ea</strong>triz. Op. cit., p. 118.<br />

51


“(…) a am<strong>ea</strong>ça de extermínio e de escravização somada as dificuldades crescentes de sobrevivência nos<br />

sertões – em virtude de guerras intensas com seus contrários e estrangeiros, da diminuição de terras<br />

livres, das alterações no meio ambiente e, consequentemente, das dificuldades cada vez maiores na<br />

exploração dos recursos naturais – foram com certeza, as molas mestras que incentivavam os índios a<br />

ald<strong>ea</strong>r-se” 122 .<br />

Com relação aos índios que eram considerados inimigos, temos que a sua liberdade<br />

não era garantida como aos considerados aliados, sendo o seu destino mais provável a<br />

escravização, cujo processo mais lícito para tal finalidade era a guerra justa, mas também<br />

eram considerados escravos os índios resgatados. O resgate tinha por finalidade salvar a vida<br />

e a alma dos índios “presos à corda”, ou seja, os indivíduos que eram capturados em guerras<br />

inter-tribais, cujo destino era serem devorados no ritual antropofágico. Porém, esse índio<br />

resgatado não era escravizado pelo resto de sua vida, sua escravidão era temporária, e durava<br />

em média dez anos, e se justificava na questão que esse índio devia pagar com trabalho o seu<br />

resgate (vida). 123<br />

Quanto à questão da guerra justa, tem-se que ela deve ser aplicada contra os povos,<br />

que não tendo conhecimento prévio da fé, não podem ser tratados como infiéis. Para justificar<br />

esse que é considerado pela Coroa como último recurso e que só é legitimado pelos motivos<br />

de: “recusa a conversão ou impedimento da propagação da fé, a prática de hostilidades contra<br />

portugueses ou seus aliados e a quebra de pactos celebrados” 124 , os colonizadores (colonos)<br />

têm que provar a inimizade dos povos a quem pretendem mover guerra. Para tanto, descrevem<br />

longamente a fereza, a crueldade e a barbaridade dos contrários, que nada, nem ninguém<br />

podem trazer a razão ou a civilização. Segundo B<strong>ea</strong>triz Perrone-Moisés, nos documentos<br />

relativos à guerra justa, deve-se provar a existência de um inimigo r<strong>ea</strong>l, o que<br />

conseqüentemente leva a crer, que a maioria desses inimigos foram inventados ou id<strong>ea</strong>lizados<br />

pelos colonos, que tinham por finalidade, obter mão-de-obra escrava para seus<br />

empreendimentos. Dessa forma, foram muitos os abusos cometidos pelos colonos, segundo<br />

Lestringant: “Bastava declarar antropófaga a mais pacifica das tribos para justificar a sua<br />

redução à escravidão, o que, em termos, significava seu aniquilamento” 125 ; segundo Monteiro:<br />

“Para os portugueses qualquer ato hostil se configurava como pretexto suficiente para<br />

condenar todos os índios ao cativeiro ou a extinção” 126 .<br />

A questão da Antropofagia é uma das questões mais complicadas e controversas, no<br />

que diz respeito à justificação de uma guerra justa. Para B<strong>ea</strong>triz Perrone-Moisés, as opiniões<br />

122<br />

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 97.<br />

123<br />

PERRONE-MOISÉS, B<strong>ea</strong>triz. Op. cit., p. 127-128.<br />

124<br />

Ibid., p. 123.<br />

125<br />

LESTRINGANT, Frank. Op. cit., p. 52.<br />

126<br />

MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p. 92.<br />

52


favoráveis à justificativa da antropofagia datam de um tratado português anônimo de m<strong>ea</strong>dos<br />

do século XVI intitulado “Por que se pode mover guerra justa contra infiéis”, que se apóia na<br />

argumentação de que, sendo a antropofagia uma ofensa à lei natural, é passível de justificação<br />

uma guerra. Igualmente favorável ao parecer de que a antropofagia justifica uma guerra é<br />

Molina, mas por outras razões: “suas vítimas são inocentes, e a defesa de inocentes justifica<br />

não só a guerra, como também a escravização” 127 . Contudo, constata-se através de<br />

documentação oficial, pois apenas a Provisão de 17/10/1693, aponta como motivo de guerra<br />

justa a prática antropofágica, ou seja, – segundo, B<strong>ea</strong>triz Perrone-Moisés:<br />

“(…) não parece que a antropofagia fosse considerada uma causa suficiente para se mover uma guerra<br />

justa, mas ela era considerada um agravante, quando a principal causa, esta sim, juridicamente<br />

fundamentada de modo claro e inconteste, seria a existência de hostilidades prévias por parte dos<br />

indígenas” 128 .<br />

Quanto à administração dessas aldeias, em princípio elas seriam administradas pelos<br />

jesuítas, depois sua administração foi dividida, ficando os jesuítas com a jurisdição espiritual,<br />

enquanto que <strong>leigos</strong> eram nom<strong>ea</strong>dos capitão de aldeia e eram encarregados do governo<br />

temporal e depois dos jesuítas, serem expulsos dos domínios portugueses, a administração das<br />

aldeias passa para as mãos de <strong>leigos</strong>. Quanto à administração e o caráter dos ald<strong>ea</strong>mentos,<br />

temos que:<br />

“A administração das aldeias é o objeto de muitas discussões e um dos pontos em que se encontra,<br />

r<strong>ea</strong>lmente, uma grande oscilação. Na pessoa dos administradores das aldeias, encontram-se investidos<br />

os dois grandes motivos de toda a colonização, marcados, na prática, pela contradição: a conversão e<br />

civilização dos índios e a sua utilização como mão-de-obra essencial (…). O ald<strong>ea</strong>mento é a r<strong>ea</strong>lização<br />

do projeto colonial, pois garante a conversão, a ocupação do território, sua defesa e uma constante<br />

reserva de mão-de-obra para o desenvolvimento da colônia” 129 .<br />

A par de tudo isso, constata-se que nas “relações entre índios e os europeus não resta<br />

dúvida que os primeiros perdiam sempre e muito, contudo é possível perceber que colaborar<br />

com os portugueses podia significar estratégia de negociação das perdas” 130 . Ao ingressar nas<br />

aldeias, os índios tinham a sua liberdade garantida, mas em contrapartida:<br />

“(…) viviam em condição subordinada, sujeitos ao trabalho compulsório, eram misturados com outros<br />

grupos étnicos e sociais, viam reduzir-se as terras as quais tinham acesso, e expunham-se as altas taxas<br />

de mortalidade provocadas por epidemias, guerras intensas e maus tratos. Além de tudo, submetiam a<br />

nova ordem que lhes proibia o uso de certas práticas culturais e os incentivava a abandonar suas<br />

tradições e incorporar novos valores, como parte do processo de transformá-los em súditos cristãos” 131 .<br />

127<br />

PERRONE-MOISÉS, B<strong>ea</strong>triz. Op. cit., p. 124.<br />

128<br />

Ibid., p. 124-125.<br />

129<br />

Ibid., p. 120.<br />

130<br />

ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 66.<br />

131 Ibid., p. 129.<br />

53


Das diversas formas de exploração levadas a cabo pelos colonos, “nenhuma resultou<br />

satisfatória e, igualmente, todas tiveram um impacto negativo sobre as sociedades indígenas,<br />

contribuindo para a desorganização social e o declínio demográfico dos povos nativos” 132 .<br />

A desestruturação das sociedades indígenas, ocorria de forma acelerada no interior dos<br />

ald<strong>ea</strong>mentos, pois nesses, misturavam-se diferentes tradições (culturas) indígenas, com o<br />

objetivo, não de estabelecer diferenças entre elas, mas de reduzi-las a uma homogeneidade 133 ,<br />

pois dessa forma, seria mais fácil fazê-las incorporar as tradições e costumes cristãos. O<br />

mesmo processo ocorreu com a língua tupi, chamada também de brasílica ou geral.<br />

Os ald<strong>ea</strong>mentos, em tese, proporcionavam uma estrutura de base para a reprodução da<br />

força de trabalho, contudo a forma de utilização dessa mão-de-obra indígena foi marcada por<br />

disputas entre padres e colonos, mas a despeito de tudo isso, os ald<strong>ea</strong>mentos mostravam-se<br />

incapazes de suprir o mercado de trabalhadores porque eram nos ald<strong>ea</strong>mentos onde surgiam<br />

vários surtos de doenças que dizimavam populações indígenas inteiras, pois estas não tinham<br />

resistência alguma às doenças trazidas pelos europeus (choque microbiano). Dessa forma, as<br />

doenças como gripe, catapora, varíola, sarampo, entre outras, se constituem na principal arma<br />

usada pelos europeus, mesmo eles não tendo consciência disso, na conquista da América, ou<br />

seja, a superioridade militar européia deve ser relativizada: “se considerarmos a imensa<br />

maioria de indígenas e as limitações técnicas de época. Entre um e outro tiro de arcabuz,<br />

voavam milhares de flechas envenenadas com curare” 134 .<br />

Ocorreu na América uma verdadeira hecatombe demográfica que dificilmente pode ser<br />

comparada com outros acontecimentos. O brutal despovoamento do continente americano se<br />

deve mais as doenças, que tiveram um efeito devastador nas populações indígenas, do que as<br />

atrocidades cometidas, principalmente pelos espanhóis, pois segundo Todorov: “(…) não que<br />

os espanhóis fossem piores que os outros, simplesmente foram eles que ocuparam então a<br />

América. Nenhum outro colonizador teve a oportunidade de causar a morte de tanta gente ao<br />

mesmo tempo” 135 . Todorov segue dizendo que “se a palavra genocídio foi alguma vez<br />

aplicada com precisão a um caso, então é esse” 136 , pois a queda populacional chega à margem<br />

dos 90%. Como exemplo desse brutal decréscimo populacional, temos a seguinte estimativa:<br />

“Warren D<strong>ea</strong>n estimou que dos aproximadamente 103 mil tupinambás que viviam em 1501<br />

132 MONTEIRO, John Manuel. Op. cit., p. 18.<br />

133 NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 161.<br />

134 ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., p. 57.<br />

135 TODOROV, Tzvetan. Op. cit., p. 129.<br />

136 Ibidem.<br />

54


nos arredores da capitania do Rio de Janeiro apenas 7 mil restaram no ano de 1600” 137 , ou<br />

seja, uma queda da população indígena na ordem de 93.2% em um século de contato com os<br />

portugueses. Em outros pontos da América portuguesa, como na Bahia, ocorreram<br />

devastadoras epidemias de varíola que ceifaram a vida de milhares de indígenas entre os anos<br />

de 1562 e 1563.<br />

“A varíola dizimou a população silvícola, sendo responsável pela extinção de muitas tribos. Para isso<br />

concorreu o procedimento odioso de muitos dos colonos. Depois das revoltas de algumas tribos<br />

indígenas na capitania da Bahia, muitos brancos, desejosos de exterminá-las, não hesitavam em mandar<br />

atirar à beira das matas colchões e cobertas que haviam servido a escravos vitimados pelas bexigas. Os<br />

índios ignorantes arrecadavam esses despojos para aproveitá-los e assim, criminosamente, se<br />

propagavam pelo sertão epidemias trágicas, de aniquiladores efeitos” 138 .<br />

No que se refere às estratégias utilizadas pelos padres jesuítas para converter os índios<br />

ao cristianismo, temos que elas se concentram em três pontos: a conversão dos principais, a<br />

doutrinação dos jovens, principalmente as crianças (curumins) e a eliminação dos pajés.<br />

Quanto à conversão dos principais, os jesuítas se desapontaram, pois achavam que estando<br />

eles convertidos ao cristianismo, o restante dos índios seguiriam o mesmo caminho, mas os<br />

próprios padres perceberam que isso não ocorria porque o principal indígena não tinha grande<br />

poder perante seus “subordinados” para obrigá-los a se converterem. Quanto às crianças:<br />

“A ideologia pedagógica jesuítica parece, também aqui, um momento de transição. Ela encara a criança<br />

como criança no sentido medieval, na medida, em que acha que o adulto é uma “continuação” da<br />

criança – ou: a criança é um pequeno adulto. Mas também encara a criança como algo autônomo no<br />

sentido de que é capaz de transformar – e fiscalizar – os padrões culturais de seus ancestrais” 139 .<br />

A eliminação dos pajés ou feiticeiros era considerada pelos jesuítas como fundamental<br />

para a conversão dos indígenas ao cristianismo, pois os pajés eram os guardiões da cultura e<br />

das tradições indígenas, as quais os jesuítas queriam extirpar e alterar (adaptar).<br />

“Um índio adquiria o status de pajé ao demonstrar habilidades mágicas e capacidade de comunicar-se<br />

com os espíritos. Qualquer pessoa que cumprisse esses pré-requisitos poderia assumir o papel de pajé. A<br />

primeira habilidade necessária para que uma pessoa se tornasse pajé era o domínio da arte da sucção. A<br />

sucção era a principal técnica usada pelos índios para tratar as doenças contraídas através do contato<br />

com plantas e animais da floresta. O pajé também devia ser perito em técnicas mais imateriais como o<br />

canto e a magia. As maracás eram potes de cerâmica com poderes medicinais e mágicos, que estes<br />

curandeiros usavam para predizer o tempo e o futuro. Os índios acreditavam que os pajés que<br />

conseguiam utilizar as maracás com sucesso eram capazes de se comunicar com os espíritos, habilidade<br />

essa também manifestada através de cantos”.<br />

137 LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. “Bartolomé de lãs Casas e a lenda negra”. In: VAINFAS, Ronaldo (Org.).<br />

América em tempo de Conquista. Rio de Janeiro: Zahar, 1992, p. 112 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p.<br />

129.<br />

138 VIVALDO, Coaracy. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio,<br />

1965, p. 356.<br />

139 NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 96.<br />

55


“Em alguns casos a reputação do pajé se tornava tão grande que ele passava a ser reconhecido por tribos<br />

vizinhas. Esses homens, chamados de caraíbas ou pajé-guaçu, eram tratados como profetas pelas tribos<br />

da região onde moravam. Eles geralmente viviam afastados das comunidades e atendiam doentes em<br />

várias tribos. Existem relatos que descrevem esses caraíbas liderando migrações em massa de índios<br />

Tupi em busca de um paraíso terrestre, a terra sem-mal chamada por eles de yuy mara ey” 140 .<br />

Por isso, os pajés não foram aceitos nos ald<strong>ea</strong>mentos, mas mesmo assim eles não<br />

deixaram de importunar os jesuítas, pois eles se aproveitavam da alta taxa de mortalidade<br />

dentro dos ald<strong>ea</strong>mentos para espalhar a notícia de que a água batismal utilizada pelos padres<br />

para incorporar os índios ao cristianismo era a responsável, ou seja, a causa das doenças.<br />

Mesmo parecendo algo contraditório, as doenças ou epidemias que ocorriam com certa<br />

freqüência nos ald<strong>ea</strong>mentos favoreciam a doutrinação cristã, pois propiciavam aos jesuítas a<br />

encomenda da alma dos indígenas ao céu, principalmente, no momento privilegiado do limiar<br />

da morte, pois nessas condições, “uma vez batizados, os moribundos não podiam mais<br />

reincidir nos antigos costumes. Eliminava-se, dessa forma, o tão combatido traço cultural: a<br />

inconstância” 141 . Dessa forma, “Os pajés foram sendo ofuscados pelos missionários que<br />

passaram a assumir a cura das doenças e o preparo do moribundo para a morte” 142 .<br />

Os jesuítas ao aproximar o batismo da morte, tinham por objetivo alterar o vínculo que<br />

os indígenas tinham com a morte, sua simbologia e suas imbricações (conseqüências), ou seja,<br />

os padres procuraram introduzir, ou melhor, substituir o modelo de sobrenatural (pós-morte)<br />

indígena pelo seu modelo de sobrenatural (pós-morte) cristão. Para os índios tupi-guarani:<br />

“(…) morrer tinha o sentido de ingressar novamente no plano coletivo, mas elevado à última potência,<br />

um coletivo indiviso. Para os cristãos, entretanto, a morte, excetuando-se a dos santos e mártires que<br />

formavam uma comunidade ao lado de Deus, dava continuidade ao destino solitário vivido na terra. Em<br />

oposição ao mundo indígena, a morte cristã significava sofrimento e purgação pelos atos cometidos em<br />

vida, cuja responsabilidade recaía exclusivamente sobre cada indivíduo” 143 .<br />

A morte para os indígenas, principalmente os guerreiros, do tronco tupi-guarani,<br />

relacionava-se diretamente com o ritual antropofágico, pois esta morte ritual era a morte id<strong>ea</strong>l<br />

almejada por todo guerreiro indígena, pois ela significava a consagração máxima do<br />

guerreiro. Essa morte era pautada pelo sentimento de vingança, que se constituí num dos<br />

elementos fundantes da sociedade indígena. A consumação da vingança possibilitava ao<br />

guerreiro adquirir um novo status em sua sociedade, mas mais importante que isso, ela<br />

“reforçava o vínculo com os antepassados, com o mundo dos mortos. Em última instância, a<br />

140 EISENBERG, José de. Op. cit., p. 68.<br />

141 KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 100.<br />

142 Ibid., p. 102.<br />

143 Ibid., p. 170.<br />

56


esfera o sobrenatural regia e nort<strong>ea</strong>va o mundo dos vivos, assegurando a ordem social” 144 .<br />

Esta morte é contraposta com a morte natural, a morte não desejada, pois ela não tinha nada<br />

de gloriosa, pois ao invés de “ressaltar os valores guerreiros, punha a nu a interface frágil da<br />

condição humana” 145 , por isso, segundo Fernão Cardim: “(…) alguns andam tão contentes de<br />

ser comidos que por nenhuma via consentirão ser resgatados para servir, porque dizem que é<br />

triste cousa morrer, e ser fedorento e comido de bichos” 146 . Isso é importante, pois o tipo da<br />

morte que o individuo (indígena) tiver decidirá o seu destino, pois a religião tupi-guarani<br />

gravita em torno da crença de uma outra vida após a morte, onde não há dor e miséria, ou<br />

seja, a crença da terra sem mal, sendo que, “Todas as atenções dos vivos convergiam para este<br />

lugar (…)” 147 , desse modo:<br />

“(…) os covardes e os homens que nunca mataram nenhum inimigo, o destino lhes reservara a<br />

mortalidade da alma, o apodrecimento do corpo seguido da necrofagia de Anhã, e, como castigo, a<br />

transformação em uma existência espectral, que não conservava nada de humano, somente a vida na<br />

terra. Por sua vez, aos guerreiros valorosos que aprisionaram e mataram muitos inimigos, ou, ainda as<br />

mulheres dedicadas ao preparo da carne dos prisioneiros e à sua ingestão, era permitido o ingresso a<br />

essa vida id<strong>ea</strong>l coroada pelo convívio com os antepassados, deuses e heróis-civilizadores” 148 .<br />

O processo de catequização empregado pelos jesuítas, ao desestruturar as tradições<br />

indígenas, implantou um novo modelo de além (mundo dos mortos), verticalizado e<br />

enquadrado de acordo com a topografia tripartida cristã: céu, inferno e purgatório 149 .<br />

Alterando, dessa forma, significativamente o circuito dos vivos com os mortos e vice-versa do<br />

modelo de além indígena, sobretudo na hora da morte:<br />

“Invertia-se então o circuito vivenciado pelos índios. Os vivos passariam a exercer o controle sobre os<br />

mortos, cuja função ficaria restrita a anunciar a geografia do além e alertar os vivos para as mazelas de<br />

um pecador ou, no caso dos santos, para a recompensa que estaria reservada a um bom exemplo de<br />

vida” 150 .<br />

Contudo, os indígenas não aceitaram de imediato essa mudança, ela foi lentamente<br />

incorporada as suas tradições, principalmente “quando a existência dos índios deixou de ser<br />

tribal e coletiva” 151 . Houve então, certa resistência a essa mudança, manifestada<br />

principalmente por meio da perpetuação de ritos, costumes tribais e confronto bélico. Ao<br />

144<br />

Ibid., p. 27.<br />

145<br />

Ibid., p. 28.<br />

146<br />

FERNÃO, Cardim. Tratado da terra e da gente do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/EDUSP,<br />

1980, p. 96 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 28.<br />

147<br />

KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 34.<br />

148<br />

Ibidem.<br />

149<br />

O purgatório, embora estivesse inserido na cartografia do além da igreja durante o século XVI, só tornou-se<br />

foco de preocupações dos índios e colonos a partir do século XVII. KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 150.<br />

150<br />

Ibid., p. 170.<br />

151 Ibid., p. 144.<br />

57


serem proibidos pelas autoridades portuguesas de “fazer a guerra para capturar prisioneiros e<br />

sacrificá-los, eles iam aos cemitérios das tribos vizinhas desenterrar crânios que enfeitavam<br />

com plumas e, em seguida, destruíam solenemente” 152 .<br />

“Todavia, o funeral cristão, sem resquício da espiral de vingança em torno da qual gravitava a morte<br />

para os tupi-guarani, não foi facilmente adotada pelos índios. Segundo Yves d’Evreux, os tupinambá<br />

desenterraram uma escrava tapuia que estava “amortalhada a maneira dos cristãos (…), quebraram-lhe a<br />

cabeça e roubaram o pano de algodão de sua mortalha” 153 .<br />

Para perpetrar essa e outras mudanças no mundo indígena, os jesuítas se apropriaram<br />

de elementos do próprio universo indígena. Curiosamente, segundo Eisenberg, os jesuítas,<br />

encontraram em alguns mitos e costumes dos índios tupi no caso do Brasil e guarani no caso<br />

da América hispânica (Paraguai), reminiscências e semelhanças de histórias do cristianismo,<br />

ou seja, para os padres os indígenas já “haviam tido algum tipo de conhecimento da fé cristã<br />

no passado e que haviam perdido essa informação com o passar do tempo” 154 . Para justificar<br />

esse prévio conhecimento do cristianismo por parte dos indígenas, os padres diziam que<br />

Sumé, um dos inúmeros personagens da cosmologia tupi, que personifica “a figura mitológica<br />

de um homem de barbas brancas que teria ensinado diversas coisas úteis aos índios, inclusive<br />

o cultivo da mandioca” 155 , era na verdade o apostolo Tomé, que tinha atravessado o oc<strong>ea</strong>no<br />

com o objetivo de pregar a palavra de Deus aos habitantes de um continente que até o<br />

alvorecer do século XVI era desconhecido dos europeus. Os índios tupi, segundo os padres,<br />

também tinham conhecimento do dilúvio bíblico, e da existência do paraíso (terra sem mal),<br />

porém a narrativa indígena divergia em alguns pontos da verdadeira história, então “Se as<br />

histórias dos índios são também cristãs, a única coisa a ser feita era uma correção que<br />

eliminasse as imperfeições introduzidas pela transmissão oral das suas narrativas” 156 . Outro<br />

ponto explorado pelos padres era a associação de entidades do sobrenatural indígena com<br />

divindades e entidades da cosmologia cristã. Dentre a imensa gama de seres sobrenaturais<br />

oferecida pelo politeísmo tupi, dois ganharam destaque e importância: Tupã e Anhã ou<br />

Anhangá, pois foram respectivamente associados, pelos jesuítas a Deus e ao Diabo.<br />

“Em primeiro lugar, Tupã é um ser sobrenatural em que somente os índios que falam língua do tronco<br />

Tupi acreditam. Os demais indígenas não conhecem Tupã, pelo menos antes do contato com os<br />

152 Alfred Métraux. La civilisation materiélle dês tribus tupi-guarani. Paris: Librairie Orientaliste Paul<br />

Gurthner, 1928, p. 268 apud KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 26-27.<br />

153 Yves d’Evreux. Viagem ao Norte do Brasil feita nos annos de 1613 a 1614. Tradução e introdução de<br />

Fernando Diniz. Rio de Janeiro: Depositários Freitas Bastos e Cia. e Livraria Leite Ribeiro, 1929, p. 259 apud<br />

KOK, Maria da Glória. Op. cit., p. 103.<br />

154 EISENBERG, José de. Op. cit., p. 73.<br />

155 MESGRAVIS, Laima. Op. cit., p. 46.<br />

156 EISENBERG, José de. Op. cit., p. 75.<br />

58


civilizados [europeus]. Em segundo lugar, mesmo para os índios do Tronco Tupi, o ser que denominam<br />

Tupã não e considerado de modo nenhum o principal dos entes sobrenaturais. Para eles Tupã é como<br />

que um demônio que controla o raio e o trovão, podendo por isso provocar morte e destruição [por isso<br />

o imenso respeito que os índios tinham para com esse ser]” 157 .<br />

Frente a essa pequena exposição, pode-se caracterizar, o imenso projeto de<br />

colonização do Novo Mundo, ensejado principalmente pelos países ibéricos, nos seguintes<br />

termos: “o violento choque de civilizações, a empresa missionária, a escravização e o<br />

morticínio em massa” 158 . O processo de colonização do Novo Mundo caracteriza-se por um<br />

canibalismo generalizado, o qual inverteu a lógica do canibalismo e quem o praticava, pois os<br />

europeus em busca de riquezas (ouro) proibiram os índios de praticar a antropofagia, pois<br />

consideravam essa prática bárbara e indigna de um homem cristão e civilizado, no entanto,<br />

mesmo não comendo a carne dos mortos, os europeus praticaram uma espécie de canibalismo<br />

que não apresentava nenhum resquício da generosidade que existia no canibalismo indígena:<br />

o canibalismo mercantil 159 . Segundo Lestringant:<br />

“O escândalo do morto que é devorado dá lugar a um mais insuportável – dos vivos que são deglutidos.<br />

O comércio de tráfico negreiro, a usura, a corvéia, a tortura judiciária, tantas maneiras de devorar seu<br />

semelhante, para não falar da guerra de conquista e da razia de escravos que foi moeda corrente das<br />

primeiras décadas da expansão européia nos além-mares” 160 .<br />

Os europeus, ao rotularem os indígenas de bárbaros, selvagens, animais, etc., e suas<br />

práticas e costumes de irracionais e indignos de homens cristãos e civilizados, procuravam se<br />

diferenciar dos indígenas, os caracterizando como seres inferiores e justificar a dominação<br />

desses seres inferiores (indígenas) e de suas terras, não apenas em proveito próprio, mas em<br />

proveito dos índios, pois eles seriam trazidos à civilização: “A civilização é vista no século<br />

XVI como um modo de aperfeiçoamento do ser humano, um conjunto de instrumentos que o<br />

esculpe e o lapida. Modela alguma coisa que, em principio é rude, tosca, vulgar” 161 e ao<br />

conhecimento da verdadeira fé, o cristianismo, o qual serviu de justificação para grande parte<br />

das atrocidades cometidas contra os indígenas, principalmente pelos espanhóis.<br />

“Os europeus não eram iguais aos ameríndios: a superioridade dos primeiros respaldava a conquista, a<br />

colonização e a catequese. Os nativos desconheciam o cristianismo, menosprezavam o ouro e a idéia de<br />

trabalho tal como concebida pelos colonizadores. Portando eram considerados seres degenerados,<br />

decaídos e necessitados da intervenção européia para tomar os rumos de uma vida melhor, uma vida<br />

pautada nos mesmos princípios e valores da cultura ocidental” 162 .<br />

157<br />

MELATTI, Julio César. Op. cit., p. 141.<br />

158<br />

GREENBLATT, Stephen. Op. Cit., p. 76.<br />

159<br />

LESTRINGANT, Frank. Op. cit., p. 162.<br />

160<br />

Ibid., p. 19.<br />

161<br />

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 50.<br />

162<br />

RAMINELLI, Ronald. Op. cit., p. 13.<br />

59


Duas foram as principais maneiras que os europeus se utilizaram para reforçar a<br />

imagem do índio como um ser bárbaro sem o menor indício de civilidade e conhecimento do<br />

cristianismo, a escrita, personificada nos relatos dos viajantes e as imagens – produção<br />

pictórica. Existem diferenças no modo de representação dos indígenas e seus costumes, como<br />

a prática antropofágica, entre o relato e a imagem, principalmente no que se refere ao papel da<br />

mulher neste rito, como já foi explicitado. Não me aterei na análise das imagens, mesmo que<br />

eles permeiem o texto, como ocorre na obra de Hans Staden – segundo Belluzo, as<br />

xilogravuras na obra de Staden tornam seu relato mais verossímil, pois “essas imagens<br />

respondem ao desejo de construir a r<strong>ea</strong>lidade e demonstram o encontro da experiência do<br />

viajante com as coisas que lhe são reveladas [choque cultural entre os costumes europeus e os<br />

indígenas]” 163 . Com relação aos relatos, temos que seus autores, descrevem as práticas e<br />

costumes das mais variadas etnias indígenas, contudo:<br />

“É preciso considerar também que, apesar do que afirmam os autores desses relatos, eles também<br />

acabaram servindo – ao porem em evidência as diferenças – para criar e reforçar idéias de uma natural<br />

superioridade européia, fazendo parte de um conjunto de estratégias e técnicas do qual participaram a<br />

caravela, a arma de fogo e o crucifixo para impor-se e, através do discurso histórico, justificar-se, não<br />

como guerra de conquista e extermínio que foi, mas como ação legítima e decorrência natural da<br />

coexistência impossível de personagens que encarnavam tempos históricos múltiplos. Entretanto, não se<br />

deve esquecer que, quando representantes de uma cultura ou civilização, em nome de sua propagação,<br />

destroem outras que encontram pela frente nessa expansão, não é exclusivamente a disseminação que<br />

merece destaque. Ao contrário, esse aniquilamento deve ser lembrado justamente para que a história<br />

possa ir além da crônica que reconhece e legitima a violência e o extermínio” 164 .<br />

Frente a isso, tenho por objetivo neste trabalho, verificar a existência de diferença(s)<br />

ou não, nos relatos dos <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong> do século XVI que relataram à prática<br />

antropofágica dos indígenas da América portuguesa, ou seja, ver de que forma esses dois tipos<br />

de <strong>cronistas</strong> narram à antropofagia, o que cada um enfatiza e omite em seus relatos, pois os<br />

dados enfatizados e omitidos nesses relatos podem demonstrar quais eram as intenções (o que<br />

eles queriam/pretendiam/almejavam) desses <strong>cronistas</strong> em relatar a prática antropofágica. A<br />

divergência entre a forma de relatar essa prática indígena, pode nos demonstrar diferentes<br />

projetos com relação à colonização da América portuguesa nesse período (século XVI), que<br />

divergia ou não do projeto de colonização do Império português, sendo que essa divergência<br />

centra-se principalmente nas questões que dizem respeito ao elemento indígena: a disputa<br />

sobre os indígenas se personificou no embate entre os <strong>religiosos</strong> – principalmente jesuítas – e<br />

os colonos (<strong>leigos</strong>), pois os primeiros queriam convertê-los à fé cristã enquanto os segundos<br />

163 BELLUZZO, Ana Maria de M. Na lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In: GRUPION,<br />

Luis Donisete B. (Org.). Índios do Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p. 47-58, p. 48.<br />

164 MICELLI, Paulo. O ponto onde estamos viagens e viajantes na historia da expansão e da conquista<br />

(Portugal, séculos XV e XVI). 3ª. ed. Campinas. Unicamp Editora, 1998, p. 35.<br />

60


os queriam aprisionar para servirem de mão-de-obra escrava. Contudo, não me deterei na<br />

análise de implicações políticas que esses relatos fornecem, mas sim nas diferenças que<br />

existem entre eles, tomando por eixo de análise a descrição da antropofagia indígena e suas<br />

práticas circundantes, como a guerra, concepção de morte entre outras.<br />

Como já foi referido, podemos dividir esses <strong>cronistas</strong>, de uma maneira geral, em dois<br />

grupos: <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>. Essa simples diferenciação entre os <strong>cronistas</strong> demonstra que deve<br />

haver alguma diferença entre seus relatos. Para tal fim, serão utilizados os relatos de quatro<br />

<strong>cronistas</strong>, dois <strong>leigos</strong> e dois <strong>religiosos</strong>. Os relatos dos <strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong> são os dos padres<br />

jesuítas (portugueses) José de Anchieta e Manuel da Nóbrega, e o dos <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> são os<br />

relatos dos viajantes Hans Staden 165 (alemão) e Antony Knivet (inglês).<br />

Quanto à feição destas obras temos que as dos <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> se constituem em livros<br />

que são escritos, não imediatamente após o contato de seus autores com o fato que nos<br />

interessa, que é o da antropofagia e práticas circundantes, ou seja, ainda em domínios da<br />

América Portuguesa, mas após o retorno desses viajantes para a Europa. Contudo é preciso<br />

ressaltar que mesmo tendo sido escritas na Europa e não aqui, essas obras foram escritas sob o<br />

impacto do contato com o outro (choque cultural). Sendo que o outro se materializa na figura<br />

do indígena e suas diversas sociedades. No que se refere à estrutura textual desses relatos, ou<br />

seja, à maneira/ordem com que os fatos são narrados, podemos notar que esses relatos<br />

possuem como característica comum a sua estrutura textual, pois ambos começam narrando<br />

como empreenderam a viagem até a América Portuguesa (motivos ou circunstâncias da<br />

viagem), passando a descrição das peculiaridades da costa e sobre a exuberante natureza que<br />

aqui encontram (flora e fauna):<br />

“A extensão da costa com a grande diversidade das paisagens é a primeira imagem que se destaca, com<br />

a menção das léguas infindáveis de areias brancas, de florestas com árvores gigantescas, eternamente<br />

verdes, rios caudalosos, e piscosos e ancoradouros favoráveis” 166 .<br />

Depois, passam a falar sobre os índios, como vivem, quais são os seus costumes, e etc.<br />

Nesta parte, a descrição do ritual antropofágico, bem como de outros costumes, como a<br />

guerra, a preparação de bebidas, e de todo o aparato que cerca a cerimônia, ganham destaque.<br />

A sua narração é em alguns casos feita nos mínimos detalhes, demonstrando, dessa maneira,<br />

que r<strong>ea</strong>lmente esses <strong>cronistas</strong> presenciaram esta prática indígena por variados motivos, por<br />

165 Temos no Brasil, além de sua obra completa sob o título de Duas viagens ao Brasil, uma obra intitulada Meu<br />

cativeiro entre os selvagens do Brasil, que é uma versão simplificada, já que contêm apenas a primeira parte da<br />

obra completa com uma linguagem mais simplificada, pois está obra foi organizada por Monteiro Lobato que<br />

tinha por alvo um público infantil.<br />

166 MESGRAVIS, Laima. Op. cit., p. 12.<br />

61


exemplo, Hans Staden presenciou um ritual antropofágico quando se encontrava prisioneiro<br />

dos tupinambás. Após esta parte que concerne aos costumes indígenas, temos a última parte<br />

do texto que é a de narrar como eles (<strong>cronistas</strong>) sobreviveram a esta experiência e<br />

empreendem a viagem de voltam à Europa.<br />

Com relação às obras dos <strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong>, pertencendo eles a Companhia de Jesus:<br />

“A Companhia de Jesus foi fundada para difundir a palavra especialmente a povos que não a<br />

conheciam (…). Dirigem-se a homens que não são, portanto, iguais a si – e quer transformá-<br />

los para incorporá-los à cristandade” 167 , temos que grande parte de seus escritos se<br />

apresentam na forma de cartas, mas também existem livros como o do Pe. Fernão Cardim.<br />

Sobre as cartas, podemos dizer que elas relatam diversos fatos – entre eles a antropofagia –<br />

que visam informar aos superiores da ordem que se encontram na Europa, sobre as<br />

ações/decisões que são tomadas aqui no Novo Mundo, porém segundo Serafim Leite,“o<br />

âmbito das cartas ultrapassa a história de uma instituição” 168 . Segundo José de Eisenberg, as<br />

cartas jesuíticas eram reguladas pela instituição epistolar, além de terem sido o principal meio<br />

de organização e controle das atividades da ordem, formaram o principal meio onde os<br />

jesuítas formularam justificativas para suas estratégias missionárias e suas atividades<br />

políticas 169 . “Esta correspondência da ordem circulava em dois sentidos, da hierarquia na<br />

Europa às províncias em todo o mundo, e dessas províncias as autoridades eclesiásticas<br />

européias” 170 .<br />

“A instituição epistolar era a espinha dorsal da empresa missionária jesuítica do século XVI. Esse era o<br />

meio de comunicação institucional da ordem, contendo todos os relatos os acontecimentos nas casas<br />

jesuíticas e as notícias da colônia em geral. Mesmo silêncios e omissões nas cartas contam algo a<br />

respeito da atividade jesuítica, aquilo que não deveria ser dito precisava ser ocultado” 171 .<br />

Nessas cartas os padres concebem como possível à conversão dos índios ao<br />

cristianismo, porque na concepção deles, os índios eram filhos de Deus e por isso possuíam<br />

alma. Pensamento contrário era apresentado pelos indivíduos que pretendiam escravizar os<br />

índios, pois para eles os índios não possuíam alma (esse é na concepção dos padres o atributo<br />

humano mais nobre) 172 , e por isso eram seres inferiores, passíveis de serem subjugados à<br />

escravidão. Nestas cartas os jesuítas também demonstram que alguns índios já se<br />

converteram, mas mesmo assim, diziam que era importante criar condições extrínsecas aos<br />

167 NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 45.<br />

168 LEITE, Serafim. Novas Cartas Jesuíticas. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1952, p. 11.<br />

169 EISENBERG, José de. Op. cit., p. 19-20.<br />

170 Ibid., p. 46.<br />

171 Ibid., p. 49.<br />

172 LEITE, Serafim. Op. cit., p. 14.<br />

62


Índios, aptas a facilitar a sua conversão, pois se deixassem os índios depois de convertidos a<br />

sua própria vontade (em suas aldeias), eles voltariam a praticar os costumes de seus<br />

antepassados. Isto é uma clara alusão aos ald<strong>ea</strong>mentos, pois os jesuítas queriam ter os índios<br />

sob seus cuidados e não os queriam repartir com os colonos que queriam ter o trabalho<br />

indígena sob a sua disposição, pois devemos nos lembrar que os índios r<strong>ea</strong>lizavam trabalhos<br />

nas propriedades da Companhia de Jesus.<br />

Ao proceder a análise dos <strong>cronistas</strong> escolhidos, a qual será feita em separado, não<br />

levarei em consideração a estrutura textual (seqüência do relato) e a cronologia desses relatos,<br />

sendo que esse aspecto concerne principalmente às cartas dos jesuítas (não importa que haja<br />

um lapso de tempo entre uma carta e outra). Por isso, a análise desses relatos contemplará<br />

alguns aspectos ligados à prática antropofágica, com isso a análise será fragmentada em<br />

pontos, sendo que antes será feita uma pequena introdução sobre o cronista em questão, onde<br />

saberemos quais os motivos e de que forma esse cronista veio à América Portuguesa (Brasil).<br />

Dessa forma, para verificar á existência ou não de diferença(s) entre os relatos dos <strong>cronistas</strong><br />

escolhidos, vislumbrar-se-á os seguintes pontos:<br />

1 – Com relação à prática antropofágica:<br />

a) Como o autor descreve (narra) o ritual antropofágico?<br />

b) Há referência à antropofagia funerária?<br />

c) Existe referência à participação de elementos não indígenas, ou seja, europeus, no<br />

ritual antropofágico, mas sem ser no papel de vítima?<br />

2 – Com relação às guerras indígenas, como o autor se referencia a elas?<br />

3 – O autor descreve algum mito indígena? Se sim, qual e como o descreve?<br />

4 – Com relação aos costumes e à cultura material do gentio, o que o autor descreve?<br />

5 – O que o autor relata em relação às doenças que grassavam na Brasil?<br />

6 – Map<strong>ea</strong>mento étnico feito pelo autor:<br />

7 – Com relação ao maravilhoso, a zoologia e a geográfica fantástica. O que o autor<br />

descreve?<br />

8 – O autor faz alguma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena?<br />

9 – O autor faz algum confronto entre a sua visão de morte e a visão de morte dos<br />

indígenas?<br />

63


Anthony Knivet<br />

Anthony Knivet, inglês nascido em torno do ano de 1560, participou da segunda<br />

viagem à América do corsário inglês Thomas Cavendish, que se r<strong>ea</strong>lizou no ano de 1591. O<br />

objetivo desta viagem não era criar uma colônia no Novo Mundo ou combater, os espanhóis<br />

ou os portugueses, mas cruzar os estreitos de Magalhães e empreender uma segunda viagem<br />

em torno do globo – a primeira viagem em volta do mundo, empreendida por Thomas<br />

Cavendish, se deu entre os anos de 1586-1588 1 . Contudo deve-se lembrar que a primeira<br />

viagem de circunavegação do globo terrestre foi empreendida por Fernão de Magalhães 2 .<br />

Antes de se dirigirem ao Estreito de Magalhães, a frota de Cavendish – que era<br />

composta de cinco embarcações – em busca de viveres, atacou a vila de Santos, mas nada<br />

conseguiu, entretanto antes de seguir viagem at<strong>ea</strong>ram fogo na vila de São Vicente. 3 Esta<br />

viagem rumo aos mares do sul (oc<strong>ea</strong>no Pacífico) se mostrou desastrosa: “Sorte miserável<br />

rondava-nos a todos, especialmente a mim (…)” 4 . Segundo Knivet, isto ocorreu porque eles<br />

demoraram dois meses em Santos (de 25 de dezembro de 1591 a 3 de fevereiro de 1592). Ao<br />

mesmo tempo, relata que foi nesta estada em Santos, que ocorreu o primeiro contato que teve<br />

com os indígenas brasílicos:<br />

“(…) muitos canibais [índios] vieram ter conosco, desejando que o general destruísse os portugueses e<br />

conservasse o país para si, protestando estarem todos ao seu lado; o general agradeceu-lhes a bondade e<br />

disse-lhes que tinha outras pretensões” 5 .<br />

Frente às adversidades encontradas na tentativa de cruzar o Estreito de Magalhães, a<br />

frota de Cavendish se viu obrigada a retornar/regressar ao Brasil, aonde iam deixando, nas<br />

praias onde atracavam em busca de víveres, os marujos incapazes de se recuperar e numa<br />

dessas levas de homens doentes, abandonados a própria sorte, na região de São Sebastião (Rio<br />

de Janeiro), que encontramos Anthony Knivet junto de outros vinte ingleses. Dessa maneira,<br />

obrigado e não de livre e espontân<strong>ea</strong> vontade, ou melhor, deixado para morrer, Knivet passa<br />

1 KNIVET, Anthony. Vária Fortuna e Estranhos Fados de Anthony Knivet: Que foi com Tomás Cavendish,<br />

em sua segunda viagem, para o Mar do Sul, no ano de 1591. Tradução de Guiomar de Carvalho Franco. São<br />

Paulo: Editora Brasiliense Limitada, 1947, p. 8.<br />

2 O navegador português Fernão de Magalhães empreendeu a primeira viagem de circunavegação do globo<br />

terrestre sob bandeira espanhola, a serviço de Carlos V. A viagem teve início em 20 de setembro de 1519, a frota<br />

de Magalhães era constituída de cinco embarcações e duzentos e setenta homens, dos quais apenas uma<br />

embarcação e dezessete homens regressaram a Espanha no dia 8 de setembro de 1522. O próprio Magalhães não<br />

retornou, pois foi morto numa briga com nativos na Ilha de Mactan, assumiu seu lugar Juan Sebastian Elcano, o<br />

qual completou a viagem. Magalhães não deixou nenhum diário sobre essa viagem, o qual foi feito por um dos<br />

sobreviventes, Antonio Pigafetta.<br />

3 Ibid., p. 6.<br />

4 Ibid., p. 27.<br />

5 Ibid., p. 24-25.<br />

64


um longo período de mais ou menos doze anos no Brasil. Mas não o passa a largo do destino,<br />

pois pouco tempo depois deste fato é aprisionado pelos portugueses “salvo; talvez porque<br />

tivesse falado algumas palavras em português” 6 , junto de outro inglês – Henrique Barraw<strong>ea</strong>ll<br />

–, sendo o restante dos ingleses mortos pelos portugueses ou envenenados por frutos que<br />

comeram. Knivet, então é enviado ao Rio de Janeiro, onde foi levado a presença do<br />

governador, Salvador Correia de Sá, “que me deu [Knivet falando] ao homem que me havia<br />

salvo” 7 , conquanto, Knivet não fala o nome do português que lhe “salvou”, ou melhor, lhe<br />

poupou a vida, mas do capitão que lhe comandava, sendo este, Martim Correia de Sá (filho do<br />

governador), mas pouco tempo depois desse fato, Knivet é novamente inquirido pelo<br />

governador, e dessa vez é enviado para trabalhar como escravo no engenho do próprio – “(…)<br />

o governador deu ordem para que grandes argolas de ferro, pesando trinta libras, me fossem<br />

presas às pernas, argolas que carreguei nove meses, trabalhando de continuo num engenho de<br />

açúcar, como um cativo” 8 .<br />

Knivet r<strong>ea</strong>lizou várias funções, como escravo da família Sá. Dentre as funções que<br />

desempenhou como escravo, as mais relevantes foram a de conduzir barcas com cargas de<br />

açúcar no engenho de Salvador Correia de Sá, e participar de expedições que tinham o intuito<br />

de apresar mão-de-obra, ou seja, índios no sertão. Arquitetou inúmeras fugas – nessas fugas,<br />

em especial na segunda, Knivet: “rogava para que Deus mandasse algum leão ou leopardo lhe<br />

devorar do que ser preso outra vez pelos portugueses” 9 . Por várias vezes, embrenhou-se no<br />

meio da selva, onde conviveu por alguns meses com os índios de variada etnia, como<br />

tupinambás e tamoios, onde aprendeu a língua nativa 10 e correu por várias vezes o perigo de<br />

ser devorado pelos índios, mas sempre, salvou-se através de armações ou por sorte, como na<br />

ocasião em que disse ser francês ao contrário de seus companheiros que disserem serem<br />

portugueses 11 , e por isso foram devorados pelos tamoios, que eram inimigos dos portugueses,<br />

desde que estes lhes expulsaram (os que restaram) do litoral – por isso, ao final de seu relato,<br />

Knivet adverte os viajantes, que a primeira coisa a fazer ao se falar com os indígenas: “é<br />

mister dizer-lhes de que nação sois, e que não vindes, como os portugueses, em busca de suas<br />

mulheres e filhos para fazê-los escravos” 12 . Em outra tentativa de fuga conseguiu chegar a<br />

6<br />

Ibid., p. 9.<br />

7<br />

Ibid., p. 43.<br />

8<br />

Ibid., p. 53.<br />

9<br />

Não existem esses animais na fauna americana. Ibid., p. 54.<br />

10<br />

Ibid., p. 5.<br />

11<br />

Ver os nomes dos portugueses que acompanharam Knivet e que foram devorados pelos tamoios. Ibid., p. 80.<br />

12 Ibid., p. 163.<br />

65


Angola 13 , porém seu senhor, Salvador Correia de Sá, o mando resgatar e de Angola, ou mais<br />

especificamente do “reino de Anzico fui recambiado, em ferros, ao meu amo Salvador Correia<br />

de Sá, para a cidade de São Sebastião no Brasil” 14 .<br />

Knivet retornou a Europa junto de Salvador Correia de Sá no ano de 1602, trabalhou<br />

por nove meses em sua casa e depois “queria regressar a Inglaterra na esperança de conseguir<br />

aí um meio de recomeçar minha vida em forma decente” 15 , mas não o pode fazer por vários<br />

motivos, por isso passou a viver na alfândega r<strong>ea</strong>l, no meio das pessoas que lhe proporcionam<br />

sustento, conquanto num dia, Knivet, relata que esbarrou com uma pessoa que lhe disse que<br />

seu amo, Salvador Correia de Sá, ordenava-lhe voltar para sua casa, mas Knivet não deu<br />

importância para tal recado, o que acarretou, segundo ele, que seus, “velhos confrades, a<br />

prisão e a miséria, apareceram-me de novo” 16 . Knivet foi preso e posto em uma masmorra,<br />

onde, através “de uma fimbria de claridade subindo pelas paredes” 17 , começou a gritar a sorte<br />

que tinha, contudo ninguém o podia ajudar. Dessa forma, Knivet encerra seu relato, sem dizer<br />

como conseguiu sair ou escapar da prisão e como conseguiu regressar a Inglaterra, o que<br />

sabemos é que ele regressou a Inglaterra, de onde publicou, através de Samuel Purchas, no<br />

ano de 1625 seu relato sobre suas façanhas no Novo Mundo 18 .<br />

Segundo Ronaldo Vainfas, Knivet: “é um dos poucos a considerar desfavoravelmente<br />

o comportamento dos europeus na América, incitando os índios a r<strong>ea</strong>girem contra os<br />

portugueses, gente capaz de ‘crueldade sanguinária’, no entender do pirata inglês” 19 , por isso<br />

“muitas vezes preferiu Knivet, conforme suas próprias palavras, aventurar-se entre os índios<br />

antropófagos a ficar à mercê do colonizador, cuja crueldade se tempera ao sabor das<br />

exigências do meio” 20 , ou quando foge por ter ferido o feitor do engenho e encontra um índio,<br />

que chama de Guaraciaba, que tinha matado outro índio, e se encontrava na mesma situação<br />

da de Knivet, dizendo que: “preferíamos cair sob as garras duma fera, ou de uma víbora, do<br />

que às mãos sanguinárias dos portugueses” 21 .<br />

É durante essa fuga junto de um índio, que Knivet, ao aportar na aldeia onde fora,<br />

traficar pela primeira vez, como escravo dos portugueses, a qual é da etnia dos guaianases,<br />

13<br />

Knivet relata no capítulo 7, sua passagem por Angola, descrevendo costumes e práticas dos negros, a<br />

organização dos reinos, a crueldade com que os portugueses tratavam os negros, entre outros assuntos. Ibid., p.<br />

155-164.<br />

14<br />

Ibid., p. 163.<br />

15<br />

Ibid., p. 121.<br />

16<br />

Ibid., p. 121-122.<br />

17<br />

Ibid., p. 122.<br />

18<br />

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial 1500-1808. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000, p. 43.<br />

19 Ibid., p. 42.<br />

20 KNIVET, Anthony. Op. cit., p. 10.<br />

21 Ibid., p. 55.<br />

66


chefiados por Jaguararupi, que após ser bem recebido, reuniu todos os índios e narrou-lhes<br />

“com que crueldade os portugueses lhes tratavam a nação, fazendo-os escravos marcando-os<br />

com ferros como a cães, açoutando-os e infligindo-lhes suplícios como se não fossem de<br />

carne e sangue” 22 e que por ter matado um português tinha decidido passar o resto de sua vida<br />

entre eles, conquanto eles “se prometessem defender a mim [Knivet] e a si mesmos contra os<br />

portugueses” 23 . Frente à afirmativa dos indígenas, Knivet passa nove meses entre eles, até<br />

que Martim Correia de Sá retorna a região em busca de mais escravos. Nessa nova passagem,<br />

os índios foram tratados com brandura e em troca de canivetes, machadinhas e contas, eles<br />

trocaram seus filhos e filhas para servirem de escravos aos portugueses, além disso,<br />

denunciaram que Knivet e Guaraciaba estavam na aldeia vizinha, e sem mais conversa, os<br />

índios “amarram-me as mãos e trouxeram-me de volta ao filho de meu amo” 24 . Desse modo,<br />

Knivet, certo de que ia ser morto pelos portugueses, aceitou ir a uma tribo de antropófagos<br />

(coloca ênfase nesse dado) – que eram tamoios e de onde voltou com noventa escravos:<br />

“Embora o perigo de ir a um país de gentio antropófago, onde eu nunca estivera, fosse nada menos que<br />

o preço da minha vida, e considerando ainda, comigo mesmo, que o meu crime seria punido com a pena<br />

de morte entre os portugueses, preferi, mais uma vez, ficar a mercê dos selvagens pagãos e carniceiros<br />

do que à mercê da crueldade sanguinária dos cristãos portugueses” 25 .<br />

Sobre a crueldade que os portugueses utilizavam, com relação aos escravos africanos<br />

adquiridos, pelos mesmos, em Angola, Knivet nos relata que:<br />

“Os portugueses os marcam como carneiros, com ferro em brasa, ao que os mouros chamam “crimbo”<br />

(certamente carimbo); os pobres escravos ficam todos em pé, numa fileira, lado a lado, e cantam (…). E<br />

assim os míseros são embaidos, pois os portugueses lhes fazem acreditar que quem não tem esta marca<br />

não é considerado homem de valor algum no Brasil ou em Portugal; desta sorte mantêm os infelizes<br />

negros na mais ínfima sujeição, sob a capa da amizade” 26 .<br />

Em termos gerais, nesta obra, Knivet narra:<br />

“(…) suas peripécias, cujo teor é semelhante aos relatos fantásticos da época dos descobrimentos,<br />

incluindo o contato direto com as amazonas e canibais, referência ao reino de Preste João, rios com<br />

pedras preciosas e todas as aventuras das viagens atlânticas, suas tempestades, salvamentos<br />

espetaculares, monstros marinhos, perda de dedos dos pés, além da informação de que se tornou<br />

‘escravo’ de Salvador Correia de Sá” 27 .<br />

Dentre as inúmeras peripécias que Knivet vivenciou, quer em Angola, quer no Brasil<br />

entre os portugueses ou entre os indígenas, além das que, se referem às expedições bélicas ou<br />

22 Ibid., p. 56-57.<br />

23 Ibid., p. 57.<br />

24 Ibidem.<br />

25 Ibid., p. 58-59.<br />

26 Ibid., p. 158.<br />

27 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 42.<br />

67


de apresamento, a luta contra cobras gigantes, a de ver seus companheiros serem devorados<br />

pelos tamoios ou participar de guerras ao lado dos índios, uma merece destaque. A luta que<br />

Knivet travou contra um tubarão. Como o próprio relata, ele estava pescando numa noite<br />

sobre um rochedo, quando deixa o anzol no mar e prende a linha embaixo de seu corpo antes<br />

de adormecer, quando de repente, acorda com algo puxando a linha e nisso ela enrosca-se em<br />

sua perna e ele é jogando ao mar:<br />

“(…) assim que caí dentro d’água, o tubarão nadou para mim como se quisesse devorar-me; ao vê-lo<br />

aproximar-se, agarrei o anzol fisgado em sua boca e dando um puxão para baixo, fiz com que o tubarão<br />

se afastasse nadando. Lembrei-me então da faca que eu trazia no pescoço, atada a um cordel, como os<br />

indígenas, e com ela cortei a linha; do contrario teria aqui finalizado todas as minhas desaventuras” 28 .<br />

Antes de analisarmos os pontos propostos é necessário fazer algumas considerações<br />

sobre a obra de Knivet. A primeira consideração se refere a ele, geralmente associar o<br />

domínio do Brasil, mas também o faz quando se refere a Angola, ao rei da Espanha. Isso<br />

ocorre, porque sua viagem para a América e sua estádia no Brasil, quer entre os portugueses<br />

ou entre os indígenas (canibais), ocorre quando Portugal e Espanha estão unidos – União<br />

Ibérica 1580-1640 – em uma única coroa, a de Filipe II de Espanha. A outra consideração que<br />

deve ser ressaltada, é que em seu relato ele se refere diretamente e na grande maioria das<br />

vezes aos indígenas, como canibais, ou seja, Knivet ao invés de chamá-los (designá-los) de<br />

índios ou selvagens os chama de canibais, mas não quer por isso, dizer que eles comiam carne<br />

humana, geralmente após ele se referir a etnia a que esses índios pertenciam, ou como os<br />

portugueses ou outros indígenas os chamavam, ele diz se eles comem ou não carne humana –<br />

essa consideração deve ser relativizada porque a obra utilizada nesta análise é uma tradução,<br />

pois não se conhece qual expressão (termo) foi utilizada por Knivet.<br />

Com relação à análise da obra, como me referi acima, ela será feita não de maneira<br />

lin<strong>ea</strong>r, ou seja, não seguirei a escrita da obra, e também não seguirei a questão de datas (essa<br />

questão se refere mais aos escritos dos jesuítas – embora também não seguirei a ordem<br />

cronológica destes), mas sim por pontos, pois dessa forma acho ser mais fácil a comparação<br />

entre os <strong>cronistas</strong>. Contudo, frente a esse tipo de análise, temos que considerar que não<br />

analisaremos todos os aspectos da obra, senão aqueles que serão utilizados para a posterior<br />

comparação entre os <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>.<br />

1 – Com relação à prática antropofágica:<br />

a) Como o autor descreve (narra) o ritual antropofágico?<br />

28 KNIVET, Anthony. Op. cit., p. 50-51.<br />

68


Sobre o ritual antropofágico, Knivet o descreve em duas ocasiões, a primeira quando,<br />

ele vê seus doze companheiros portugueses serem devorados pelos tamoios, e a segunda<br />

quando ele participa de uma expedição bélica contra os petiguaras. As outras vezes em que se<br />

refere à antropofagia, ele simplesmente, descreve o número de prisioneiros feitos e que os<br />

índios os devoraram, como no caso em que descreve, quando junto com os tamoios, tomou de<br />

assalto uma aldeia carijó, descrevendo que foram feitos “trezentos prisioneiros entre homens e<br />

mulheres, que os tamoios mataram e comeram a seguir” 29 – Knivet não descreve de que modo<br />

esses índios foram mortos e sua carne consumida.<br />

Sobre o primeiro caso, Knivet refere-se que, após ele e mais doze portugueses terem<br />

seguido por outro caminho na volta de uma malograda expedição bélica, eles se deparam<br />

diante de uma aldeia indígena, e deliberam entre eles o que era melhor fazer. Decidiram ser<br />

melhor, se submeter aos índios, mas antes disso, eles combinaram o que iriam dizer aos<br />

índios. Os portugueses iriam dizer que eram portugueses, mas Knivet não concordando nesse<br />

ponto, diria que era francês 30 – o que lhe salvou a vida. Dessa forma, se deslocaram em<br />

direção à aldeia, e ao terem a presença percebida pelos índios, eles foram até eles “aos gritos e<br />

brados, com seus arcos e frechas e, aproximando-se nos amarraram as mãos passando-nos<br />

cordas em torno da cintura” 31 (essa corda que os índios amarravam em torno da cintura era<br />

chamada de mussurana – corda de algodão –, mas esta era apenas amarrada a prisioneiros de<br />

guerras que eram destinados ao rito antropofágico, e pelo relato, eles, Knivet e os portugueses<br />

não são prisioneiros). Com a corda amarrada pela cintura eles foram levados para dentro da<br />

aldeia onde foram recebidos por três velhos (anciões) que lhes indagaram quem eram eles, no<br />

que responderam o que tinham combinado: que eram portugueses e Knivet que era francês.<br />

Findo isso, ficaram trancados em numa cabana por umas três horas, quando, os índios:<br />

29 Ibid., p. 90.<br />

30 Ibid., p. 83.<br />

31 Ibid., p. 84.<br />

“(…) apanharam um dos portugueses e, amarrando-lhe nova corda a cintura, conduziram-no a um pátio<br />

onde três selvagens mantinham esta corda de um lado e três do outro, ficando o português no meio.<br />

Veio um ancião que lhe ordenou: ‘Olha para todas as coisas que amas’, declarando-lhe que devia dizer<br />

adeus a elas, pois nunca mais as veria. A esta altura, aproximou-se um moço, robusto, com as mãos e<br />

faces tintas de vermelho, dizendo a vítima: ‘Tu me vês? Sou aquele que matou muitos da tua nação e te<br />

matará’. Depois de ter assim discursado, chegou-se por detrás do português e pregando-lhe uma<br />

bordoada na nuca, fê-lo rolar ao chão. Logo em seguida assentou-lhe outro golpe mortal. Então, com um<br />

dente de capivara, rasgaram o selvagem toda a pele do morto e tomando-o pela cabeça e pelos pés,<br />

mantiveram a chama; depois, esfregando-o com as mãos, lhe despregavam toda essa pele, deixando-o<br />

em carne viva. E prosseguiram cortando-lhe fora a cabeça, que deram ao carrasco; as entranhas,<br />

entregaram-nas às mulheres. Após isso, cortaram-no, junta por junta; primeiro as mãos, depois os<br />

cotovelos, e assim todo o corpo, enviando a cada casa um pedaço, caindo então em danças. As mulheres<br />

fizeram grande provisão de vinho [cauim]; no dia seguinte ferveram cada junta numa grande vasilha de<br />

água, a fim de que suas mulheres todas e filhos pudessem participar do caldo. Pelo espaço de três dias<br />

69


de nada mais se ocuparam senão dançar e beber o dia e noite. A seguir mataram outro, com o mesmo<br />

rito; e exterminaram todos, exceto a mim” 32 .<br />

Quando todos os portugueses se encontravam mortos, Knivet achava que era a sua vez<br />

de morrer, mas em vez disso, os índios lhe disseram: “Nada receies, pois os teus antepassados<br />

foram nossos amigos e nós, amigos deles; mas os portugueses são nossos inimigos e nos<br />

fazem seus escravos, por isso os tratamos como viste” 33 (há uma alusão à Confederação dos<br />

Tamoios, onde estes índios junto aos franceses combateram os portugueses junto de seus<br />

aliados, os temiminós, cujo chefe era Araribóia, sendo que os portugueses venceram e<br />

promoveram grandes atrocidades aos tamoios). Knivet, logicamente aproveitando-se de tal<br />

situação e do que dissera aos índios – que era francês –, respondeu aos índios que “não existia<br />

razão para temores; sabia que eram meus amigos e não inimigos; quanto aos portugueses, eu<br />

mesmo fora longo tempo prisioneiro deles” 34 .<br />

O segundo caso ele narra de fora, ou seja, ele não está vivendo com a tribo, como no<br />

caso anterior, mas participa de uma expedição militar contra ela. Sobre o rito antropofágico<br />

praticado pelos petiguaras (Rio Grande do Norte), narra Knivet que ao fazerem qualquer<br />

homem prisioneiro, ele não é morto de imediato, mas quem o prende “o dá a seu irmão ou a<br />

seu amigo para sacrificá-lo; e que um índio toma tantos nomes quantos homens tenha<br />

abatido” 35 . Segue dizendo, que para a execução de um homem:<br />

“(…) tomam uma corda nova feita de fios de algodão com que amarram pela cintura daquele que deve<br />

morrer; trazem-no para fora da prisão e três homens sustentando uma das extremidades da corda, e três<br />

a outra, mantêm o condenado no meio, rijamente atado. Então aquele que deve matá-lo vem à frente<br />

com todas as suas mulheres dançando, pintado de vermelho por inteiro e pomposamente ataviado com<br />

penas de diversas cores sobre a cabeça, joelhos e braços, trazendo uma grande espada de madeira em<br />

suas mãos [ibiripema – tacape cerimonial]. Pondo-se de fronte do condenado, faz-lhe uma longa<br />

peroração, dizendo-lhe, com estas palavras, que ele vai morrer: ‘Tu deves contemplar o sol e todas as<br />

coisas que gostam de ti, e assim, dize-lhes adeus, pois nunca mais às verás’. Depois deste discurso, vaise<br />

embora dançando com suas mulheres, mas volta de novo, com gritos e apupos, bradando: ‘Sou<br />

aquele que vem para matar-te, defende-te!’. Chegando assim por detrás do mísero, dá-lhe uma pancada<br />

na nuca e quando com esta pancada o prisioneiro caí, rompe-lhe o crânio, só assim se asseguram de que<br />

ele está morto. Depois que o matam, tomam um dente de capivara que colocam num pedaço de madeira,<br />

e com isto esfolam todo o corpo da vítima, levantado-lhe a camada superior da pele. Mantendo o morto<br />

a chama, toda essa pele se desprega e a carne permanece muito limpa e branca. Assam-na então, ou a<br />

cozem, e alimentam-se com ela, acreditando que a carne humana os faz forte e valentes” 36 .<br />

Knivet relata o ritual antropofágico de uma maneira, a não enfatizar os preparativos de<br />

tal ritual, principalmente no que concerne ao convite às tribos aliadas para tal festim. Ainda<br />

coloca a morte do prisioneiro como uma atividade quase que imediata, como no caso que<br />

32 Ibidem.<br />

33 Ibid., p. 84-85.<br />

34 Ibid., p. 85.<br />

35 Ibid., p. 124.<br />

36 Ibid., p. 124-125.<br />

70


vivenciou, onde doze portugueses foram devorados pelos tamoios, após estarem apenas três<br />

horas em poder dos indígenas, o que contrária o que outros relatos descrevem, de que o<br />

prisioneiro passa meses ou até anos em convivência com seus captores antes de ser morto<br />

ritualmente e também que os indígenas não matariam todos os portugueses seguidamente.<br />

Quanto à descrição do ritual em si, ele detalha bem, principalmente no aspecto do<br />

diálogo que o executor trava com aquele que deve executar, o único detalhe (talvez o<br />

problema seja novamente a tradução da obra) que não menciona é que o prisioneiro também<br />

dirige a palavra, não apenas ao executor, mas a todos que se encontram presentes em sua<br />

morte, se vangloriando de seus feitos e dos de sua tribo, perpetuando/renovando desse modo o<br />

ciclo de vingança. Ele também detalha o modo como os índios destrincham o corpo da vítima,<br />

dizendo que todos, mesmo mulheres e crianças deveriam alimentar-se do morto. A<br />

significação que Knivet dá a todo este ritual é a de que os índios ao consumirem o carne do<br />

morto, ela os torna forte e valentes (absorção/incorporação das qualidades da vítima) e que os<br />

índios fazem isso apenas com seus inimigos. Desse modo, podemos dizer que Knivet tem uma<br />

visão pragmática da antropofagia, pois em nenhum dos dois casos que descreve<br />

pormenorizadamente, ele descreve tal ritual com requintes de crueldade, ou diz que tal ato vai<br />

contra a natureza humana. Ao contrário do que descreve dos portugueses, embora esses não<br />

comessem carne humana, ele comumente aponta para a crueldade com que os portugueses<br />

tratavam os indígenas (também os escravos africanos), sendo que ele próprio desejava, em<br />

suas fugas, a perecer por algum animal selvagem do que voltar para as mãos dos cruéis<br />

portugueses.<br />

b) Há referência à antropofagia funerária?<br />

Na obra de Knivet, há um indício da antropofagia funerária. Este acontece quando ele<br />

descreve uma tribo chamada por ele de mariquitás, sendo esta a primeira tribo que ele chama<br />

de tapuia, não por que ele sabe, mas por que eles são alcunhados de tapuias por outros grupos<br />

indígenas, sendo que esta denominação – tapuia – na língua dos outros índios, provavelmente<br />

a tupi, significa homem selvagem e “entre todos os canibais, tal nome é tido em grande<br />

desabono, exceto entre os próprios tapuias” 37 , além da informação que a língua destes índios<br />

difere de todos os outros.<br />

Ainda sobre esses índios, ele fala que eles não possuem nenhuma moradia, e por isso<br />

vagueiam pelo sertão como animais ferozes, não possuem amizade com nenhuma outra tribo e<br />

37 Ibid., p. 126-127.<br />

71


fazem guerra onde quer que vão. Ao invés de se mostrarem corajosos, eles causam danos e<br />

fogem “sendo aquele que puder fugir melhor é tido como o mais valente” 38 . E finaliza<br />

dizendo que eles também são canibais, mas quando comem carne humana, não usam as<br />

mesmas cerimônias que os petiguaras e outros selvagens. Contudo ele não descreve se eles<br />

comem a carne de um prisioneiro de guerra, proveniente de uma aldeia inimiga (exo-<br />

canibalismo), ou se eles devoram um parente morto, o que seria chamado de endo-<br />

canibalismo, praticado segundo alguns autores pelos tapuias, pois estes consideravam o<br />

estômago como melhor sepultura (túmulo) para os parentes do que a terra.<br />

c) Existe referência à participação de elementos não indígenas, ou seja, europeus, no ritual<br />

antropofágico, mas sem ser no papel de vítima?<br />

No relato de Knivet, não aparece nenhum europeu, participando do repasto<br />

antropofágico, a não ser no papel de vítima, como no caso dos doze portugueses que o próprio<br />

Knivet viu serem devorados. A única exceção que podemos fazer é que o próprio Knivet, só<br />

que este, encontrava-se na condição de prisioneiro dos tamoios, não participando da festa e<br />

não comendo carne humana, só a visualizando, do local onde se encontrava preso. Com<br />

relação aos dois casos descritos pormenorizadamente por Knivet, temos que no primeiro caso<br />

ele narra à morte de europeus (portugueses), e no segundo caso, provavelmente a morte de um<br />

indígena (não diz se era índio ou europeu, mas pela descrição parece que está se referindo as<br />

guerras inter-tribais ocorridas naquela região), sendo que a descrição dos dois casos é similar,<br />

trazendo apenas o segundo caso, alguns detalhes a mais, ou seja, não temos diferenças entre a<br />

descrição da morte de um europeu e da morte de um indígena no ritual antropofágico.<br />

2 – Com relação às guerras indígenas, como o autor se referencia a elas?<br />

Apesar de Knivet ter participado de inúmeras expedições bélicas e de apresamento<br />

contra os indígenas, mas também ter lutado ao lado dos indígenas, contra outros grupos<br />

indígenas e mesmo contra os portugueses, ele pouco relata sobre o modo de guerr<strong>ea</strong>r dos<br />

índios, na verdade ele faz isso apenas uma vez. No que diz respeito às expedições que<br />

participava contra grupos indígenas quer para fazê-los escravos, quer para ajudar grupos<br />

indígenas que eram aliados dos portugueses e que se encontravam sob ataque de outros índios,<br />

Knivet apenas relata o número de componentes da expedição militar, como, por exemplo, na<br />

38 Ibid., p. 127.<br />

72


contra os tamoios (inimigos), onde diz que eram setecentos portugueses e dois mil indígenas<br />

que iam, em socorro dos guaianases (aliados), ou quando relata o número de cativos, feitos<br />

após o termino da guerra, como no caso, quando Martim Correia de Sá, atacou a aldeia dos<br />

tamoios, onde Knivet se encontrava, após ter vivido um ano e onze meses entre eles, e ter<br />

visto seus doze companheiros portugueses serem devorados pelos mesmos, ele relata que<br />

foram feitos vinte mil prisioneiros que foram repartidos entre os portugueses, sendo que,<br />

outros, dez mil desses índios, não importou serem mulheres, velhos ou crianças, foram<br />

massacrados por terem participado da morte dos doze portugueses 39 .<br />

A única vez que Knivet relata o modo de guerr<strong>ea</strong>r dos indígenas se dá quando ele<br />

passa um ano e onze meses entre os tamoios, que devoraram seus doze companheiros<br />

portugueses, e lhe pouparam a vida, por ter dito que era francês. Durante esse período de<br />

convivência, Knivet foi à guerra muitas vezes com os tamoios, onde diz que testemunhou:<br />

“(…) a maneira primitiva do combate indígena em que, sem nenhuma organização, se atiravam os<br />

selvagens sobre seus inimigos como touros, [dessa forma] ensinei-lhes a colocar-se em linha de batalha,<br />

a permanecer em emboscada, fazer retirada, forçar seus inimigos a cair numa armadilha” 40 .<br />

E ainda diz que era por causa desses meios, que ele ensinou aos indígenas, que eles<br />

levavam vantagem sobre os inimigos e que por isso, Knivet granjeou grande prestígio entre os<br />

tamoios, e que esses passaram a não ir mais a guerra alguma sem que ele (Knivet) estivesse<br />

junto deles. Por causa desse prestígio alcançado entre os tamoios, Knivet nos descreve outro<br />

costume que os índios possuíam com relação aos guerreiros valorosos, o de possuir muitas<br />

mulheres, pois relata que “os tamoios ofereceram-me muitas mulheres, mas recusei-as,<br />

referindo-lhes que não era costume nosso casarmo-nos fora do nosso país” 41 . Ainda com<br />

relação às guerras indígenas ele diz que quando foram combater os tupiniquins, estes fugiram,<br />

mas os tamoios não deixaram por isso mesmo, eles perseguiram os fujões e no caminho<br />

encontraram muitos velhos e mulheres que foram mortos à medida que iam sendo<br />

encontrados 42 , sem nenhum tratamento especial, pois estes não se mostraram valentes, mas<br />

covardes, pois fugiam em vez de lutar. Ou seja, Knivet não vê nenhuma organização nas<br />

guerras travadas pelos indígenas, tanto que ele se vangloria de ele ter dado tal organização aos<br />

índios, para estes lutarem no campo de batalha, sobre a racionalidade das guerras indígenas<br />

ele não diz nada de relevante, pois não refere em nenhum momento de seu relato, que essas<br />

guerras, em grande parte das vezes eram promovidas com o intuito de aprisionar guerreiros<br />

39 Ibid., 90.<br />

40 Ibid., 85.<br />

41 Ibidem.<br />

42 Ibid., 86.<br />

73


para o festim antropofágico, ao invés disso, ele relata muitas vezes que no final dessas guerras<br />

havia uma quantidade exagerada de prisioneiros, sendo que todos esses seriam destinados ao<br />

repasto canibal, como exemplo, para não entrarmos nas guerras travadas entre os índios,<br />

podemos ficar na festa que ele mesmo presenciou, ou seja, num espaço de tempo<br />

extremamente curto, os tamoios mataram todos os doze portugueses, um seguidamente do<br />

outro, sendo que sabemos que um esses prisioneiros não eram mortos logo que chegavam à<br />

aldeia, sendo que eles viviam alguns meses ou até anos entre seus captores, a não ser que ele<br />

estivesse ou ficasse doente, aí era levado para o mato onde, quebravam-lhe a cabeça, mas não<br />

consumiam sua carne.<br />

3 – O autor descreve algum mito indígena? Se sim, qual e como o descreve?<br />

Em seu relato, Knivet descreve dois mitos indígenas. Sobre o mito de Sumé, relata que<br />

ao ir guerr<strong>ea</strong>r, junto de Martim Correia de Sá, os guaianases, passou por uma localidade<br />

chamada Itaoca, onde existe um promontório de pedra alto e imenso, onde ele escutou os<br />

indígenas contar, que nesse lugar “lhes pregou um servo de Deus” 43 , sendo que em um dos<br />

rochedos é possível ver impressões de pés descalços na rocha, “todos de um só tamanho” 44 .<br />

O outro mito indígena que Knivet relata é o do Curupira, um espírito da floresta que os<br />

índios temiam e respeitavam, porque este matava os índios. Ele fez este relato durante a<br />

expedição de guerra contra os tamoios:<br />

“Os índios morriam, possuídos, como alguns deles diziam de um espírito ao qual chamam de Curupira,<br />

que os mata; muitos desses selvagens se queixavam de estar possuídos dos espíritos denominados<br />

Abaçai; os atormentados por este espírito, queriam que os amarrassem de mãos e pés com o cordel dos<br />

seus arcos e pediam aos seus amigos que lhes batessem com as cordas de pendurar suas redes; mas<br />

mesmo com toda esta cerimônia, não vi nenhum deles escapar de ter chegado a este estado” 45 .<br />

Ainda sobre essa questão dos espíritos, temos a consideração de Purchas, a pessoa<br />

responsável pela divulgação e impressão do relato de Knivet, dizendo que ouviu do próprio<br />

Knivet comentários sobre esses espíritos que possuíam e matavam os indígenas, sendo que:<br />

“um silvícola, por ocasião de se achar assim possesso, discutir com o gênio e am<strong>ea</strong>ça-lo de<br />

que se ele continuasse a tratá-lo tão mal, converter-se-ia em cristão; então, sob tal am<strong>ea</strong>ça, o<br />

espírito deixou a sua vitima” 46 .<br />

43 Ibid., p. 174.<br />

44 Ibid., p. 91.<br />

45 Ibid., p. 68-69.<br />

46 Ibid., p. 69.<br />

74


4 – Com relação aos costumes e à cultura material do gentio, o que o autor descreve?<br />

Em relação à cultura material ele descreve que os indígenas constroem “as canoas a<br />

partir dum único tronco de árvore” 47 , que eles possuem potes de barros para armazenar água e<br />

alimentos, sendo que em algumas ocasiões estes potes são ornados com pedras preciosas, que<br />

possuíam por armas de guerra, arcos, flechas, tacape (que também era usado nas cerimônias<br />

antropofágicas), além de se utilizarem dos ossos dos inimigos para fazerem flautas, ou outros<br />

instrumentos para seu uso, também, relata que eles usavam dente de capivara para rasgar a<br />

pele do morto.<br />

Sobre os costumes indígenas, Knivet se mostra curioso quando relata dois índios<br />

totalmente enfeitados de penas de aves:<br />

“À primeira vista pensei que tivessem nascido cobertos de penas na cabeça e pelo corpo, como aves<br />

aér<strong>ea</strong>s. Tinham untado seus corpos com goma de tufos oleosos de balsamo e haviam recoberto tão<br />

habilmente com penas de diversas cores de modo a não se ver nem um só lugar da pele, a não ser<br />

penas” 48 .<br />

Também descreve o hábito dos índios, principalmente os homens, de furarem as<br />

orelhas, o lábio e a face, onde colocavam pedras preciosas. Relata também o costume da<br />

pintura corporal que os índios utilizavam, mas não a especifica. Com relação à guerra, ele não<br />

descreve nenhum preparativo para a ação bélica, só descreve que aos melhores guerreiros<br />

eram oferecidas muitas mulheres, como aconteceu com o próprio Knivet: “os tamoios<br />

ofereceram-me muitas mulheres, mas recusei-as, referindo-lhes que não era costume nosso<br />

casarmo-nos fora do nosso país” 49 . Em relação ao modo de vestir dos índios, ele assevera que<br />

na maior parte, andam todos nus, e que ele próprio andou nu, só com pequena cobertura<br />

vegetal nas partes baixas, por vergonha, quando viveu quase dois anos entre os tamoios. Sobre<br />

o ritual antropofágico ele diz que os índios não matam os prisioneiros no campo de batalha,<br />

mas lhe dão a um amigo, ou irmão, que o sacrifica e com isso, toma tantos nomes quantos<br />

forem o número de prisioneiros abatidos, sendo que as mulheres preparam uma bebida para a<br />

festa da matança do prisioneiro, mas Knivet não diz o nome dessa bebida, que é o cauim.<br />

47 Ibid., p. 21.<br />

48 Ibid., p. 60.<br />

49 Ibid., p. 85.<br />

Knivet relata o modo como foi recebido pelos indígenas da etnia puri em sua aldeia.<br />

“Assim que me aproximei duma grande casa, que julguei ser a do principal, ao qual chamam<br />

morubixaba, haviam pendurado uma bela rede entre dois moirões, ordenando-me nela sentar-me, e<br />

assim que me sentei, vieram pelo menos vinte mulheres, algumas pousando sua cabeça em meus<br />

75


ombros, outras nos meus joelhos, e puseram-se a chorar, num alarido tão lamentoso, que me causou<br />

espanto, mas resolvi ficar calado e quieto até que elas tivessem terminado” 50 .<br />

Esse tipo de saudação, a saudação lacrimosa era um costume indígena largamente<br />

difundido no Novo Mundo, especialmente entre as etnias da família tupi. Além dessa<br />

saudação por parte das mulheres, Knivet relata, que após elas terem se retirado da cabana<br />

onde se encontrava, adentrou nela:<br />

“(…) um homem velho, todo pintado de vermelho e preto, tendo três grandes furos na face: um no lábio<br />

inferior e outros dois de cada lado de sua boca, e em cada um destes havia uma belíssima pedra verde.<br />

Este canibal atravessou a casa onde eu estava e com uma espada de madeira nas mãos, à medida que se<br />

aproximava, bradava em altas vozes, olhando como se fora um louco, batendo as mãos no peito e nas<br />

coxas; sempre gritando, andava de cá para lá. Quando este selvagem acabou seu discurso, deu-me uma<br />

pancada à cabeça, desejou-me as boas vindas e ordenou que os manjares que havia em sua casa fossem<br />

postos diante de mim para comê-los” 51 .<br />

Com relação à gravidez, entre os indígenas, Knivet descreve que:<br />

“Quando chega a época do parto de qualquer mulher, esta saí para fora de casa e logo que a criança<br />

nasce, o pai se deita na rede, como as mulheres fazem conosco no leito de nascimento, é visitado por<br />

todos os seus vizinhos, e suas esposas o servem muito diligentemente. Nenhum índio, enquanto sua<br />

mulher está grávida, poderá matar peixe ou caça fêm<strong>ea</strong>, pois acredita que o feto morrera em<br />

conseqüência dele matar em tais condições qualquer ser em criação” 52 .<br />

Uma descrição semelhante a esta é feita por Marco Pólo, quando este descreve os<br />

habitantes da província de Ardandam:<br />

“Nesta região existe o costume de que quando a mulher dá à luz, levanta-se o quanto antes da cama e se<br />

encarregue da administração da casa, enquanto seu marido passa onze dias na cama e cuida do recémnascido;<br />

a mãe não tem outra preocupação com a criança que lhe dar de mamar; entretanto, os amigos e<br />

parentes visitam o homem na cama” 53 .<br />

5 – O que o autor relata em relação às doenças que grassavam na Brasil?<br />

Em relação às doenças, Knivet descreve que grande parte dos índios de uma expedição<br />

que participava, morriam de uma doença comum em todas as regiões quentes: “com suores<br />

pelo corpo alquebrado; com vermes, que lhes consumiam as entranhas, definhando-se até a<br />

morte, sem saber de que mal se aniquilavam”, sendo que essa doença começava “com dores<br />

50 Ibid., p. 47.<br />

51 Ibidem.<br />

52 Ibid., p. 124.<br />

53 POLO, Marco. Libro de las cosas maravilhosas. Tradução de R. de Santaella. Barcelona, Calamvs<br />

Scriptorivs, 1982, p. 41 apud GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução de<br />

Josely Vianna Batista. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 95.<br />

76


de cabeça e febre muito alta; faz-se uma sangria, mas a coisa acaba matando mesmo” 54 , essa<br />

descrição provavelmente se refere à desinteira, que desidratava as pessoas.<br />

Sobre doenças que não existiam no continente americano antes da descoberta, e que<br />

eram por isso trazidas de fora, Knivet narra que uma urca espanhola ao aportar no Rio de<br />

Janeiro no ano de 1599, “grassou uma doença qual sarampo, mas grave como a peste<br />

(varíola), pois em três meses matou no Rio de Janeiro para mais de três mil índios e<br />

portugueses: a doença aparecia em geral por todas as partes do país” 55 .<br />

Em Angola, na região de Massangano, Knivet relata que os portugueses “em tal região<br />

os portugueses morrem como frangos; vêem-se homens pela manha completamente são e<br />

mortos dentro de duas horas” 56 , outros apenas molham as pernas, estas incham colossalmente.<br />

Alguns se estorcem com um simples gole de água.<br />

6 – Map<strong>ea</strong>mento étnico feito pelo autor:<br />

Durante sua estada no Brasil, Knivet conheceu inúmeras tribos indígenas, tanto no<br />

litoral, quando no interior, por inúmeros motivos, quer em expedições bélicas, nas de<br />

comércio, onde trocava quinquilharias por escravos, ou quando viveu um tempo entre os<br />

próprios indígenas.<br />

Como já referimos acima, o primeiro contato que Knivet tem com indígenas no Brasil<br />

se dá quanto está em Santos, mas ele não informa nada acerca desses índios, a não ser pelo<br />

fato desses indígenas terem seguido viagem com eles rumo ao Estreito. Com relação à viagem<br />

aos indígenas que Knivet descreve nessa viagem rumo ao Estreito, ver as descrições do<br />

maravilhoso (gigantes e canibais atarracados).<br />

A primeira tribo que Knivet conheceu foram os guaianases (1), que estavam em paz<br />

com os portugueses e cujos habitantes “por facas e machadinhas, vendiam suas mulheres e<br />

filhos” 57 para estes servirem de escravos aos portugueses. Diz que esses índios eram:<br />

“(…) canibais de pequena estatura, muito barrigudos, de pés chatos e não muito escuros de pele. São<br />

bastante covardes. Não tatuam seus corpos, nem se vangloriam de comer carne humana, como os<br />

tamoios, os tómiminós e outros antropófagos o fazem” 58 .<br />

54 KNIVET, Anthony. Op. cit., p. 69.<br />

55 Ibid., p. 109.<br />

56 Ibid., p. 161.<br />

57 Ibid., p. 46.<br />

58 Ibid., p. 134.<br />

77


Logo em seguida foi à aldeia dos índios puris (2), novamente com o intento de<br />

conseguir mais escravos (sobre o modo como foi recebido nessa aldeia ver sobre os costumes<br />

indígenas) e os descreve como parecidos aos guaianases, sendo que eles “estão em paz com os<br />

portugueses, não guerreiam com nenhuma nação e nem comem carne humana, desde que<br />

tenham qualquer outra carne” 59 .<br />

Com relação aos petiguaras (3), Knivet, diz que eles:<br />

“(…) não são de condição tão selvagem e bárbara como muitas outras nações o são no Brasil (…) estes<br />

canibais não tem nenhuma religião; possuem tantas mulheres quantas queiram, ou possam tomar: a<br />

mulher, porém, pode ter só um marido, exceto se este último lhe dá licença, em público, diante de todos.<br />

Então pode ela tomar quem quiser. Quando vão à guerra, suas mulheres carregam toda provisão em<br />

cestos às costas” 60 .<br />

Contudo, ele relata que eles andam completamente nus, e se encontram em guerra com<br />

os portugueses, e com as demais províncias canibais, e por isso eles devoram toda espécie de<br />

povos, que são seus inimigos. Relata que estes nativos mantiveram uma relação comercial<br />

com os franceses, por isso, há entre eles muitos que falam francês.<br />

Cita ainda, os carajás (4), como índios inconstantes, pois “este povo se perceber que<br />

vindes desprevenidos, vos atacara fatalmente; mas se ver que sois capazes de defesa, limitar-<br />

se-á a trazer mercadorias que tem para traficar” 61 . Os tupinambás (5), sendo que para Knivet,<br />

estes têm o mesmo costume dos petiguaras. Os lôpos (6), que os portugueses chamam de<br />

bilbeiros 62 . Os aimorés (7) são descritos como gente bárbara, que não possuí casas e por isso<br />

vagueiam como animais bravios, além de serem considerados “ávidos por carne humana, e<br />

são gente muito suja, seus corpos sempre cobertos de poeira e imundícies por se deitarem no<br />

chão entre as cinzas” 63 . Os mariquitás (8) foram descritos por Knivet como sendo tapuias<br />

(antropofagia funerária). Os guaitacases (9) são comparados com irlandeses selvagens, sendo<br />

que suas mulheres guerreiam tão bem quanto os homens, e que comem toda sorte de povos,<br />

franceses, portugueses e negros 64 . Knivet considerou a aldeia dos guaianaguaçus (10) como a<br />

mais simples dentre todas às que viu, pois estes índios “são gente indolente, que não se<br />

importa com nada, deitando o dia todo, preguiçosamente, nas suas moradias, e nunca saindo<br />

para outras regiões, exceto para procurar víveres” 65 . O contrário, Knivet dizia da aldeia dos<br />

tomiminós (11), pois estas eram:<br />

59 Ibid., p. 137.<br />

60 Ibid., p. 123.<br />

61 Ibid., p. 170.<br />

62 Ibid., p. 141.<br />

63 Ibid., p. 129.<br />

64 Ibid., p. 131.<br />

65 Ibid., p. 142.<br />

78


“(…) fortificadas com grandes pedras sobrepostas, como paliçadas, de regular altura; dentro destas<br />

paliçadas há muitos muros feitos de barro e pedra; suas casas são compridas, cobertas de cascas de<br />

arvores; os lados são como grades feitas de bambus, de tal forma que podem atirar para fora delas” 66 .<br />

Com relação aos índios morupaques (12), Knivet diz que “são muito parecidos em<br />

tamanho com os holandeses” 67 , sendo que estes índios cobrem os genitais, sendo eles bastante<br />

civilizados em sua conduta, possuindo aldeias fortificadas, onde possuem “casa<br />

separadamente, cada varão com sua família” 68 . Continua dizendo que são muito ordeiros,<br />

tendo “horário para as suas refeições, pela manha e a noite e isso não faz nenhuma nação do<br />

Brasil, são muito ass<strong>ea</strong>dos em tudo” 69 , além disso, diz que se estes canibais tivessem<br />

conhecimento de Deus, poderia dizer com convicção que não haveria outros iguais a eles no<br />

mundo. Com relação as suas mulheres, Knivet diz que:<br />

“(…) são bem feitas, de bela tez, como nossas mulheres inglesas; muito recatadas e delicadas em seu<br />

trato; nunca as vereis dar risadas; são pessoas capazes de compreender qualquer coisa; apreciam muito<br />

os cabelos e os tem tão compridos, que os amarram a altura da cintura com uma casca de arvore,<br />

vestindo com eles suas nudez” 70 .<br />

Os Tupinaquis (13) comiam carne humana, pintavam seus corpos quando matavam um<br />

homem com um fruto chamado jenipapo, enfeitavam as cabeças com penas e com matracas<br />

nas mãos dançavam por três dias a fio. 71 As mulheres da etnia mataiás (14) receberam Knivet<br />

e as pessoas que estavam com ele, com a saudação lacrimosa, os homens, após as mulheres<br />

saírem, brindaram os estrangeiros com:<br />

“(…) carne humana assada, seca, preta como carvão, informando-nos de que era de um tamoio que<br />

haviam matado e quiseram que comêssemos dela, julgando haver-nos apresentado raro e saborosos<br />

manjar; quando viram que o recusávamos, riram-se, e alguns deles adiantaram que não sabíamos o que<br />

era carne boa” 72 .<br />

Os tamoios (15) foram os índios que devoraram os doze companheiros de Knivet e<br />

onde o próprio passou um ano e onze meses em convívio com eles, participando de várias<br />

guerras contra as tribos inimigas entre outras atividades. Diz que esses índios não davam valor<br />

algum ao ouro ou as pedras preciosas que eram abundantes no lugar onde habitavam. Os<br />

carijós (16) “comem carne humana e falam a mesma língua que os tamoios” 73 , só que em vez<br />

de serem inimigos dos portugueses são seus aliados. E por último, Knivet, quando da<br />

66 Ibid., p. 129.<br />

67 Ibid., p. 138.<br />

68 Ibidem.<br />

69 Ibid., p. 139.<br />

70 Ibidem.<br />

71 Ibid., p. 135.<br />

72 Ibid., p. 140.<br />

73 Ibid., p. 150.<br />

79


expedição de guerra contra os tamoios, se refere a uma aldeia indígena que encontram no<br />

caminho, como sendo de tapuias (17), sendo esta aldeia só habitada por mulheres porque os<br />

homens tinham ido à guerra com os tamoios e todos tinham sido mortos.<br />

7 – Com relação ao maravilhoso, a zoologia e a geográfica fantástica. O que o autor descreve?<br />

Knivet, mesmo tendo vindo para a América no último quarto do século XVI, quando a<br />

colonização já estava consolidada e as descrições bas<strong>ea</strong>das no maravilhoso estavam sendo<br />

deixadas de lado, por um r<strong>ea</strong>lismo que se baseia no conhecimento da região que no início<br />

deste século era totalmente desconhecida, traz em seu relato muitas alusões a seres<br />

fantásticos, a animais mitológicos, a monstros e a reinos lendários.<br />

O maravilhoso marca forte presença na obra de Knivet. As descrições sobre riquezas<br />

extraordinárias são aludidas, não constantemente, mas são feitas em vários trechos da obra,<br />

principalmente durante as peregrinações que fazia ao sertão. Como quando Knivet, junto de<br />

mais doze portugueses, resolvem seguir um caminho diferente do resto da expedição para<br />

regressar ao Rio de Janeiro: eles param em uma aldeia abandonada, onde encontram:<br />

“(…) grande quantidade de vasilhas de barro e, nalgumas delas, pedaços de outro amarrado a linhas<br />

com que os índios pescavam; também se acharam pedras verdes como capim, e considerável cópia de<br />

umas pedras brancas, brilhantes como cristal; muitas delas eram azuis e verdes, vermelhas e brancas,<br />

maravilhosamente lindas à vista. Ao deparar com tais pedaços de ouro e aquelas pedras rendemo-nos<br />

conta de que estávamos muito perto do Potosi” 74 .<br />

Na seqüência desta viagem, ele diz que “encontravam pequenos pedaços de ouro do<br />

tamanho de uma avelã e grande quantidade em pó, como areia” 75 . Também, refere-se a<br />

inúmeras montanhas, como a que chama Itaobi, onde era possível achar pedras verdes 76 . Além<br />

de dizer, que as paragens onde os tamoios estavam assentados, se fossem conhecidas pelos<br />

espanhóis, estes não precisariam ir ao Peru, porque “não há terra que rivalize com esta para<br />

toda a espécie de metais valiosos e muitas gemas raras” 77 .<br />

Há uma descrição, que não pode ser considerada totalmente como pertencente ao<br />

domínio do maravilhoso, pois Knivet ao relatar, que em porto Desejado, fora trazido a bordo<br />

“um médico que curava com palavras” 78 , que fez com que ele sentisse as suas pernas de volta,<br />

pois este tal médico deve ser um pajé ou um curandeiro indígena, só que Knivet não sabe,<br />

74 Ibid., p. 81. Grifos do autor.<br />

75 Ibid., p. 82.<br />

76 Ibid., p. 71.<br />

77 Ibid., p. 146.<br />

78 Ibid., p. 31.<br />

80


pois até esse momento da viagem ele não conviveu com os indígenas, portanto não sabia<br />

direito quem era esse personagem, contudo ele também pode ter associado esse “médico” a<br />

algum feiticeiro ou bruxo europeu, mas ele não deixa isso claro.<br />

Sobre a geografia fantástica, temos duas descrições. Uma diz respeito ao continente<br />

africano e a outro se refere à América. Sobre a primeira, temos que ao empreender uma fuga,<br />

Knivet chega a Angola, de onde almejava chegar à Turquia, para de lá ir a Jerusalém e depois<br />

voltar para casa (Inglaterra), mas para tal fim ele dizia que tinha de atravessar o país do<br />

lendário Preste João 79 . A questão relacionada à América diz respeito, a que muitos<br />

aventureiros, como o próprio Knivet o fez, tendem a descrever as distâncias entre os vários<br />

pontos conhecidos da América nesse período, como sendo muito pequenas. Knivet quando<br />

está a caminho da aldeia dos tamoios – onde os doze portugueses foram devorados – descreve<br />

ao achar alguns vasos com pedras incrustadas, que deveriam estar perto do Potosi, já na<br />

peregrinação que empreende com os mesmos tamoios em direção ao litoral, diz que passaram<br />

pela terra das amazonas, mas antes eles atravessaram a região de Tucumã, onde Knivet diz ter<br />

visto pigmeus entre os espanhóis. Sobre a questão geográfica:<br />

“Teodoro Sampaio observa que o Peru dos geógrafos quinhentistas abrangia três quintas partes do<br />

Brasil atual, entre o trópico do Capricórnio e o Equador e, portanto, viria ficar muito próximo de São<br />

Paulo, de cujo sertão tomaria boa parte, e próximo de Minas Gerais e do Maranhão atuais” 80 .<br />

Em relação à zoologia fantástica, temos muitas descrições. Para começar, como nos<br />

referimos acima, ao se deslocar junto com os tamoios em direção ao litoral (mar), Knivet<br />

narra que eles nessa peregrinação, atingiram “a terra das amazonas, às quais os silvícolas<br />

chamam mandiuçuiaras (tradução seria: pescadoras de mandis grandes segundo Teodoro<br />

Sampaio)” 81 , sendo que Knivet “quis persuadir os tamoios a dar combate às amazonas, mas<br />

não ousaram, alegando saber que o país delas é muito populoso, e que seriamos todos<br />

mortos” 82 . Nessa mesma peregrinação, Knivet nos relata que a região de Tucumã era habitada<br />

por pigmeus, sendo que ele diz ter visto “muitos deles entre os espanhóis no rio da Prata. Não<br />

são de fato tão pequenos como se diz aqui na Inglaterra; suas habitações, em Tucumã, são<br />

cavernas no chão” 83 . Relata ainda que em uma aldeia dos tamoios, o seu chefe Abauçanga<br />

79 Ibid., p. 95 e 161.<br />

80 Ibid., p. 81.<br />

81 Ibid., p. 87.<br />

82 Ibid., p. 88.<br />

83 Ibid., p. 147.<br />

81


possuía cento e vinte anos de idade e que ainda se encontrava rijo, sendo que ele acompanhou<br />

os portugueses ao campo de batalha contra os guaiatases 84 .<br />

patagônia:<br />

Com relação à viagem rumo ao Estreito de Magalhães, Knivet relata que na região da<br />

“(…) habitam gigantes de quinze e dezesseis palmos de altura. Asseguro que lhes vi as pegadas na<br />

praia, as quais excediam em comprimento a quatro pés de um dos nossos homens; vi ainda dois deles<br />

que haviam sido sepultados recentemente, um dos quais tinha catorze palmos de comprimento” 85 .<br />

Ainda diz que encontrou um desses gigantes no Brasil, sendo ele “apenas um<br />

adolescente e assim mesmo tinha mais de treze palmos de altura” 86 , além de ter ouvido<br />

comentários de que esses gigantes arremessavam, com cordéis, pedras enormes nos navios, o<br />

que é para o tradutor, nada mais do que uma “reminiscência clássica das fabulas de Homero,<br />

Ovídio e Virgilio, com referência aos Lestigones e aos Ciclopes” 87 . Ainda sobre os gigantes,<br />

Knivet diz que eles andam inteiramente nus, usam cabelos longos até os ombros, e são bem<br />

proporcionados, contudo “julgam os portugueses e os espanhóis, não são melhores do que os<br />

demais comedores de carne humana do Brasil” 88 .<br />

Em outro porto, o da fome, que se localiza na parte meridional do Estreito de<br />

Magalhães – que nada mais é do que a Ciudad R<strong>ea</strong>l de Filipe ou Filipolis, fundada em 1582<br />

por Pedro Sarmiento de Gamboa, por ordem de Filipe II, no intuito de assegurar à Espanha a<br />

posse da passagem desse estreito 89 –, segundo Knivet:<br />

“(…) vive uma tribo de canibais esquisitos, pequenos de corpo, não tendo mais que cinco a seis palmos<br />

de altura, muito fortes e atarracados; sua boca é excessivamente grande, chegando até quase às orelhas;<br />

comem por assim dizer a carne crua, pois nada mais fazem do que chamuscá-la de leve ao fogo e assim<br />

a trituram; com o sangue que lhes escorre da boca besuntam todo o rosto e o peito e deitam-lhe<br />

pequenas penas que grudam a este sangue como se tivessem posto gelatina sobre a pele” 90 .<br />

Estes canibais esquisitos, por medo de serem aprisionados, não permitiam uma<br />

aproximação, e utilizavam uma vara longa para efetuar as trocas. Eles, mesmo com o frio<br />

intenso que faz na região, andam nus, exceto alguns que usam peles de faca ou de algum outro<br />

animal selvagem da região.<br />

Logo depois de ser abandonado no Brasil, mas antes de ser capturado pelos<br />

portugueses, Knivet, relata que viu:<br />

84 Ibid., p. 92.<br />

85 Ibid., p. 151.<br />

86 Ibid., p. 152.<br />

87 Ibid., p. 151.<br />

88 Ibid., p. 152.<br />

89 Ibid., p. 28.<br />

90 Ibid., p. 152-153.<br />

82


“(…) uma enorme coisa surgir das águas, com grandes escamas no dorso, garras medonhas e cauda<br />

comprida; este animal avançava para mim sem que eu tivesse a possibilidade de livrar-me dele. Nesta<br />

emergência, adiantei-me para encontrá-lo; mas aproximando-me, detive-me atônito ao ver tão monstra<br />

coisa à minha frente. A esta altura a fera estacou e abriu a boca, lançando fora a língua longa, como um<br />

arpão. Recomendei-me a Deus, julgando que iria ser reduzido a pedaços. Entretanto a fera voltou-se e<br />

caminhou para dentro do rio, seguindo-a eu pela margem” 91 .<br />

Por fim, temos que Knivet ao voltar ao Brasil, depois de sua aventura no continente<br />

africano, seguiu Martim Correia de Sá em inúmeras expedições, tanto para traficar como para<br />

aprisionar os índios, sendo que em uma dessas expedições, ao passar por Itaoca, Knivet vê<br />

“uma seria e muitos outros peixes esquisitos” 92 . Em outra expedição, Knivet nos relata que<br />

durante o caminho até a aldeia dos tamoios, eles pararam numa aldeia de índios<br />

guaianáguaçus, onde:<br />

“(…) todos os nossos homens, índios e portugueses, adoeceram por ter comido uma espécie de fruto, de<br />

sabor agradável e doce, mas venenoso, e se não fora um moço fidalgo, por nome Onofre de Sá, parente<br />

de meu amo e que possuía um pedaço de chifre de unicórnio (…)” 93 .<br />

A partir dessa descrição, podemos dizer que, embora a obra de Knivet se encontre<br />

impregnada de referências a animais mitológicos, riquezas extraordinárias e reinos lendários.<br />

Categorias que marcam/caracterizam a literatura sobre o período das grandes navegações, da<br />

descoberta e da conquista da América, mesmo tendo sido escrita nos primórdios do século<br />

XVII. Não há nenhuma aproximação entre essas categorias com a descrição que Knivet faz do<br />

ritual antropofágico (Knivet presencia a prática antropofágica na última década do século<br />

XVI). Ou seja, ao descrever o rito antropofágico, Knivet não o descreve no sentido de estar<br />

re-encontrando algo (vestígios de coisas já conhecidas na Europa – literatura clássica) que já<br />

conhecia ou tinha ouvido falar, mas o descrevendo no sentido de observar e distinguir uma<br />

alteridade – que se personifica na figura dos índios – que difere em vários aspectos de seu<br />

referencial que é a alteridade européia.<br />

8 – O autor faz alguma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena?<br />

Knivet não faz relação alguma entre a cosmologia indígena e a antropofagia, ele não<br />

cita nem um mito sobre a origem da antropofagia entre os indígenas de nenhuma etnia.<br />

Também não comenta a questão dessa ser a morte id<strong>ea</strong>l, almejada por todo guerreiro, que os<br />

levaria para um além onde encontrariam seus antepassados e deuses. Knivet não coloca<br />

91 Ibid., p. 38.<br />

92 Ibid., p. 174-175.<br />

93 Ibid., p. 67-68. Grifos do autor.<br />

83


nenhuma opinião acerca da matança em terreno. Sobre o caso dos portugueses, ele apenas<br />

descreve o quê os índios tamoios lhe disseram: que os devoraram porque estes eram seus<br />

inimigos. Já sobre o caso dos petiguaras, diz que estes índios ao consumirem a carne do<br />

morto, acham que ela os tornará fortes e valentes (absorção/incorporação das qualidades da<br />

vítima).<br />

9 – O autor faz algum confronto entre a sua visão de morte e a visão de morte dos indígenas?<br />

Knivet, não faz nenhum confrontamento entre as visões de morte, ele não descreve<br />

nem a sua visão de morte, nem a dos indígenas. Ele não faz nenhuma referência ao além<br />

indígena: a terra sem mal, onde os antepassados e os deuses estariam esperando os guerreiros<br />

valorosos – sendo que a porta de entrada seria a morte gloriosa em terreiro.<br />

84


Hans Staden<br />

De origem alemã, Hans Staden, nasceu em Hessem, por volta do ano de 1520. Entre os<br />

anos de 1547 e 1550, empreendeu duas viagens ao Brasil, uma sob bandeira portuguesa e<br />

outra sob bandeira espanhola. Em ambas as viagens desempenhou a função de artilheiro.<br />

A primeira viagem de Hans Staden ao Brasil, data do ano de 1547, sendo feita sob<br />

bandeira portuguesa, tendo por comandante o capitão Pent<strong>ea</strong>do, cujo destino era Pernambuco.<br />

Essa viagem tinha finalidade mercantil, entretanto, seu capitão, tinha “carta franca para dar<br />

caça a embarcações que, em águas africanas e brasileiras, praticassem o contrabando” 1 , por<br />

isso, Staden relata que batalhas foram travadas contra franceses na costa de Pernambuco.<br />

Além disso, ajudaram a dar combate a índios caetés que assediavam a colônia de Igaraçu,<br />

voltado a Europa, ou mais precisamente, a cidade de Lisboa, no ano seguinte, 1548, após<br />

ganha a batalha dos indígenas.<br />

Já a segunda viagem, empreendida dois anos após a primeira, ou seja, em 1550, sob<br />

bandeira espanhola, em princípio, não tinha por objetivo atingir terras brasílicas, mas sim, o<br />

Rio da Prata, pois seu comandante, Diogo de Sanabria, tinha por objetivo fundar dois<br />

povoados, um na costa de Santa Catarina e outro na embocadura do rio da prata. Contudo, por<br />

vicissitudes do destino, ou melhor, pelo naufrágio do navio onde se encontrava e não porque<br />

quis (vontade própria), acabou Hans Staden, novamente no Brasil, desta vez no sul, o<br />

naufrágio ocorreu no litoral de Itanhaém, de onde Hans Staden seguiu para São Vicente,<br />

chegando à vila no ano de 1552. Esta vila, tal como a que, Staden conheceu em sua primeira<br />

viagem (no nordeste), era alvo de freqüentes ataques dos índios tupinambás, que se<br />

encontravam inimizados com os portugueses, sendo aliados dos franceses. Para proteger a<br />

vila, os portugueses construíram um forte na região de Bertioga, onde Staden, por saber<br />

manejar canhões, é induzido, primeiro a ficar por quatro meses, depois de expirado tal prazo,<br />

firma com Tomé de Sousa, no ano de 1553, um contrato de dois anos, onde é nom<strong>ea</strong>do<br />

condestável da Fortaleza de Bertioga 2 , contudo ele mesmo diz que ficaria: exposto aos<br />

selvagens, onde nenhum “artilheiro português queria aí arriscar-se” 3 , por estar muito mal<br />

defendida e construída. Para Giucci, “a admissão do risco da tarefa não é justificada pelo id<strong>ea</strong>l<br />

da apropriação de riquezas auríferas, mas pela esperança da retribuição dos serviços prestados<br />

1<br />

ADRÄ, Helmut. Hans Staden e sua época. Revista de História. São Paulo: EDUSP, v. 20, n° 42, p. 289-307,<br />

abril/julho 1960, p. 297.<br />

2<br />

Ibid., p. 304.<br />

3<br />

STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia/EDUSP, 1974, p. 75.<br />

85


no Novo Mundo em beneficio do rei de Portugal” 4 , sendo que o próprio Staden, deixou claro<br />

que findo os dois anos de contrato, os portugueses o deviam deixar ir/voltar, sem criar<br />

embaraços, a Portugal, onde receberia sua recompensa pelos serviços prestados 5 .<br />

No ano seguinte, 1554, ao ir buscar caça na floresta – “na América o descuido e o<br />

perigo de morte convergem” 6 –, foi assaltado, aprisionado e despido, protegendo um forte<br />

português, por índios tupinambás, que nesse período eram aliados dos franceses e inimigos<br />

dos portugueses que eram aliados dos tupiniquins e estes inimigos dos tupinambás. Dessa<br />

maneira, teve início à saga do artilheiro alemão, que foi conduzido pelos indígenas à aldeia de<br />

Ubatuba – “que segundo pesquisas de Wilhelm Kloster, não deve ser confundida com o atual<br />

lugar denominado Ubatuba, em São Paulo, mas localizada em terras fluminenses de Angra<br />

dos Reis” 7 –, onde, conviveu por nove meses com seus captores, “frequentemente am<strong>ea</strong>çado<br />

de morte e de ser devorado num ritual antropofágico da tribo, conseguiu adiar sua morte ao<br />

longo dos meses, até ser resgatado por um navio francês” 8 , nos quais participou das atividades<br />

diárias da tribo, das expedições guerreiras e venatórias, bem como das cerimônias festivas.<br />

Staden foi considerado pelos índios, como sendo português, mas ele primeiro<br />

declarou-se “alemão, depois amigo e parente dos franceses, e finalmente francês” 9 . A cor de<br />

sua barba ruiva lhe serviu de álibi, pois esta confundiu os índios, pois para eles, a barba preta<br />

denunciava os portugueses, e a ruiva os franceses. Em dúvida sobre a origem de Staden, os<br />

tupinambás, esperaram a vinda de um francês, por eles chamado de Caruatá-uára, a sua<br />

aldeia, para esclarecer tal dúvida, sendo que este dirigiu a palavra a Staden em francês, e ele<br />

ficou em silêncio, pois não sabia/estendia francês, apenas alemão e tupi, sendo nesse silêncio<br />

metamorfos<strong>ea</strong>do em português, no qual o francês completou com frase (em língua nativa):<br />

“Matai-o e comei-o, esse biltre; ele é bem português, vosso inimigo e meu” 10 , ou seja, à priori,<br />

um francês condenou Staden à morte (a ser devorado). Dessa forma Staden, se retirou para a<br />

oca onde estava alojado, mas antes atirou aos pés do francês, um pedaço de pano de linho, que<br />

ele tinha colocado no ombro, pois o sol tinha queimado, mas agora, segundo Staden: “Se eu<br />

devia morrer mesmo, por que havia de cuidar ainda da minha carne para os outros!” 11 . Dentro<br />

4<br />

GIUCCI, Guillermo. Viajantes do maravilhoso: o Novo Mundo. Tradução de Josely Vianna Batista. São<br />

Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 220.<br />

5<br />

STADEN, Hans. Op. cit., p. 76-77.<br />

6<br />

GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 220.<br />

7<br />

ADRÄ, Helmut. Op. cit., p. 304; STADEN, Hans. Op. cit., p. 87-88.<br />

8<br />

OLIVEIRA, Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. São Paulo:<br />

Ática, 1999, p. 83.<br />

9<br />

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial 1500-1808. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000, p. 278.<br />

10 STADEN, Hans. Op. cit., p. 95.<br />

11 Ibidem.<br />

86


da oca, deitado na rede, Staden começou a entoar uma prece, que os selvagens interpretaram<br />

de outra maneira, pois para os indígenas isso significava que Staden: “É um português<br />

legítimo. Agora grita, apavora-se diante da morte” 12 .<br />

Contudo, Staden utilizou inúmeras artimanhas, ou melhor, soube manipular em<br />

proveito próprio as crenças indígenas, mas também, demonstrou aos indígenas que o Deus<br />

cristão era poderoso. Sendo esta “habilidade do prisioneiro alemão para manipular o sagrado<br />

indígena com objetivos am<strong>ea</strong>çadores” 13 , a razão pela qual não morreu no sacrifício (ritual<br />

antropofágico), pois o postergou o máximo possível até sua fuga – volta para a Europa.<br />

“A astúcia de Staden consistira em controlar, ou melhor, simular controle sobre os fenômenos da<br />

natureza. (…) como a sobrevivência dos índios, bas<strong>ea</strong>da na pesca e na plantação, mostrasse subordinada<br />

a influencia do sol, da luta, dos ventos e das tempestades, a esperteza do herói estaria em simular<br />

controle sobre a natureza, pelo poder de sua mente ou pela força de seu Deus” 14 .<br />

Segundo Giucci, a identificação das crenças indígenas bas<strong>ea</strong>das em superstições,<br />

possibilitou aos europeus, na etapa da conquista, a obtenção de escravos, gêneros comerciais<br />

ou alimentícios, sem necessidade de se recorrer à violência 15 , sendo que esse método não<br />

surtiu o mesmo efeito quando a colonização efetiva do continente americano se consolidou,<br />

pois a apropriação das terras pelos colonos europeus, ligada à demanda de mão-de-obra<br />

indígena escrava, juntando com a necessidade de disciplinar o nativo, mais as guerras e as<br />

epidemias, afetaram diretamente as instituições tribais indígenas, além disso, as alianças<br />

indígenas antes indispensáveis aos europeus, perderam o sentido 16 .<br />

“O conhecimento abre caminho para o poder quando uma das partes sabe o que a outra desconhece. E<br />

se torna poder quando a possibilidade de predizer eventos incomuns é formulada pela primeira como<br />

expressão do domínio sobre o considerado inescrutável pela segunda” 17 .<br />

Então, nesse período, o expedicionário quinhentista, mesmo estando em clara<br />

desvantagem, ou em situação desesperadora, em relação ao elemento indígena, “tentou<br />

manobrar as crenças indígenas com a esperança de poder r<strong>ea</strong>firmar sua autoridade ou<br />

assegurar sua sobrevivência” 18 . Sendo que em cada caso o conquistador adaptou essa<br />

estratégia as suas necessidades:<br />

12 Ibid., p. 96.<br />

13 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 226.<br />

14 BELLUZO, Ana Maria. A lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In: IN: GRUPIONI, Luis<br />

Donisete (Org.). Índios do Brasil. Brasília: Ministério da Educação e do Desporto, 1994, p. 47-58, p. 48.<br />

15 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 207.<br />

16 Ibid., p. 213.<br />

17 Ibid., p. 226.<br />

18 Ibid., p. 208.<br />

87


“Colombo relaciona perdão divino com provisão de alimentos; Alvarez Nunez, bem-estar dos indígenas<br />

com prosseguimento da viagem rumo a oeste. Ao manipular o sagrado, Staden também persegue um<br />

objetivo especifico: não ser devorado” 19 .<br />

Podemos dizer que as ações de Hans Staden, ao manipular com certo oportunismo, as<br />

crenças indígenas, são as de um “homem desesperado, que treme e teme (…) que as explora<br />

para adiar a sua morte, que as crítica para preservar sua vida” 20 . Podemos vislumbrar os<br />

efeitos da manipulação que Staden fez com as crenças indígenas, ao tomarmos as velhas<br />

índias como exemplo, pois Staden mostrou pavor frente às velhas nativas que com arranhões e<br />

pancadas am<strong>ea</strong>çavam devorá-lo, só que as mesmas velhas que lhe atormentavam, pediram<br />

desculpas, após uma doença (Staden não diz qual) grassar sobre a aldeia, pedindo que ele não<br />

as deixasse morrer:<br />

“Tratamos desse modo a ti por que pensamos que eras português, contra os quais temos rancor. Já<br />

aprisionamos e comemos também alguns portugueses que comemos, porém o seu Deus não se irou<br />

tanto como o teu. Reconhecemos que tu não és português” 21 .<br />

No final, Staden granjeou êxito na preservação de sua vida, sendo resgatado por um<br />

navio francês, depois que estes convenceram o chefe Abati-Poçanga da origem francesa do<br />

prisioneiro. De volta a Europa, são e salvo, da aventura de nove meses entre os tupinambás,<br />

onde correu constantemente perigo de ser devorado em ritual antropofágico, Staden<br />

transformou essa aventura, na obra: Duas viagens ao Brasil, publicada no ano de 1557 – “em<br />

Marburg, na ‘Folha de Trevo’, por André Kolbe” 22 . Segundo o próprio Staden, essa obra não<br />

foi escrita com o intuito de angariar fama, ou “pelo prazer de escrever alguma coisa nova, mas<br />

para trazer à luz os benefícios que Deus me prestou” 23 . Esta obra obteve enorme sucesso<br />

editorial, tanto que no mesmo ano em que foi publicada, teve duas edições: uma em Marburg<br />

e a outra em Frankfurt, sendo que “a primeira seria ornada com gravuras feitas pelo próprio<br />

autor, ou executadas sob a sua orientação, enquanto a segunda, a de Frankfurt, continha<br />

ilustrações bem ao gosto medieval: bruxas, fogueiras e diabos” 24 . Segundo alguns autores,<br />

nenhum outro relato do século XVI foi tão amplamente divulgado, e recebeu tantas edições<br />

em tão diversão línguas 25 . Segundo Helmut Adrä, o relato de Hans Staden é:<br />

“Admirado por etnólogos e etnógrafos, sem haver sido viajante explorador ou cientista; apreciado por<br />

geógrafos, botânicos e zoólogos, sem jamais haver gozado de instrução escolar superior; consultado por<br />

19 Ibid., p. 228.<br />

20 Ibid., p. 232.<br />

21 STADEN, Hans. Op. cit., p. 109.<br />

22 Ibid., p.17 e 198.<br />

23 Ibid., p. 121. Também há informação nesse sentido nas páginas: 37 e 196.<br />

24 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 279.<br />

25 STADEN, Hans. Op. cit., p. 19-24.<br />

88


historiadores e cartógrafos, sem que tivesse estado familiarizado com os seus respectivos domínios do<br />

saber; lido, com entusiasmo, por jovens e velhos, sem haver pertencido a qualquer linhagem de<br />

escritores profissionais” 26 .<br />

Sobre esta obra, podemos dizer que ela “narra os infortúnios pessoais de Staden,<br />

documenta os costumes dos tupinambás e descreve as características da flora e da fauna da<br />

região por eles habitada e dominada” 27 , sendo ela escrita em primeira pessoa, porém a<br />

configuração visual, ou seja, as xilogravuras, que foram feitas sobre a orientação do próprio<br />

Staden, para tornar o relato mais verossímil – “essas imagens respondem ao desejo de<br />

construir a r<strong>ea</strong>lidade e demonstram o encontro da experiência do viajante com as coisas que<br />

lhe são reveladas” 28 (choque cultural) –, se apresentam na terceira pessoa, contudo não existe<br />

correspondência entre as ilustrações e a divisão dos textos em capítulos. Ainda, para Giucci, o<br />

relato de Staden, desmistifica a América “em relação ao modelo do maravilhoso que a<br />

recobria e deformava, como reconhecida em sua singularidade e em sua diferença radical com<br />

o referente europeu” 29 .<br />

1 – Com relação à prática antropofágica:<br />

a) Como o autor descreve (narra) o ritual antropofágico?<br />

Com relação ao ritual antropofágico, Hans Staden, o descreve em duas oportunidades,<br />

embora em muitas outras partes do livro, ele narre os índios comendo carne humana, ele não<br />

descreve o ritual que levou esses índios a comer seus contrários. A primeira descrição que ele<br />

faz se refere à morte de um prisioneiro da etnia maracajá (que não habitava na mesma aldeia<br />

de Staden, e sim na de aliados desses), onde Staden descreve com minúcias, desde a<br />

preparação, até a execução e o modo como eles preparavam o prisioneiro para seu consumo.<br />

A segunda descrição que faz é a da morte de um índio carijó, que habitava a mesma aldeia<br />

que ele, mas segundo Staden, ficava constantemente o caluniando aos seus donos, e por isso<br />

adoeceu e como não melhorou os tupinambás o executaram, antes que morresse em<br />

decorrência da doença que tinha, contudo dessa vez, Staden não narra o modo como o<br />

prisioneiro foi morto da mesma forma que fez anteriormente. Podemos aventar a hipótese, que<br />

Staden, narrou o primeiro caso com mais detalhes, porque esse seria o modo que ele iria<br />

morrer, mas também porque foi o primeiro caso que vislumbrou, pois devemos lembrar que<br />

26 ADRÄ, Helmut. Op. cit., p. 291.<br />

27 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 214.<br />

28 BELLUZO, Ana Maria. Op. cit., p. 48.<br />

29 GIUCCI, Guillermo. Op. cit., p. 215.<br />

89


ao capturar Staden, os tupinambás o consideraram um português, ou seja, seu inimigo, cujo<br />

destino era a matança em terreiro.<br />

Sobre o primeiro caso, Staden é levado por seus donos (captores) a aldeia de<br />

Cunhambebe, pois eram aliados e foram convidados a participar da matança de um índio<br />

maracajá. Ao chegar à aldeia Staden relata que, conforme seu costume, os índios tinham<br />

preparado uma bebida de raízes – cauim –, pois sem ela, não matam ninguém. Durante os<br />

preparativos da matança, Staden vai conversar com o prisioneiro: “(…) disse-lhe ‘estas<br />

aparelhado para morrer’. Riu-se ele e respondeu: ‘Sim, estou bem munido de tudo, apenas a<br />

mussurana não é bastante longa. Entre nos temos melhores’” 30 . Para Staden, o escravo<br />

conversava como se fosse para uma feira. Contudo Staden, diz ao prisioneiro que ele estava<br />

na mesma situação que a dele e que não estava ali para comê-lo, apenas estava acompanhando<br />

seu dono, mas que ele (o índio maracajá), devia ter animo:<br />

“(…) pois comeriam apenas a sua carne; seu espírito iria a uma outra região, para onde vai também o<br />

espírito da nossa gente e lá há muita alegria” [ideologia cristã] Perguntou ele [índio maracajá] se isto era<br />

verdade. Referi que sim e respondeu-me que nunca havia visto Deus. Concluí dizendo que veria Deus<br />

na outra vida (…)” 31 .<br />

Dois dias depois desta conversa o prisioneiro foi morto ritualmente. Após ver esta<br />

morte ritualizada, Staden a descreve com grandes detalhes. Inicia dizendo que quando os<br />

índios trazem um prisioneiro (inimigo) para a aldeia, as mulheres e as crianças batem-lhe, a<br />

seguir as mulheres raspam os pelos do prisioneiro, sendo que uma delas é escolhida para ser a<br />

mulher do prisioneiro, ao qual serve com diligência. Se esta mulher “tem dele um filho,<br />

criam-no até grande, matam-no e o comem, quando lhes vem à cabeça” 32 (Isso se sucede, pois<br />

a criança é ligada, na grande maioria das etnias indígenas, ao lado paterno, sendo então que<br />

essa criança não pertencia a tribo da mãe, mas a tribo de seu pai, por isso a criança trazia o<br />

mesmo status de seus pai, ou seja, era considerado como inimigo).<br />

O prisioneiro é bem alimentado e tratado, durante o tempo que convive com seus<br />

captores, sendo que esse tempo é muito variável, podendo ser de alguns dias se estendendo há<br />

meses ou até anos – o próprio Staden viveu nove meses nessa condição. Nesse período, os<br />

índios começam a preparação para a morte do prisioneiro, fabricando vasilhas, nas quais<br />

conservaram o cauim, borlas de penas para enfeitar o ibirapema, o prisioneiro e o executor, a<br />

corda de algodão, chamada mussurana, com a qual o prisioneiro é amarrado pela cintura, etc.<br />

30 STADEN, Hans. Op. cit., p. 112.<br />

31 Ibid., p. 112-113.<br />

32 Ibid., p. 179.<br />

90


Quando tudo está preparado, eles determinam o tempo em que o prisioneiro deve morrer e<br />

convidam as aldeias vizinhas (aliadas) para que tomem parte na matança do inimigo.<br />

Quando os convidados reúnem-se, o principal da aldeia dá boas vindas a eles e diz:<br />

“Vinde agora e ajudai a comer vosso inimigo” 33 . Na véspera da morte, eles começam a beber<br />

o cauim e amarram a mussurana em torno do pescoço do prisioneiro. As mulheres pintam o<br />

ibirapema e o enfeitam com borlas de penas. Estando o tacape pronto “ornado com borlas de<br />

penas e outros enfeites, será pendurado acima do chão, numa vara, numa choça vazia. Os<br />

selvagens cantam então, através da noite toda, em volta desta choça” 34 . De mesmo modo, as<br />

mulheres pintam o prisioneiro, estando este pronto, é levado ao local onde os homens estão<br />

bebendo, para beber com eles. Quando acaba a bebida, eles constroem uma pequena choça no<br />

meio do pátio para o prisioneiro (no local onde deve morrer) – “Aí passa ele a noite, sendo<br />

bem vigiado” 35 .<br />

Ao alvorecer, os índios dançam e cantam ao redor do tacape, retiram o prisioneiro e<br />

derrubam a choça para fazer espaço. Em seguida desatam a mussurana do pescoço do<br />

prisioneiro e a amarram na cintura, de modo a ficar ele no meio e nas duas pontas muitos<br />

homens seguram a corda. Colocam perto do prisioneiro algumas pedras para que “possa<br />

lançá-las nas mulheres, que lhe correm ao redor, mostrando-lhe com am<strong>ea</strong>ças que o<br />

pretendem comer” 36 . Ascendem, uma fogueira muito próxima ao escravo, de modo que este a<br />

veja. A seguir:<br />

“(…) uma mulher aproxima-se correndo com a maça, o ibirapema, ergue ao alto as borlas de pena, da<br />

gritos de alegria passa correndo em frente ao prisioneiro a fim de que ele o veja. Depois um homem<br />

toma o tacape, coloca-se com ele em frente do prisioneiro, empunhando-o, para que o aviste.<br />

Entrementes afasta-se aquele que o vai matar, com outros treze ou quatorze, e pintam os corpos de cor<br />

plúmb<strong>ea</strong>, com cinza” 37 .<br />

Ao retornar, com seus companheiros ao pátio, recebe o tacape definitivamente do<br />

principal, e dirigi-se ao prisioneiro e diz a este:<br />

“Sim, aqui estou eu, quero matar-te, pois tua gente também matou e comeu muitos dos meus amigos.<br />

Responde-lhe o prisioneiro: ‘Quando estiver morto, terei ainda muitos amigos que saberão vingar-me’.<br />

Depois golpeia o prisioneiro na nuca, de modo que lhe saltam os miolos, e imediatamente levam as<br />

mulheres o morto, arrastam-no para o fogo, raspam-lhe toda a pele, fazendo-o inteiramente branco, e<br />

tapando-lhe o anus com um pau, a fim de que nada dele se escape. Depois de esfolado, toma-o um<br />

homem e corta-lhe as pernas, acima dos joelhos, e os braços junto ao corpo. Vem então as quatro<br />

mulheres, apanham os quatro pedaços, correm com eles em torno das cabanas, fazendo grande alarido,<br />

33 Ibidem.<br />

34 Ibid., p. 180.<br />

35 Ibidem.<br />

36 Ibidem.<br />

37 Ibid., p. 180-181.<br />

91


em sinal de alegria [esse é um dos aspectos mais presentes na iconografia sobre a antropofagia].<br />

Separam após as costas, com as nádegas, da parte dianteira. Repartem isto em entre si” 38 .<br />

Sobre a distribuição do morto, Staden relata que as vísceras eram dadas das mulheres,<br />

que as ferviam, fazendo uma papa rala, que elas e as crianças sorvem. Também as mulheres é<br />

destinada à carne da cabeça. O miolo do crânio e a língua comem as crianças. O resto do<br />

corpo é destinado aos homens. 39 O matador recebe o crânio, mas o mais importante é a<br />

alcunha que recebe por tal feito. Esta é simbolizada por uma marca em seu corpo que:<br />

“(…) o principal da choça arranha-lhe os braços, em cima, com o dente de um animal selvagem.<br />

Quando essa arranhadura sara, vêm-se as cicatrizes, que valem como ornato honroso. Durante esse<br />

tempo, deve o carrasco permanecer numa rede, em repouso. Dão-lhe um pequeno arco, com uma flecha,<br />

com que deve passar o tempo, atirando num alvo de cera. Assim procedem para que seus braços não<br />

percam a pontaria, com a impressão da matança” 40 .<br />

Após a matança estar consumada, uma parte da carne do morto é distribuída entre os<br />

índios das aldeias aliadas que participaram do ritual, sendo que esses índios levam o seu<br />

quinhão para sua aldeia, para que todos possam consumi-la, como o próprio Staden narra:<br />

“De volta para a aldeia Ubatuba, os meus amos trouxeram um pouco de carne assada consigo. Entre<br />

eles havia um menino que ainda tinha um osso da perna do escravo com alguma carne, e o comia, disselhe<br />

que devia jogá-lo fora. Zangou-se, e todos os outros, comigo; disseram que tal lhes era legítimo<br />

pasto, e que devia dar-me por satisfeito com isso” 41 .<br />

Sobre o segundo caso, o do índio carijó, que habita a mesma aldeia que Staden e que<br />

ficou doente e não se recuperou, sendo este o motivo que levou os índios a matar-lhe, pois<br />

este índio fugiu dos portugueses e se refugiou nesta aldeia, sendo que nesses casos os<br />

tupinambás “não matam ninguém que se refugia entre eles, a menos que cometa algo de<br />

invulgar. O fugitivo é conservado como escravo e deve servi-los” 42 .<br />

Fazia três anos que este índio vivia entre os tupinambás, este índio, segundo Staden,<br />

ficava constantemente o caluniando e pedindo aos tupinambás que o matassem, pois dizia que<br />

o tinha o visto entre os portugueses combatendo dando combate contra os tupinambás. Ficou<br />

doente no sexto mês de cativeiro de Staden, seu dono pediu a Staden para que o sarasse, para<br />

ele voltar a apanhar caça, prometendo dividi-la com ele, contudo se Staden “achasse que o<br />

escravo não sararia, queria mandá-lo de presente a um amigo, para que o matasse e obtivesse<br />

38 Ibid., p. 182.<br />

39 Ibid., p. 183-184.<br />

40 Ibid., p. 184-185.<br />

41 Ibid., p. 113.<br />

42 Ibid., p. 119.<br />

92


uma alcunha” 43 . Frente à impossibilidade de cura e ao estado debilitante apresentado pelo<br />

carijó, os tupinambás, sem nenhuma cerimônia:<br />

“Arrastaram-no diante da choça do chefe Guaratinga, e dois o mantiveram, pois estava tão doente que<br />

não percebeu o que queriam fazer dele. O homem a quem haviam incumbido da matança, veio e deu-lhe<br />

uma pancada na cabeça, que fez saltar os miolos. Depois largaram em frente da choça e queriam comêlo.<br />

Adverti que não deviam fazê-lo; tratava-se de um homem que ficara doente, e eles podiam<br />

igualmente adquiria a doença. (…) um homem decepou-lhe a cabeça, pois o carijó tinha só um olho e<br />

tinha má aparência por causa da moléstia que tinha tido. Atirou fora a cabeça. Chamuscando a pele do<br />

corpo sobre o fogo. Picou-o depois repartiu com os outros, em parte iguais, como é usado entre eles.<br />

Consumiram-no todo, menos a cabeça e tripas, das quais tiveram nojo, porque estava doente” 44 .<br />

Para Staden, o motivo pelo qual, os índios comem seus prisioneiro/inimigos – sendo<br />

que o mesmo corrobora sua descrição com a afirmação “Tudo isso eu vi, e assisti” 45 – é a<br />

seguinte:<br />

“Fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio, e quando na guerra<br />

escaramuçam uns com os outros, gritam entre si, cheios de fúria: ‘Debe marãpá xe remiu ram begué’,<br />

sobre ti caia toda desgraça, tu és meu pasto. ‘Nde acanga jucá aipotá curi ne’, quero ainda hoje moer-te<br />

a cabeça. ‘Xe anama poepica que xe aju’, aqui estou para vingar em ti a morte dos meus amigos. ‘Nde<br />

roó, xe mocaem serã ar eima riré’, etc., tua carne hoje ainda, antes que o sol se deite, deve ser meu<br />

manjar’. Isto tudo fazem por imensa hostilidade” 46 .<br />

A partir dessas descrições que Staden fez pormenorizadamente do ritual antropofágico<br />

podemos dizer que Staden tem uma visão pragmática do mesmo, pois não apresenta a morte<br />

do prisioneiro em terreiro, como simples modo de os índios comerem carne humana para<br />

saciar seu apetite, mas como um ritual altamente organizado, cheio de regras que deviam ser<br />

obedecidas, inclusive para a distribuição da carne do morto, cujo sentido/significado era<br />

muito forte (importante) para os indígenas, sendo que o propósito dessa morte ultrapassa a<br />

questão do consumo da carne do prisioneiro/inimigo morto.<br />

b) Há referência ou não à antropofagia funerária.<br />

Não existe nenhuma referência, nem mesmo um indício sobre a prática desse tipo de<br />

antropofagia, que geralmente é associado aos grupos jê, ou como os europeus os<br />

denominavam nessa época, tapuias. Estes índios achavam que seu estômago era melhor<br />

sepultura para seus parentes e amigos, do que a terra.<br />

43 Ibidem.<br />

44 Ibid., p. 120-121.<br />

45 Ibid., p. 185.<br />

46 Ibid., p. 176.<br />

93


c) Existe referência à participação de elementos não indígenas, ou seja, europeus, no ritual<br />

antropofágico, mas sem ser no papel de vítima?<br />

No relato de Staden, não fica claro a participação de nenhum europeu no repasto<br />

antropofágico. Apenas podemos aventar a participação de franceses nessas festas, que serviam<br />

(do mesmo modo do que para as tribos nativas) para selar a aliança entre tupinambás e<br />

franceses e renovar o ciclo de vingança contra os inimigos, que nesse caso era comum e se<br />

personificava no elemento português. Também não podemos dizer se esses europeus, apenas<br />

participavam da festividade ou também comiam a carne do inimigo executado. Além disso,<br />

Staden não narra nenhum europeu como vítima do ritual antropofágico, apenas indígenas que<br />

eram de tribos inimigas dos tupinambás, maracajás e carijós. Contudo há uma diferença na<br />

descrição das mortes, sendo que a primeira é descrita muito mais detalhadamente do que a<br />

segunda. A diferença entre as duas mortes ocorre, porque no primeiro caso o prisioneiro é<br />

morto em decorrência de sua captura em guerra, ao contrário do segundo caso, onde o<br />

“prisioneiro” tinha se refugiado entre os tupinambás, mas como ficou doente e não mostrava<br />

sinais de melhora, os índios decidiram matá-lo para alguém ganhar uma alcunha, sendo que<br />

nesse segundo caso, os índios mataram o prisioneiro, segundo Staden, sem r<strong>ea</strong>lizarem<br />

nenhuma das cerimônias apresentadas pelos mesmos índios (tupinambás) e vistas por Staden,<br />

no primeiro caso. Com relação ao próprio Staden, podemos dizer que ele participou das<br />

festividades do ritual antropofágico, por isso faz uma descrição detalhada dos acontecimentos,<br />

só que não como um convidado para selar uma aliança, mas como um prisioneiro, cujo<br />

destino deveria ter sido o mesmo que ele observou.<br />

2 – Com relação às guerras indígenas, como o autor se referencia a elas?<br />

Em sua primeira viagem, Staden participou de uma expedição militar contra os índios<br />

caetés que estavam assediando o povoado de Igaraçu. Com relação a esse cerco, Staden relata<br />

que os índios construíram duas fortificações onde se escondiam durante a noite, de dia eles<br />

ficavam em valas que tinham cavado ao redor da povoação. Os índios utilizavam flechas<br />

incendiárias para atacar a cidade: “muitas delas às quais haviam amarrado mechas de algodão<br />

embebido em cera. Com essas frechas acessas pretendiam at<strong>ea</strong>r fogo ao teto das choças” 47 .<br />

Durante esse cerco os viveres da povoação se escass<strong>ea</strong>ram a tal ponto que um grupo, do qual<br />

novamente Staden fez parte, seguiu através de um canal, onde os índios tinham derrubado<br />

47 Ibid., p. 47.<br />

94


troncos de árvores para impedir a passagem, além de usarem galhos secos com o objetivo de<br />

queimá-los junto com pimenta. Ainda diz que os índios faziam grande alarido, com a<br />

finalidade de abafar o pedido de socorro quando alguém o fazia e am<strong>ea</strong>çavam devorar quem<br />

pudessem capturar. Após um mês de cerco os índios desistiram e se retiram rumo ao sertão.<br />

Na segunda viagem, Staden após sofrer um naufrágio, vira condestável da fortaleza de<br />

Bertioga, construída com o intuito de proteger a região de São Vicente dos ataques que os<br />

tupinambás r<strong>ea</strong>lizavam duas vezes por ano:<br />

“Uma dessas épocas é em novembro, quando amadurece o milho, que chamam de abati, e com o qual<br />

preparam uma bebida chamada cauim. Empregam também aí a raiz de mandioca, que misturam um<br />

pouco. Logo que voltam de sua excursão guerreira com abati maduro, preparam a bebida e devoram<br />

nessa ocasião os seus inimigos, se conseguiram aprisionar algum” 48 .<br />

A outra época é o mês de agosto, quando uma espécie de peixe emigra do mar para as<br />

correntes de água doce para desovar. Foi nessa região, que Staden, ao caminhar pela floresta<br />

que Staden ouviu de ambos os lados um grande alarido:<br />

“Essa gente correu para mim, e reconheci que eram índios. Eles cercaram-me, visaram-me com arcos e<br />

flechas, e assetaram-me. Então exclamei: ‘Que Deus salve minha alma’. Mal tinha pronunciado tais<br />

palavras, abateram-me ao solo, atirando sobre mim e ferindo-me a chuçadas. Porém machucara-me<br />

apenas – Deus seja louvado! – numa perna, rasgando-me entretanto as roupas do corpo, um o mantéu,<br />

outro o sombreiro, um terceiro a camisa, e assim por diante” 49 .<br />

Staden foi conduzido à praia, onde as canoas estavam estacionadas, sendo que os<br />

índios, primeiramente disputaram entre eles, quem o teria capturado e depois:<br />

“(…) como era seu costume, ornados de penas, e mordiam seus braços, a fim de significar a am<strong>ea</strong>ça de<br />

que iriam devorar-me. A minha frente ia um chefe com o tacape que empregavam para abater os<br />

prisioneiros. Discursava e narrava que em mim havia aprisionado e feito escravo a um ‘peró’ – assim<br />

chamavam os portugueses – e que agora queria vingar em mim a morte de seus amigos” 50 .<br />

Antes de conduzirem Staden a sua aldeia, pois os escravos, aprisionados com vida,<br />

numa guerra, eram recambiados vivos para a aldeia de seus captores, onde conviviam por um<br />

período tempo variável até à hora em que teriam a honra de morrerem em terreiro,<br />

amarraram-lhe quatro cordas ao pescoço (esse é um dos sinais que um prisioneiro de guerra<br />

destinado ao repasto canibal). 51<br />

Depois de algum tempo convivendo junto aos tupinambás, Staden os acompanhou,<br />

mesmo não querendo ir, mas por imposição de Cunhambebe, a uma expedição militar contra<br />

48 Ibid., p. 77.<br />

49 Ibid., p. 81.<br />

50 Ibid., p. 82.<br />

51 Ibidem.<br />

95


os seus tradicionais inimigos, os tupiniquins. Staden relata que quando os índios pretendem<br />

fazer uma expedição militar, os principais reúnem-se e deliberam como devem agir, dão a<br />

conhecer o que decidiram aos outros homens e marcam a data de partida da expedição pela<br />

maturação de alguma fruta ou o período de desova dos peixes. Durante esse tempo, eles<br />

confeccionam canoas, arcos e fechas e todo o tipo de provisão que precisam, como comida,<br />

principalmente a farinha. Quando tudo está pronto eles consultam os pajés (Staden os<br />

compara aos adivinhos europeus, perambulam uma vez por ano através da terra. Staden<br />

assistiu uma dessas previsões e considerou como uma fraude) 52 se venceram a guerra:<br />

“Estes naturalmente dizem que sim, ordenando-lhes que se atentem com seus sonhos que tiverem com<br />

relação ao inimigo. Quando a maioria sonha que vê assar a carne do seu inimigo, significaria isto a<br />

vitória. Quando, entretanto, virem assar a sua própria carne, isto nada de bom prognostica, e neste caso<br />

deveriam permanecer em casa” 53 .<br />

Quando tais presságios são a favor, os índios fazem uma festa e cada homem pede a<br />

sua matraca que o ajude a capturar um inimigo: “Considera um homem sua maior honra<br />

capturar e matar muitos inimigos, o que entre eles é habitual. Traz tantos nomes quantos<br />

inimigos matou, e os mais nobres entre eles são aqueles que têm muitos nomes” 54 . Para essa<br />

guerra, partiram trinta e oito canoas, sendo que cada uma, segundo Staden, podia levar<br />

dezoito homens. Eles acamparam a um dia de distância da aldeia inimiga, na ilha de São<br />

Sebastião, pretendendo atacá-la no dia seguinte. Nesse dia, o chefe da expedição,<br />

Cunhambebe passou pelo acampamento exortando a coragem dos guerreiros contra o inimigo<br />

(uma das funções/atribuições do chefe) 55 – geralmente “o ataque sempre tem lugar de<br />

madrugada, quando o dia desponta” 56 . Na manhã seguinte, ao partir rumo à aldeia inimiga,<br />

são avistadas cinco canoas inimigas, no que os tupinambás escondem-se atrás de uma pedra<br />

para que os tupiniquins passassem despercebidos pela região, mas eles avistaram os<br />

tupinambás e se puseram em fuga, no que foram perseguidos, sendo subjugados, junto de seis<br />

mamelucos cristãos que os estavam acompanhando.<br />

Logo após a captura, alguns prisioneiros foram mortos, entre eles dois dos seis<br />

cristãos: “Se capturam alguém que está gravemente ferido, matam-no logo e carregam<br />

consigo sua carne assada para casa. Os que não estão feridos, ou o estão levemente, trazem-<br />

nos vivos e matam-nos em suas aldeias” 57 .<br />

52 Ibid., p. 173.<br />

53 Ibid., p. 177.<br />

54 Ibid., p. 172.<br />

55 Ibid., p. 126.<br />

56 Ibid., p. 178.<br />

57 Ibidem.<br />

96


No caminho de volta para sua aldeia, os tupinambás acamparam em uma ilha, e<br />

durante a noite, cada um levou seu prisioneiro a sua cabana, sendo que “aqueles que estavam<br />

muito feridos foram arrastados à praia, mortos imediatamente e cortados em pedaços, segundo<br />

o seu costume, assando-se então a carne” 58 . Durante esse acampamento, Staden teve uma<br />

chance para fugir, mas não o fez porque não quis, pois achava que se fugisse, os índios<br />

matariam os outros quatro cristãos que ainda estavam com vida 59 . Ao seguir viagem, parando<br />

num lugar chamado de Ocaraçú, Staden perguntou a Cunhambebe o que iria fazer com os<br />

mamelucos e este respondeu que iria matá-los e comê-los, pois tinham lutado ao lado de seus<br />

inimigos. Staden narra que quando Cunhambebe disse isso:<br />

“(…) em sua frente havia um cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna, segurou-m’a diante da<br />

boca e perguntou-me se também queria comer. Respondi: um animal irracional não come um outro<br />

parceiro, e um homem deve devorar um outro homem? Mordeu-a então e disse: ‘Jauára ichê’ ‘Sou um<br />

jaguar. Está gostoso’. Retirei-me dele a vista disso” 60 .<br />

No mesmo dia dessa cena, os índios reuniram todos os prisioneiros que tinham<br />

capturado, no centro de uma roda, onde os tupinambás dançavam e cantavam com seus<br />

maracás, e os prisioneiros discursavam com audácia:<br />

“Sim, partimos, como fazem homens corajosos, a fim de a vós, nosso inimigo, aprisionar e comer. Mas<br />

então tivestes a supremacia e nos capturastes. Isso não nos importa. Guerreiros valorosos morrem na<br />

terra dos seus inimigos. E a nossa terra ainda é grande. Os nossos logo nos vingarão em vós. Ao que<br />

respondiam os outros ‘Vós já exterminastes muitos dos nossos. Tal queremos vingar em vós’, quando<br />

terminaram cada um voltou a sua cabana com seu prisioneiro” 61 .<br />

Ao terceiro dia de regresso, chegaram à aldeia trazendo, além dos prisioneiros vivos,<br />

pedaços da carne assada dos prisioneiros que executaram logo após a capturo, sendo que parte<br />

dessa carne foi moqu<strong>ea</strong>da e a outra parte foi posto sobre um fumeiro, para secar, pois antes de<br />

consumirem a carne era necessário preparar a bebida – cauim. Por último, Staden relata que<br />

além dele, outros três cristãos foram trazidos com vida para a aldeia, sendo que esses foram<br />

obrigados a beber o cauim com os índios, enquanto eles consumiam a carne de um dos<br />

cristãos mortos, porém, Staden não deixa claro se eles (mamelucos cristãos) também<br />

consumiram o repasto canibal 62 .<br />

Sobre as armas dos indígenas, Staden relata que as principais são o arco e flechas,<br />

sendo que algumas dessas possuem ponta de osso, como dentes de tubarão. Também a<br />

58 Ibid., p. 129.<br />

59 Ibid., p. 131.<br />

60 Ibid., p. 132.<br />

61 Ibid., p. 132-133.<br />

62 Ibid., p. 138.<br />

97


utilizam com um tucho de algodão embebido com cera, a qual é inflamada, amarrado a ponta<br />

(flechas incendiárias). Os indígenas também fabricam um escudo com peles de animais ou de<br />

cortiça de arvores. Fazem armadilhas de pé com espinhos pontudos e utilizam pimenta, sendo<br />

que esta é jogada ao fogo e a fumaça proveniente dessa queima é direcionada a localidade<br />

onde os inimigos se encontram e com isso eles são forçados a abandonar essa localidade. 63<br />

3 – O autor descreve algum mito indígena? Se sim, qual e como o descreve?<br />

Com relação aos mitos indígenas, Staden em seu relato, descreve três deles. O<br />

primeiro se refere aos índios manterem uma fogueira permanentemente acessa durante a noite,<br />

e que eles não gostam de sair, para fora das cabanas, na escuridão da noite sem ter algum fogo<br />

junto de si, pois “têm medo do diabo, ao qual chamam Anhangá e acreditam muitas vezes<br />

ver” 64 . O segundo mito refere-se a que os indígenas crêem que o céu e a terra sempre<br />

existiram. Ao que Staden retruca que eles não sabem nada sobre o início do mundo, “apenas<br />

narram que houve uma vez uma vastidão de águas na qual todos os seus antepassados<br />

morreram afogados. Somente alguns daí escaparam numa embarcação e outros sobre altas<br />

arvores” 65 , a tal narrativa Staden associa ao dilúvio bíblico. Por fim, o terceiro mito diz<br />

respeito ao lendário Meire Humane, uma das muitas designações que os europeus atribuem a<br />

São Tomé, sendo que os índios utilizavam um corte de cabelo que lembra o de um monge e<br />

Staden curioso perguntou aos indígenas de onde eles tiraram, esse pent<strong>ea</strong>do, ao que<br />

“responderam que seus antepassados o haviam visto em um homem que se chamava Meire<br />

Humane, que havia feito muitas maravilhas entre eles” 66 .<br />

4 – Com relação aos costumes e à cultura material do gentio, o que o autor descreve?<br />

É necessário ressaltar, que mesmo não sendo, de uso exclusivo, ou unicamente<br />

praticada pelos índios tupinambás, mas de uma maneira geral é comum a todas as etnias do<br />

grupo tupi, a cultura material e os costumes descritos por Staden em sua obra, são os que ele<br />

observou na tribo dessa etnia indígena, durante o período de nove meses que conviveu como<br />

prisioneiro destinado ao repasto antropofágico.<br />

63 Ibid., p. 178.<br />

64 Ibid., p. 158.<br />

65 Ibid., p. 174.<br />

66 Ibid., p. 167.<br />

98


Sobre a cultura material, Staden descreve uma grande gama de instrumentos. Relata<br />

que os índios, não importa aonde vão, sempre levam consigo arco e flechas. Seu meio de<br />

locomoção na água é chamado de canoa, a qual os índios constroem a partir de um único<br />

tronco de uma árvore, sendo que algumas delas podem “levar até trinta guerreiros para a<br />

guerra” 67 . Antes dos europeus chegarem e distribuírem machados e tesouras entre os<br />

indígenas, os índios utilizavam, como machado, uma espécie de pedra preto-azulada, com as<br />

qual fabricavam cunhas e amarravam em uma pequena vara 68 , já as tesouras, com as quais<br />

cortavam os cabelos, eram “uma cunha de pedra, sustentando-lhe por baixo um outro objeto<br />

sobre que se macetavam os cabelos. A tonsura no meio faziam com uma lasca de pedra<br />

apropriada, que empregavam para tal fim” 69 , já as mulheres deixavam o cabelo crescer.<br />

Os indígenas ainda usavam dentes de paca para provocar sangrias 70 , ossos de animais<br />

ou mesmo de inimigos mortos para confeccionar flautas. Para armazenar os alimentos eles<br />

faziam vasilhas de barro, que eram queimadas no fogo, além de serem pintadas a gosto pelas<br />

mulheres. Tem um instrumento de madeira com o qual arrancam dentes, porém Staden não<br />

deixou os índios usarem esse instrumento nele, quando apresentou um grande dor de dente, a<br />

qual o deixo muito abatido, sendo ele advertido pelos índios:<br />

“(…) se eu não comesse e não engordasse de novo, matar-me-iam antes do tempo marcado. Deus sabe<br />

bem quantas vezes desejei de todo o coração – se assim fosse à vontade divina – morrer sem que os<br />

selvagem se apercebessem, a fim de que não pudessem levar a cabo seus intentos para comigo!” 71 [O<br />

prisioneiro doente era levado para a floresta e lá sua cabeça era destroçada, suas entranhas rasgadas,<br />

mas sua carne não era consumida].<br />

Sobre seus ornatos diz que confeccionavam um para colocar no pescoço em formato<br />

de meia lua com conchas brancas de caracol marinho, fazem um enfeite de penas vermelhas<br />

que se chama acangatara que é amarrado na cabeça, outro “ornato feito de pluma de ema, que<br />

é uma cousa grande e redonda, que amarram as cadeiras, quando marcham para a guerra<br />

contra seu inimigo, ou quando tem uma festa” 72 , chama-se enduape Pintam o corpo com tinta<br />

preta, no lábio inferior “tem um grande orifício e isso desde a infância, à medida que crescem<br />

e tornam-se homens esse buraco aumenta” 73 . Dormem em redes que são feitas de fios de<br />

67 Ibid., p. 176.<br />

68 Ibid., p. 161.<br />

69 Ibid., p. 168.<br />

70 Ibid., p. 119.<br />

71 Ibid., p. 96.<br />

72 Ibid., p. 169.<br />

73 Ibid., p. 168.<br />

99


algodão, para ascender o fogo, utilizam duas varetas de uma madeira que chamam ubaçú-iba,<br />

esfregando um no outro de modo a produzir pó e o calor da esfrega ascende esse pó 74 .<br />

Staden descreve a prática do escambo praticado com os europeus, sendo esse sempre<br />

na direção dos europeus darem aos índios quinquilharias: machados, facas, anzóis, espelhos,<br />

contas de vidro e até armas, em troca, inicialmente de víveres e de produtos da terra, como o<br />

pau-brasil, depois os europeus passaram a pedir em troca, escravos, contudo os europeus<br />

também podiam dar aos indígenas, seus inimigos, como ocorre em um caso que Staden narra,<br />

onde os franceses em troca de produtos alimentícios, deram aos índios um português que<br />

tinham capturado 75 . O próprio Staden foi resgatado dos indígenas, pelos franceses, através da<br />

troca de mercadorias por ele.<br />

Com relação aos costumes indígenas, Staden narra que em sua despedida dos<br />

indígenas ao embarcar no navio francês, uma das mulheres de seu dono encontrava-se<br />

presente e “segundo o seu costume, de lamentar-se em altas vozes e lastimei-me também,<br />

como entre eles é habito” 76 (saudação lacrimosa era comum entre os povos tupi).<br />

Sobre a questão das mulheres, Staden diz que “a maioria dos homens tem só uma<br />

mulher, alguns, porém têm mais e muitos dos seus principais tem treze e quatorze” 77 , sendo<br />

que o chefe Abati-poçanga, ao qual, Staden foi dado de presente pela segunda vez, tinha<br />

muitas mulheres, sendo que, a primeira dessas mulheres era suprema entre elas, mas cada uma<br />

tinha seu espaço particular, seu próprio fogo e sua própria plantação de mandioca, contudo<br />

elas viviam em boa harmonia entre elas. Staden, ainda relata sobre esse assunto, que: “Entre<br />

os selvagens é costume um dar presente a outro uma mulher, quando dela se enfada. Sucede<br />

também que se presenteiam com uma filha ou irmã” 78 . Ainda com relação às mulheres,<br />

Staden diz que viu mulheres “cerca de quatro dias depois de um nascimento, andar daqui e<br />

d’acola” 79 e que elas carregam seus filhos envolvidos em panos de fio de algodão, sobre as<br />

costas, e assim trabalham.<br />

Sobre os nomes das crianças masculinas, Staden diz que elas, ganham um nome ao<br />

nascer até poder guerr<strong>ea</strong>r com os inimigos, quando então “recebe tantos nomes quantos<br />

inimigos tenha matado” 80 . Com relação às mulheres: “Na infância têm apenas um nome;<br />

74 Ibid., p. 157.<br />

75 Ibid., p. 140.<br />

76 Ibid., p. 143.<br />

77 Ibid., p. 171.<br />

78 Ibidem.<br />

79 Ibid., p. 170.<br />

80 Ibid., p. 169.<br />

100


quando mulheres, porém, tomam tantos nomes quantos escravos matam seus maridos” 81 .<br />

Sobre o casamento, Staden relata que os pais prometem suas filhas como noivas ainda<br />

crianças. Quando chegam à idade de casar elas passam por um ritual, onde cortam o cabelo,<br />

sofrem arranhaduras nas costas de determinada forma que as escoriações permanecem para<br />

sempre, além de prenderem dentes de animais, em forma de colar no pescoço. Depois desse<br />

ritual, a moça é entregue, sem nenhuma solenidade especial a seu marido 82 .<br />

Com relação a essa questão de dar um prisioneiro de presente a outro índio, Staden<br />

relata, que na primeira vez que foi dado de presente a alguém, o foi por seus dois captores ao<br />

irmão de seu pai, por amizade, para este ganhar uma alcunha e porque este tinha dado o<br />

prisioneiro que capturara anteriormente a um deles. 83<br />

Sobre a agricultura ele diz que quando os índios querem plantar numa região, eles<br />

primeiro derrubam as arvores, deixam-nas secar por alguns dias e depois as queimam. Dessa<br />

forma iniciam a plantação, principalmente da mandioca, com a qual fazem pão, sendo que<br />

existem várias formas de prepará-la. 84 Sendo que são as mulheres que fazem a plantação,o<br />

cultivo, a colheita e a preparação dos alimentos. Com relação ao tempero das comidas: “a<br />

maioria das tribos não usa sal (…) quando preparam um alimento, em especial carnes para<br />

durar muito tempo, eles deitam a carne em pequenos pedaços de madeira, acima do fogo até<br />

que fique bem seco” 85 . A caça é feita coletivamente pelos homens, sendo que o resultado de<br />

tal atividade é dividido entre os que dela participaram.<br />

Com relação aos prisioneiros de guerra os índios que praticam o ritual antropofágico,<br />

amarram em torno de sua cintura uma corda de algodão chamada mussurana. Chegando a<br />

aldeia, os homens se recolhem as suas cabanas e as mulheres rodeiam o prisioneiro “algumas<br />

foram à minha frente, outras atrás, dansando e cantando uma canção que, segundo seu<br />

costume, entoavam aos prisioneiros que tencionavam devorar” 86 . Após, as mulheres levaram<br />

o prisioneiro (Staden) até a caiçara (paliçada) e deram-lhe socos, puxando-lhe a barba e<br />

dizendo “Xé anama poepika aé!” “com esta pancada vingo-me pelo homem que os teus<br />

amigos nos mataram” 87 . Por fim o levaram a uma cabana onde devia deitar-se em uma rede.<br />

Os homens estavam durante esse tempo reunidos em outra cabana “onde bebiam cauim e<br />

81 Ibid., p. 170.<br />

82 Ibid., p. 171-172.<br />

83 Ibid., p. 89.<br />

84 Ibid., p. 162-163.<br />

85 Ibid., p. 163-164.<br />

86 Ibid., p. 87.<br />

87 Ibidem.<br />

101


cantavam em honra dos seus ídolos, chamados Maracá, que são matracas feitas de cabaças, os<br />

quais talvez lhes houvessem profetizado que iriam fazer-me prisioneiro” 88 .<br />

No dia seguinte as mulheres tiraram Staden para o pátio, onde algumas o seguraram –<br />

ele achou que ia morrer, estava procurando o ibirapema (tacape cerimonial) – não para matá-<br />

lo, mas para tosquiar-lhe com “uma lasca de cristal presa a um instrumento, que parecia um<br />

ramo encurvado” 89 , primeiro as sobrancelhas e depois a barba, mas esta Staden não deixou<br />

que a raspassem pedindo que o matassem com ela, contudo alguns dias depois sua barba foi<br />

cortado com uma tesoura que os franceses haviam permutado com os índios.<br />

Alguns meses depois de estar em poder dos tupinambás, Staden acompanhou seu dono<br />

até a aldeia de Cunhambebe, onde viu perto da choça desse chefe, quinze cabeças espetadas<br />

de inimigos que este tinha matado. Este era um costume, de algumas etnias indígenas, o de<br />

pendurar a cabeça de seus inimigos mortos em estacas na entrada das aldeias, cujo objetivo<br />

era imputar medo em seus inimigos.<br />

Com relação à preparação da bebida – cauim – que os indígenas consideram<br />

indispensável para a r<strong>ea</strong>lização de um ritual antropofágico, Staden relata o modo como ele é<br />

preparado pelas mulheres:<br />

102<br />

“Tomam raízes de mandioca e cozinham grandes paneladas cheias. Uma vez cozida, retiram a mandioca<br />

da panela, passam-na em outras, ou em vasilhas, e deixam-na esfriar um pouco. Então se assentam as<br />

meninas perto, mascam-na, colocando-a numa vasilha especial. Quando todas as raízes cozidas estão<br />

mastigadas, põem de novo a massa na panela, deitam-lhe água, misturam ambas, e aquecem de novo.<br />

Têm para tal vasilhas adequadas, que enterram a meio no chão, e que se empregam como aqui os tonéis<br />

para vinho e cerveja. Despejam dentro a massa e fecham bem as vasilhas. Isto fermenta por si e fica<br />

forte. Deixam-na assim repousar dois dias. Bebem-na então e com ela se embriagam. É grossa e tem<br />

bom gosto. (…) cada uma das cabanas prepara sua própria bebida e quando uma aldeia quer festar, o<br />

que acontece habitualmente uma vez por mês, reúnem-se primeiro em uma cabana onde bebem tudo e<br />

passam a outro até acabar tudo” 90 .<br />

Sobre o modo de organização dos índios, Staden relata que:<br />

“Os selvagens não têm governo, nem direito estabelecidos. Cada cabana tem um superior. Este é o<br />

principal. Todos os seus principais são de linhagem idêntica e têm direito igual de ordenar e reger.<br />

Conclua-se daí como quiser. Se um sobressai dentre os outros por feitos em combate, ouve-se-lhe mais<br />

do que aos outros, quando empreendem uma arremetida guerreira, como Cunhambebe. Fora disso<br />

nenhum privilégio observei entre eles, a não ser que os mais moços devem obediência aos mais velhos,<br />

como exige o seu costume” 91 .<br />

Também relata que eles não possuem propriedade particular, e não conhecem o<br />

dinheiro, sendo que o seu maior tesouro são as penas de pássaros: “Quem as têm muitas, é<br />

88 Ibid., p. 88.<br />

89 Ibid., p. 90-91.<br />

90 Ibid., 165-166.<br />

91 Ibid., p. 164.


ico e quem tem cristais para os lábios e faces, é dos mais ricos” 92 . Por último, no campo da<br />

matemática, Staden diz que os índios não sabem contar além do número cinco, se o fazem<br />

utilizam os dedos das mãos e dos pés, e quando falam de um número grande, mostram os<br />

dedos de quatro ou cinco pessoas 93 .<br />

5 – O que o autor relata em relação às doenças que grassavam na Brasil?<br />

Com relação às doenças, Staden não descreve seus sintomas, muito menos as nomeia.<br />

Apenas descreve como utilizou uma doença que grassou entre os indígenas em proveito<br />

próprio, ou seja, ele a manipulou a fim de fazer os indígenas pensarem que essa doença fora<br />

mandada por seu Deus, porque eles o queiram devorar. Também relata um episódio em que<br />

um prisioneiro carijó ficou doente e em decorrência de sua não recuperação, os tupinambás o<br />

mataram antes que morresse em decorrência da doença.<br />

Sobre o primeiro caso, relata que os índios da aldeia onde era mantido cativo,<br />

inclusive um de seus donos, foram ajudar seus aliados, que tiveram sua aldeia queimada pelos<br />

tupiniquins e depois de um período lá, regressam dizendo que muitos deles estavam doentes.<br />

Nisso Staden disse a seu outro dono: “É verdade. Ficastes todo mundo doente por que tu<br />

querias comer, embora, eu não seja teu inimigo. Disto vem tua infelicidade” 94 . Staden disse<br />

que ia conversar com seu Deus, o qual os índios achavam que estava muito irado, pedindo que<br />

eles melhorassem, mas o próprio Staden diz que o índio doente ficaria bem, mesmo se que ele<br />

não o quisesse, mas ele aproveitou a situação dizendo que seu Deus estava irado porque eles<br />

queriam lhe devorar. Esse índio melhorou, e ordenou que ninguém fizesse mal a Staden. Em<br />

outra ocasião, Staden foi intimado pelos índios, a colocar suas mãos sobre os índios doentes<br />

(taumaturgo), para que estes melhorassem, contudo nessa ocasião, quase todos os índios<br />

morreram, “inclusive a mulher que iria prepara as vasilhas nas quais, a bebida [cauim] ia ser<br />

preparada para o banquete de minha morte” 95 .<br />

6 – Map<strong>ea</strong>mento étnico feito pelo autor:<br />

A obra de Hans Staden gravita em torno da aventura que viveu durante nove meses<br />

entre os índios tupinambás (1), que o queriam comer em ritual antropofágico, por isso essa<br />

92 Ibid., p. 172.<br />

93 Ibid., p. 185.<br />

94 Ibid., p. 107.<br />

95 Ibidem.<br />

103


etnia indígena é a mais descrita (documentada), em todos os aspectos, por Staden, que pouco<br />

descreve sobre as outras etnias que conheceu, contudo ele diz que a: “América é uma vasta<br />

terra. Lá existem muitas tribus de homens selvagens com muitas línguas diversas, e<br />

numerosos animais esquisitos” 96 . Sobre os indígenas, Staden diz que: “tem o corpo pardo-<br />

avermelhado. Isto provêm do sol, que os queima muito. E gente capaz, astuta e maldosa,<br />

sempre pronta para perseguir os inimigos e devorá-los” 97 .<br />

Sobre os tupinambás, relata que edificam suas aldeias em lugares próximos a água e<br />

lenha, ou seja, perto de rios e de florestas, onde há caça e peixes, porém, esses índios, não<br />

mantêm morada por muito tempo na mesma região, sendo que quando a região se mostra<br />

exaurida, eles constroem nova aldeia em outra localidade. Todos ajudam a construir a aldeia,<br />

poucas dessas aldeias possuem mais do que sete cabanas (malocas) que são construídas em<br />

circunferência, sendo que cada uma mede mais ou menos cento e cinqüenta pés de<br />

comprimento. Por dentro, essas casas:<br />

104<br />

“(…) não tem divisões. Ninguém tem um quarto separado; a cada ocupante, porém, marido e mulher,<br />

cabe, de um lado, um espaço de doze pés ao comprimento. Cada ocupante tem seu fogo próprio. O<br />

chefe da cabana recebe seu lugar no centro” 98 .<br />

No meio das cabanas existe um pátio livre, onde matam seus prisioneiros. Ao redor<br />

das cabanas eles constroem uma paliçada (fortificação), onde em algumas aldeias é costume<br />

“espetar a cabeça dos inimigos devorados sobre as estacas a entrada das cabanas” 99 . Quanto<br />

aos índios, Staden os relata da seguinte forma:<br />

“São gente bonita de corpo e estatura, homens e mulheres igualmente, como as pessoas daqui; apenas,<br />

são queimados do sol, pois andam todos nus, moços e velhos, e nada absolutamente trazem sobre as<br />

partes pudentas. Mas se desfiguram com pinturas. Não tem barba, pois arrancam os pelos, com as<br />

raízes, tão pronto lhes nascem. Através do lábio inferior, das bochechas e orelhas fazem furos e aí<br />

penduram pedras. E o seu ornato. Além disso, ataviam-se com penas” 100 .<br />

Por último, Staden descreve que os tupinambás se encontrem cercados de inimigos de<br />

todos os lados. Ao norte os guaitacás (2), ao sul os tupiniquins (3); no interior (oeste) são os<br />

carajás (4), e próximo da serra (leste) os guaianás (5), e entre ambos existe ainda existe outra<br />

tribo inimiga, os maracajás (6). 101<br />

96 Ibid., p. 152.<br />

97 Ibidem.<br />

98 Ibid., p. 156.<br />

99 Ibidem.<br />

100 Ibid., p. 161.<br />

101 Ibid., p. 154-155.


Durante sua primeira viagem, Staden entre em contato com os caetés (7) que estavam<br />

assediando a colônia de Igaraçu, e com os potiguarás (8) que eram aliados dos portugueses e<br />

ajudaram a defender a povoação.<br />

Pouco tempo após o naufrágio, durante sua segunda viagem, Staden fica sabendo que<br />

na região em que pretendiam chegar, a ilha de Santa Catarina, era habitada pelos carijós (9), e<br />

que era necessário se acautelar quanto a esses índios. Ainda sobre esses índios, diz que eram<br />

inimigos dos tupinambás e amigos dos espanhóis, sendo que “plantavam mandioca, para os<br />

navios que passassem pela região, recebessem viveres se precisassem” 102 , e que ao contrário<br />

da maioria dos selvagens que andavam nus, “servem-se de peles de animais selvagens,<br />

preparam-nas bem e cobrem-se com elas. Suas mulheres fazem tecidos de fio de algodão<br />

como sacos, abertos em cima e em baixo” 103 .<br />

Sobre os tupiniquins, Staden relata que, junto dos maracajás, eram aliados dos<br />

portugueses, cuja aldeia se localizava na região de São Vicente, sendo um dos inimigos mais<br />

tradicionais dos tupinambás, a quem também denominam de tabajaras (10), que significa<br />

simplesmente ‘inimigo’ em sua língua. 104<br />

Sobre os guaianás, Staden relata que eles “não têm domicílio fixo”, como os outros<br />

silvícolas (muitos autores consideram essa etnia como não pertencendo ao povo tupi), fazem<br />

guerra a todas as outras tribos e, segundo o mesmo:<br />

105<br />

“Tratam com mais ferocidade os seus inimigos do que estes os tratam e cortam-lhes muitas vezes, com<br />

sanha furiosa, as pernas e braços do copo em vida. Os outros, porem, matam primeiro o inimigo, antes<br />

de esquartejá-lo e comê-lo” 105 .<br />

7 – Com relação ao maravilhoso, a zoologia e a geográfica fantástica. O que o autor descreve?<br />

Como foi dito acima, o relato de Staden não segue o modelo do maravilhoso que<br />

recobre e deforma a r<strong>ea</strong>lidade da América, mas reconhece sua singularidade frente ao<br />

referencial europeu. Por isso, não se encontra na obra de Staden nenhuma descrição<br />

fantástica, nem mesmo descrevendo grandes riquezas minerais (ouro e pedras preciosas). Os<br />

únicos relatos que se assemelham a isso são as descrições que Staden faz sobre as<br />

manifestações do poder de Deus. Como no caso – entre inúmeros outros casos que são<br />

relatados no decorrer de sua obra – da primeira viagem, onde sob forte vendaval:<br />

102 Ibid., p. 62.<br />

103 Ibid., p. 152.<br />

104 Ibid., p. 73.<br />

105 Ibid., p. 154.


106<br />

“(…) apareceram-nos então sobre o navio muitas luzes azues, como eu nunca havia visto. Elas<br />

desapareciam quando as vagas batiam a frente do navio. Os portugueses disseram que estas luzes eram<br />

prenuncio de bom tempo, e expressamente mandadas por Deus, para confortar-nos na aflição” 106 .<br />

Sobre a geografia fantástica não há relato algum, já sobre a zoologia fantástica, Staden<br />

descreve que existem “muitos tigres naquela terra, que estraçalham homens e causam grandes<br />

danos, além, disso uma espécie de leão, a que chamam leopardo, que significa leão<br />

pardacento, e muitos outros diversos animais” 107 . Logicamente esses animais não fazem parte<br />

da fauna americana. Staden deve referir-se ao falar desses animais a uma comparação onde “o<br />

tigre seria a onça pintada ou o jaguar, o leopardo seria a onça parda ou ‘suaçu-arana’” 108 .<br />

Dessa forma, podemos afirmar que não há, na obra de Staden, nenhuma aproximação<br />

dessas três categorias que marcam/caracterizam a literatura sobre o período das grandes<br />

navegações, da descoberta e da conquista das novas terras e de novos homens, com a<br />

descrição do ritual antropofágico (Staden presencia a prática antropofágica no Brasil em<br />

m<strong>ea</strong>dos do século XVI). Com base nisso, vê-se quê Staden não descreve a antropofagia, re-<br />

encontrando nela vestígios de coisas já inventadas na Europa – presentes na literatura clássica,<br />

como Heródoto entre outros –, mas a descrevendo no sentido de tentar entender a alteridade<br />

(que se personifica nos indígenas, no caso de Staden, nos tupinambás) que se apresenta frente<br />

a seus olhos, a qual é diferente em vários aspectos da européia – seu referencial.<br />

8 – O autor faz alguma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena?<br />

Staden não faz ligação alguma entre a cosmologia indígena e a antropofagia, ele não<br />

cita nem uma concepção indígena (mito de origem) sobre a matança em terreiro, como a<br />

questão de que esta é a morte id<strong>ea</strong>l/almejada pelos guerreiros, através da qual iriam para um<br />

além id<strong>ea</strong>l, onde encontrariam seus deuses e seus antepassados. Apenas exprimi sua opinião<br />

sobre tal fato, como não sendo por caráter alimentar, mas por grande hostilidade (vingança)<br />

que os índios sentem por seus inimigos, ou seja, Staden, embora não explique o motivo (ou a<br />

razão) pelo qual, os índios comem carne humana, interpreta a antropofagia como sendo um<br />

costume altamente ritualizado – cheio de regras –, cujo significado perpassa a questão da<br />

morte e do consumo da carne do morto – Staden não chega a comparar/interpretar o ritual<br />

antropofágico com uma religião.<br />

106 Ibid., p. 44.<br />

107 Ibid., p. 191-192.<br />

108 Ibid., 192.


9 – O autor faz algum confronto entre a sua visão de morte e a visão de morte dos indígenas?<br />

Staden não confronta a sua visão de morte com a visão de morte indígena, porque não<br />

descreve a visão de morte indígena – não referência nada do além indígena, como a terra sem<br />

mal –, apenas faz referência que o índio maracajá, o qual estava prestes a ser sacrificado, lhe<br />

respondeu que estava pronto para morrer, ou seja, não mostrava medo frente à morte que o<br />

aguardava, além de aviltar a sua tribo frente a que o capturou quando fala que a mussurana<br />

não era longa o suficiente, sendo que sua tribo possuía melhores. Quanto a sua concepção de<br />

morte (além), que se baseia na ideologia cristã, Staden a descreve em apenas um momento da<br />

obra, sendo que este é o que ele diz ao índio maracajá para não se preocupar, pois os<br />

tupinambás iriam comer apenas a sua carne, sendo que a sua alma (espírito) iria para outra<br />

região onde há muita alegria, e que na outra vida iria ver Deus.<br />

107


Padre José de Anchieta, SJ.<br />

O padre José de Anchieta nasceu no ano de 1534, em San Cristóbal de la Laguna,<br />

capital de Tenerife, nas ilhas Canárias. Transferiu-se, no ano de 1548, para a cidade<br />

portuguesa de Coimbra, onde iniciou seus estudos na Universidade de Coimbra. Aos<br />

dezessete anos de idade, no ano de 1551, ingressou na Companhia de Jesus na condição de<br />

noviço. Nessa mesma condição, dois anos depois (1553), desembarcou em solo brasílico, na<br />

Bahia, junto da terceira leva de jesuítas, chefiados pelo padre Luiz da Grã, com o segundo<br />

governador geral Duarte da Costa. 1 Anchieta recebeu as ordens sacras na Bahia no ano de<br />

1565. Faleceu em nove de julho de 1597, vinte anos depois de ter assumido o posto de<br />

Preposto Geral da Província do Brasil em 1577 2 , em Reritiba, cidade do Espírito Santo que<br />

hoje leva seu nome, “onde três anos antes assumiria, já velho e doente dos pulmões, cargo de<br />

superior do colégio inaciano local. Anchieta foi ao lado de Nóbrega, verdadeiro artífice da<br />

missão quinhentista” 3 .<br />

Anchieta foi antes de tudo, um incansável missionário, quer no tocante a catequese dos<br />

índios, quer quanto à ação educacional junto aos filhos dos colonos e a formação de quadros<br />

para a Companhia de Jesus. Em 1554, fundou, junto de mais doze jesuítas, o colégio de São<br />

Paulo de Piratininga, onde foi mestre de gramática latina. Por incumbência do Pe. Manuel da<br />

Nóbrega, de quem foi secretário, compôs a gramática tupi nos moldes da latina. Esta<br />

gramática já se encontrava pronta no ano de 1556, e nesse mesmo ano foi “levada por<br />

Nóbrega (…) para a Bahia, facilitou ela extraordinariamente a aprendizagem da língua geral<br />

pelos novos missionários recém vindos da metrópole” 4 . Esta gramática se tornou uma peça<br />

fundamental para o trabalho r<strong>ea</strong>lizado pelos padres junto aos indígenas, contudo esta<br />

gramática somente foi publicada no ano de 1595 em Coimbra, pouco antes do falecimento de<br />

seu autor, com o título Arte da Gramática da língua mais usada na costa do Brasil. Outro dado<br />

interessante, com relação a essa obra de Anchieta, é que ela, “foi a segunda gramática de uma<br />

língua vernácula a ser composta no mundo ibérico, sendo somente precedida pela Gramática<br />

de La Lengua Castelhana, escrita por Antônio de Nebrija, meio século antes” 5 .<br />

1 OLIVEIRA, Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. São Paulo:<br />

Ática, 1999, p. 91.<br />

2 VIOTTI, Pe. Hélio Abranches. Anchieta: O Apóstolo do Brasil. 2ª. edição. São Paulo: Edições Loyola, 1980,<br />

p. 213.<br />

3 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial 1500-1808. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000, p. 458.<br />

4 VIOTTI, Pe. Hélio Abranches. Op. cit., p. 61.<br />

5 EISENBERG, José de. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: Encontros culturais,<br />

aventuras teóricas. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000, p. 70-71.<br />

108


R<strong>ea</strong>lizou trabalho missionário em várias capitanias, atuando entre os índios<br />

tupinambás, bem como junto dos ditos tapuias, sobretudo na década de 1570. No que toca aos<br />

tupinambás, compôs inúmeros autos <strong>religiosos</strong>, representados nas aldeias com músicas e<br />

cantos, nos quais despontavam os curumins, as crianças nativas que Anchieta considerava<br />

estratégicas para o êxito da missão:<br />

109<br />

“(…) temos em casa conosco alguns filhos dos gentios, que atraímos para nós de diversas partes, e estes<br />

até abominam os costumes paternos a tal ponto que, passando por aqui para outro lugar o pai de um o<br />

vendo o filho, este longe de mostrar para com ele o amor de filho, pelo contrario falava rarissimamente<br />

e de má vontade, e compelido por nós. Outro, estando já de há muito separado do contato dos pais,<br />

passando com nossos Irmãos pela aldeia em que morava a mãe, dando-lhes os mesmos licença para ver<br />

sua mãe, não a saudou no entanto e passou além; assim, antepõem em tudo ao amor do pais o nosso” 6 .<br />

No trabalho com as crianças indígenas, Anchieta misturava elementos portugueses,<br />

como os instrumentos musicais e as músicas de cunho religioso e elementos indígenas como o<br />

ornato de penas, a pintura corporal, ou seja, os costumes indígenas eram adaptados ao<br />

trabalho de conversão dos indiozinhos ao cristianismo.<br />

“Em uma (das igrejas) lhes ensinam a cantar e têm seu coro de canto e flautas para suas festas, e fazem<br />

suas danças à portuguesa com tambores e violas: com muita graça, como se fossem meninos<br />

portugueses, e quando fazem estas danças põem uns diademas na cabeça de penas de pássaros de várias<br />

cores, e desta sorte fazem também os arcos, empenam e pintam o corpo, e assim pintados e mui galantes<br />

a seu modo fazem suas festas muito aprazíveis, que dão contento e causam devoção (…)” 7 .<br />

Paralelamente ao trabalho religioso, Anchieta desenvolveu constante atividade<br />

literária, escrevendo numerosos autos t<strong>ea</strong>trais com finalidade catequética. O t<strong>ea</strong>tro jesuítico<br />

expande-se, sobretudo a partir de 1567 quando Anchieta, por sugestão de Nóbrega, faz<br />

representar “em São Paulo de Piratininga uma peça intitulada (por motivos que só podemos<br />

conjeturar) Pregação Universal, da qual não sobrevivem mais do que duas estrofes” 8 . Com<br />

relação à estrutura, ou melhor, a forma de apresentação/encenação do t<strong>ea</strong>tro jesuítico, tem-se<br />

que este se apresentava principalmente em diálogos, pois “Anchieta não dominava outro<br />

recurso cênico a não ser o diálogo, limitando-se, em certas peças, a desdobrá-lo – quatro<br />

diabos, por exemplo, ou dois santos, em vez de um só” 9 .<br />

6<br />

ACHIETA, Joseph S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Sermões do Padre Jose de Anchieta<br />

(1554-1594). Academia Brasileira de Letras, Notas; Antonio Alcântara Machado. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1933, p. 42-43 apud BRANDÃO, Helena H. N. Relações antropológicas entre Anchieta e o Índio:<br />

(Discurso Catequético e Discurso Colonizador). Vozes. Petrópolis: ?, n° 1, p. 31-39, jan/fev, 1982, p. 36.<br />

7<br />

ACHIETA, Joseph S.J. Cartas, Informações, Fragmentos Históricos Op. cit., p. 416 apud BRANDÃO,<br />

Helena H. N. Op. cit., p. 32.<br />

8<br />

PRADO, Décio de Almeida. O t<strong>ea</strong>tro Jesuítico. In: T<strong>ea</strong>tro de Anchieta a Alencar. São Paulo: Perspectiva,<br />

1993, p. 15-53, p. 16.<br />

9 Ibid., p. 51.


Deve-se em grande parte a Anchieta a difusão da devoção a Virgem Maria entre os<br />

índios, dado que a maioria dos autos em louvor a Mãe de Deus foi composta em língua geral,<br />

mas: “Também se lhes [índios] ensina a rezar particularmente, e para isto lhes damos rosários,<br />

para que dizendo muitas vezes Ave Maria tenham principal amor e devoção a Nossa<br />

Senhora” 10 . Foi também um dos responsáveis, senão o maior deles, pela tradução do<br />

catolicismo para a língua tupi, por meio da qual, figuras sagradas do cristianismo foram<br />

metamorfos<strong>ea</strong>das em heróis da mitologia tupinambá (Tupã com deus, Tupany como a virgem<br />

e etc.) 11 .<br />

Deixou vastíssima obra entre relatórios, cartas, poemas, autos, sermões e gramáticas, 12<br />

embora alguns textos a ele atribuídos sejam de outros jesuítas. Capistrano de Abreu foi o<br />

primeiro a publicar em 1886, as Informações e fragmentos históricos, reunindo vários textos<br />

anchietanos. Inúmeros outros publicariam, no século XIX e no seguinte, valiosos textos do<br />

jesuíta. Entre eles, a Informação dos casamentos dos índios do Brasil, no qual Anchieta,<br />

agindo como um etnólogo desvendou as regras de parentesco tupinambá.<br />

Seu modo de pregar e sua humildade tornaram-se quase um mito na época. Por isso,<br />

Anchieta ficaria, ainda em vida, celebre, como taumaturgo. Atribuem-se a Anchieta a autoria<br />

de muitos milagres, como o de “ter batizado um índio que acabara de ressuscitar ou de ter<br />

feito com que as flechas inimigas se pregassem no chão sem atingi-lo” 13 , também temos<br />

milagres relacionados à eucaristia, como o caso que o vinho tinha acabado, mas o fez achar<br />

novamente na vasilha vazia, ou quando as hóstias faltaram numa missa, e num breve espaço,<br />

fez elas r<strong>ea</strong>parecem 14 . Foi considerado venerável por Roma, e b<strong>ea</strong>tificado pelo Papa João<br />

Paulo II no ano de 1980. Com relação à figura (imagem) do padre José de Anchieta, temos a<br />

descrição do também padre jesuíta e primeiro cronista da Companhia de Jesus no Brasil,<br />

Simão de Vasconcelos:<br />

110<br />

“Foi o Padre José de Anchieta de estatura medíocre, diminuto em carnes, em vigor do espírito robusto e<br />

atuoso, em cor trigueiro, os olhos parte azulados, testa larga, nariz comprido, barba rara, mas no<br />

semblante inteiros, alegre e amável” 15 .<br />

10 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. In: OLIVEIRA,<br />

Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento… Op. cit., p. 97-111, p. 103.<br />

11 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 457.<br />

12 Uma compilação dos escritos do Padre José de Anchieta encontram-se em: LEITE, Serafim. História da<br />

Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VIII. Rio de Janeiro: Instituto do Livro, 1949, p. 16-43.<br />

13 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 457.<br />

14 VIOTTI, Pe. Hélio Abranches. Op. cit., p. 253.<br />

15 Ibid., p. 225.


Com relação ao trabalho missionário, Anchieta diz que havia impedimentos 16 para a<br />

conversão dos índios, sendo estes, os seus costumes inveterados como a poligamia, as<br />

constantes bebedeiras, a antropofagia, a inconstância dos índios, a falta de sujeição e de temor<br />

e inclusive os maus costumes que os portugueses cristãos apresentavam ou praticavam contra<br />

os índios: “O que mais espanta aos Índios e os faz fugir dos Portugueses, e por conseqüência<br />

das igrejas, são as tiranias que com eles usam obrigando-os a servir toda a sua vida como<br />

escravos, apartando mulheres de maridos, pais de filhos, vendendo-os, etc. (…)” 17 . Sobre a<br />

questão da inconstância dos índios, Anchieta relata que:<br />

111<br />

“Dos moços que (…) foram ensinados não só nos costumes cristãos, cuja vida quanto era mais diferente<br />

da de seus pais, tanto maior ocasião dava de louvar a Deus e de receber consolação, não queria fazer<br />

menção por não refrescar as chagas, que parecem algum tanto estar curadas; e daqueles direi somente,<br />

que chegando aos anos da puberdade, começaram a apoderar-se de si, vieram a tanta corrupção, que<br />

tanto excedem agora a seus pais em maldade, quanto antes em bondade, e com tanta maior senvergonha<br />

e desenfr<strong>ea</strong>mento se dão às borracheiras e luxurias, quanto maior modéstia e obediência se entregavam<br />

dantes aos costumes cristãos e divinas instruções” 18 .<br />

Anchieta diz que, “todos estes impedimentos e costumes são mui fáceis de se tirar se<br />

houver temor e sujeição, como se viu por experiência desde do tempo do governador Mem de<br />

Sé até agora (…)” 19 , ou seja, Anchieta alude a política de ald<strong>ea</strong>mentos como a melhor<br />

maneira de se trabalhar na conversão dos índios ao cristianismo.<br />

“Assim não há dúvida, que se acharia muito fruto neles se estivessem juntos, onde se pudessem<br />

doutrinar, de que se fez agora experiência na Bahia, onde juntos em umas grandes aldeias por mandado<br />

do governador, aprendem mui depressa a doutrina e rudimentos da Fé, e dão muito fruto, que durará<br />

enquanto houver quem os traga a viver naquela sujeição que temos” 20 .<br />

Nessas condições, segundo Anchieta, o trabalho de conversão não encontrava grandes<br />

dificuldades, pois os índios deixavam muito facilmente seus costumes que eram contrários à<br />

doutrina cristã, como comer carne humana, ter muitas mulheres, embriagar-se com seus<br />

vinhos, entre tantos outros, pois os índios nesses ald<strong>ea</strong>mentos, segundo Anchieta, “(…) ficam<br />

mui sujeitos a nossos padres como se fossem <strong>religiosos</strong> e lhes têm amor e respeito e não<br />

movem pé nem mãos sem eles” 21 . Sobre o zelo com que Anchieta e os outros padres<br />

cuidavam do trabalho missionário, vemos que muitas vezes eles cuidavam dos índios doentes<br />

16 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Introdução de Leonardo<br />

Arroyo. São Paulo: Editora Obelisco, 1964, p. 50-51.<br />

17 Ibid., p. 52.<br />

18 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 107.<br />

19 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 51.<br />

20 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 102.<br />

21 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. In: Notícia do Brasil.<br />

São Paulo: Fundação Projeto Rondon – MINTER/Ministério da Educação – SESU, s/d, p. 11-13, p. 13.


(também dos colonos), mas na verdade eram eles, os padres, que precisavam de cuidados,<br />

como o próprio Anchieta constatou e descreveu:<br />

112<br />

“(…) que nós outros [jesuítas] que socorremos as necessidades dos outros [índios], muitas vezes<br />

estamos mal dispostos e fastigados de dores, desfalecemos no caminho, de maneira que apenas o<br />

podemos acabar, e assim ainda que mais parece termos necessidade ainda de médico que os mesmos<br />

enfermos” 22 .<br />

1 – Com relação à prática antropofágica:<br />

a) Como o autor descreve (narra) o ritual antropofágico?<br />

Com relação à descrição do ritual antropofágico, Anchieta, o descreve<br />

pormenorizadamente em apenas uma de suas cartas – aqui analisadas. No restante de seus<br />

escritos, Anchieta, cita alguns detalhes (dados) que circundam a cerimônia antropofágica, mas<br />

não a descreve como vemos, numa carta do ano de 1555, quando Anchieta relata que a região<br />

de Piratininga é povoada de índios que, “têm sumo deleite comer-se uns aos outros”, sendo<br />

que para tal fim, eles preparam expedições guerreiras que andam mais de cem léguas para<br />

capturar os inimigos, para depois os matarem utilizando “muitas cerimônias gentílicas”, e<br />

ainda por cima, Anchieta destaca que os cativos se sentiam honrados por ter este tipo de<br />

morte, que consideravam “mui gloriosa”, porém, Anchieta, não descreve nada sobre a<br />

concepção, ou melhor, não dá nenhuma explicação do porque os índios estimavam ter este<br />

tipo de morte:<br />

“(…) povoada de índios que têm por sumo deleite comer-se uns aos outros, e muitas vezes vão à guerra<br />

e havendo andado mais de 100 léguas, se cativam três ou quatro, se tornam com eles e com grandes<br />

destas e cantares os matam, usando muitas cerimônias gentílicas, e assim os comem bebendo muito<br />

vinho [cauim], que fazem de raízes, e os miseráveis dos cativos se têm por mui honrados por morrer<br />

morte, que a seu parecer, é mui gloriosa” 23 .<br />

Em outro de seus escritos, Anchieta relata que os índios, estimam mais em capturar<br />

um contrário em guerra, do que matá-lo, pois grande parte dos índios que capturam um<br />

inimigo, o dão como um presente, a outros índios, para que estes os matem e tomem um nome<br />

por este feito. Ainda complementa que os índios são naturalmente inclinados para matar,<br />

contudo não são cruéis, pois não dão nenhum tormento aos inimigos capturados, ao contrário,<br />

os índios tratam muito bem seus inimigos até à hora de sua morte, quando sua cabeça é<br />

quebrada com um pau, que provavelmente deve ser o ibirapema (tacape cerimonial), fato pelo<br />

22 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 101.<br />

23 ANCHIETA, Pe. José de. Carta aos Padres e Irmãos da Companhia de Jesus em Portugal, de Piratininga,<br />

1555. In: Notícia do Brasil. São Paulo: Fundação Projeto Rondon – MINTER/Ministério da Educação – SESU,<br />

s/d, p. 5-8, p. 5. Grifos do autor.


qual, os índios se contentam, e que se utilizam de alguma crueldade para com os inimigos,<br />

isso deve ser influência (exemplo) dos portugueses e franceses, ou seja, a crueldade não é uma<br />

característica indígena. 24<br />

A descrição do ritual antropofágico é feita por Anchieta na “Carta ao Padre Geral, de<br />

São Vicente, em 1° de junho de 1560”, sendo que nesta carta são descritos dois casos. No<br />

primeiro caso Anchieta não descreve o ritual antropofágico propriamente dito, ou seja, a<br />

preparação do prisioneiro, as cerimônias que envolvem levar o prisioneiro para o terreiro, o<br />

diálogo entre a vítima e seu algoz, apenas, relata que os índios fizeram “as festas como é<br />

costume”, contudo se refere a vários aspectos que cercam a morte do prisioneiro. O peculiar<br />

desse caso é que ele refere-se à morte de um menino de três anos de idade, que os padres<br />

(Anchieta descreve a participação do padre Luiz da Grã nesse episódio), esforçaram-se para<br />

tentar impedir, o que teriam conseguido se não fosse um índio infiel vindo “doutra parte” e<br />

ainda por cima, incitado por algumas velhas, que para ganhar um nome e as honras que tal<br />

morte confere, o tivesse matado, porém para os padres nem tudo estava perdido, pois eles<br />

tinham conseguido batizar este pobre indiozinho, cuja alma iria gozar à vida eterna. Desse<br />

modo Anchieta, reporta-nos o costume que os índios tinham de convidar as tribos aliadas para<br />

estas participarem do repasto canibal (desse modo consolidava-se as alianças e caracterizava-<br />

se um inimigo comum), também r<strong>ea</strong>lça o papel das velhas anciãs na cerimônia, o qual é<br />

grandemente enfatizado na produção pictórica, contudo não especifica que função elas tinham<br />

e por fim, informa-nos, que o índio que executa a vítima, ganha seu nome e insígnias de<br />

honra, que se constituem em marcas na própria pele e grande prestígio entre seus iguais, mais<br />

uma vez, Anchieta não especifica quais seriam estas honras. Um último detalhe sobre esse<br />

caso, se refere a que Anchieta relata que os índios não comeram a carne do prisioneiro.<br />

113<br />

“Muita cousa que se conta dos índios, às quais ajuntarei algumas, de suas guerras, nas quais como<br />

tinham posto quase todos os seus pensamentos e cuidados, e neles se se pudesse ver, quão vagas são a<br />

virtude e doutrina da vida cristã, os dias passados encontrados os inimigos vieram a um lugar, e<br />

tomaram muitos cativos. Um deles dizia haver de se matar em uma povoação perto de Piratininga; com<br />

seus cantos vimos as festas como é costume: sabendo o padre Luiz da Grã foi a ela, para batizar aos<br />

moradores, que não quisessem cometer aquela maldade, prometeram-lhe que não haviam de deixar sujar<br />

seu lugar em que havia tantas cristãos com derramamento de sangue inocente. Mas como houvesse<br />

dama que se aparelhava todo o necessário para a morte, tomou lá uma e outra vez, estando aquela aldeia<br />

quatro milhas de Piratininga, e os que já eram batizados prometessem que tal não se faria, todavia um só<br />

cativo infiel, que havia ali, vindo doutra parte para ganhar aquela mísera e torpíssima honra, induzido<br />

por conselho de algumas velhas, determinou matá-lo, e tomar o seu nome e insígnias de honra. Sabendo<br />

nós outros que assim estava determinado, fomos lá, como que, íamos negociar em outra cousa, porque<br />

nos escondessem como costumam, para que o batizássemos, e sua alma inocente fosse participante dos<br />

gozos eternos. Era um menino inocente até três anos, mui elegante e formoso, que fizemos trazer diante<br />

de nos outros, e batizamos, pesando-nos, uma parte por se haver de matar um menino inocente com<br />

tanta crueldade, e em cuja morte tantos vi, já batizados, haviam gravemente pecar, e por outra parte<br />

24 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 46.


114<br />

alegramo-nos muito, porque logo sua inocente alma havia de passar à vida eterna. Isto acabado, e já a<br />

causa estava segura, e não havia perigo de esconder: começamos diante de muitos a detestar aquela<br />

maldade, e notar-lhes de cobardes e frouxos que queriam em meninos pequenos vingar as injurias e<br />

mortes recebidas dos inimigos, e am<strong>ea</strong>çar-lhes com o Divino Juízo, e com a morte, se fossem comer o<br />

menino já batizado. Depois de alguns dias estando nós outros ausentes, o mataram com as costumadas<br />

solenidades, mas não o comeram, estando presentes alguns dos moradores; e outros que já haviam<br />

deixado mais altas raízes na Fé, foram para outros lugares, não querendo manchar os olhos com tal<br />

espetáculo. E também muito para espantar e dar muitas graças ao Todo Poderoso Deus, que nem estes,<br />

nem os outros dos lugares vizinhos que já em algum tempo ouviram de nós outros, e ainda agora muitas<br />

vezes ouvem a palavra de Deus, não comam carne humana, não tendo eles sujeição alguma, nem medo<br />

dos cristãos” 25 .<br />

Anchieta descreve o segundo caso, com mais detalhes no que concerne aos aspectos<br />

do ritual antropofágico que dizem respeito à morte do prisioneiro, que nesse caso era um<br />

menino de quinze anos de idade, o que não chama tanto a atenção, pois geralmente entre<br />

quatorze e dezesseis anos, os meninos eram iniciados na vida adulta. Anchieta descreve que<br />

os índios deram ao prisioneiro uma moça, que seria sua manceba e guardadora, contudo por<br />

influência dos padres, este a recusou. Quando relata que os índios faziam o prisioneiro “bailar<br />

toda a noite”, deve se referir ao costume que os índios tinham de beber junto ao prisioneiro,<br />

dias antes de sua execução, quando este desafiava seus contrários, exortando sua valentia e<br />

dizendo que os seus hão de vingá-lo. Chegado o dia da execução, os índios retiravam o<br />

prisioneiro, do local onde estava resguardado para o terreiro, onde se encontrava uma grande<br />

multidão (toda a tribo e seus convidados). Num primeiro momento, segundo Anchieta,<br />

amarrava-se na cintura do prisioneiro uma corda muito comprida (a mussurana), que era<br />

segura em uma extremidade, ficando a outra extremidade livre. Pronto o prisioneiro, entra em<br />

cena o executor “usando das suas cerimônias e ritos”, as quais Anchieta não descreve e que<br />

provavelmente se referem à entrada triunfal do executor todo enfeitado com penas, que<br />

recebia o tacape cerimonial, que também estava enfeitado e iniciava um discurso que travava<br />

com o prisioneiro que iria matar, após estas cerimônias, o executor desfere um golpe que<br />

quebrar a cabeça do prisioneiro. Anchieta finaliza dizendo que os índios retiram a corda do<br />

prisioneiro e deixam o corpo sem fazer “cousa alguma”, ao que os padres entram em ação,<br />

levando o corpo do morto para ser enterrado na igreja.<br />

“Pouco há que cativaram outro, que levaram a um lugar para matar, e detendo-se uma noite em<br />

Piratininga, foram os irmãos a combatê-lo com as armas da palavra Divina, a ver se podiam tomar<br />

aquela fortaleza, que há tanto tempo havia estado ocupada de Satanás, e convertê-lo ao senhorio de<br />

nosso Salvador. Logo ao primeiro combate fugiu o demônio, que estava na sua alma, querendo perdê-lo<br />

para a Fé: era um moço que parecia ter quinze anos, de um bom natural, e respondia com tanta<br />

prontidão e fervor de coração às cousas da Fé, que lhe perguntavam que parecia havê-las aprendido:<br />

instruído pois pelos irmãos, foi advertido que se oferecesse com bom coração as injúrias que os índios<br />

lhe fizeram. (…). Davam-lhe também uma moça, como era costume, para manceba e guardadora; mas<br />

25 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 105.<br />

Grifos do autor.


115<br />

os irmãos não o consentiram, e o mesmo o aborreceu muito, dizendo que nunca fora encasado com o<br />

pecado. Não faltaram índios que queriam o sacassem do poder dos escravos, e o enviassem para as<br />

casas a bailar toda a noite, e como não quisessem os escravos, lhes falaram palavras insolentes e<br />

injuriosas. Outros, passando junto ao moço, lhe diziam: ‘Morrerás’, que era palavra solene daquele<br />

tempo (…). À meia noite o batizaram, estando mui bem instruído na Fé, e admoestado que se entregasse<br />

a Deus, e se esquecesse desta vida em que tão pouco havia de estar (…). E porque o irmão Manuel de<br />

Chaves perguntasse que determinavam os inimigos, se nos queriam fazer guerra, como soíam,<br />

respondeu-lhe: Oh, meu avô, deixa agora isso, que me quero ir para Deus. Um pouco antes da manhã<br />

em que o haviam de matar, um índio de Piratininga, cristão mui estimado entre nós, fez uma fala ao<br />

redor dele e casas (como é costume) admoestando aos seus que deixassem aos irmãos fazer com o<br />

inimigo tudo que julgasse ser necessário para a sua alma, sem o que o teriam por inimigo e destruidor.<br />

Vindo a alva, quando a sua alma havia de ser vestida de resplendores do Sol da Justiça, o levaram para o<br />

terreiro, estando presente uma grande multidão, atado pela cintura com cordas compridas pegando<br />

muitos por uma parte, e a outra toda solta, chegou-se a ele, o que o havia de matar, usando das suas<br />

cerimônias e ritos com a solene palavra ‘Morrerás’. Gritando-lhe os irmãos que se pusesse de joelhos, o<br />

que logo cumpriu, levantando os olhos e as mãos para os Céus, chamando pelo Santíssimo Nome de<br />

Jesus, lhe quebrou a cabeça com um pau, e voou a alma ditosa da glória imortal dos Céus. Praza ao<br />

Senhor que tal morte nos dê, sendo-nos quebrada a cabeça por amor de Cristo [martírio id<strong>ea</strong>lizado por<br />

Anchieta]. Ao morto lhe tiraram as cordas, o deixaram sem fazer mais cousa alguma, e os irmãos o<br />

meteram em uma rede, e trazendo-o as costas para Piratininga, o enterraram na igreja para se entoar<br />

cânticos justos pela vinda do Senhor” 26 .<br />

A partir dessa exposição, podemos dizer que o padre José de Anchieta, descreve o<br />

ritual antropofágico de forma pragmática, pois não apresenta a morte do prisioneiro, como<br />

simples modo dos índios comerem carne humana, na verdade, as descrições que Anchieta faz<br />

pormenorizadamente, trazendo detalhes do ritual antropofágico, não acabam com os índios<br />

destrinchando o corpo do inimigo e ingerindo sua carne, mas quando estes quebram a cabeça<br />

do prisioneiro, o que denota a não consumação do ato canibal. Das duas uma: ou ele oculta tal<br />

informação não a descrevendo, ou os índios que Anchieta descreve já se encontravam “meio”<br />

cristianizados e por obediência aos padres ou por terem sido, os prisioneiros batizados, não<br />

ingerem sua carne.<br />

b) Há referência à antropofagia funerária?<br />

Nos relatos analisados do Padre José de Anchieta não há nenhuma referência, nem<br />

mesmo um indício da prática desse tipo de antropofagia, que geralmente é associada aos<br />

grupos indígenas alcunhados pelos portugueses de tapuias – índios de língua travada –<br />

(grupos jês) em contraposição aos índios tupis. Estes índios achavam que seu estômago era<br />

melhor sepultura para seus parentes e amigos, do que a terra.<br />

c) Existe referência à participação de elementos não indígenas, ou seja, europeus, no ritual<br />

antropofágico, mas sem ser no papel de vítima?<br />

26 Ibid., p. 106-107. Grifos do autor.


Nos escritos analisados do Pe. José de Anchieta, não há referências à participação de<br />

europeus no ritual antropofágico, nem como expectadores, com exceção ao próprio Anchieta<br />

e outros padres, pois estes não estavam presentes nas festas como convidados para selar uma<br />

aliança, como poderia acontecer com colonos portugueses ou corsários franceses, mas<br />

estavam lá para tentar impedir tal morte e se isso não fosse possível, os padres faziam de tudo<br />

para batizar os cativos e salvar-lhes a alma, nem mesmo no papel de vítima, pois todos os<br />

mortos nas ocasiões que Anchieta descreve são índios. O que chama a atenção nesse fato é<br />

que um dos mortos no ritual antropofágico é um menino de três anos, o qual Anchieta não<br />

especifica se fora capturado em uma expedição guerreira, ou se era filho de algum prisioneiro<br />

de guerra, pois os índios concebiam o filho de um prisioneiro, mesmo que gerado por uma<br />

mulher da tribo, como um inimigo, que tinha o mesmo destino de seu pai, a morte ritual, que<br />

podia dar-se logo ao nascer ou algum tempo depois, como parece ser o caso.<br />

2 – Com relação às guerras indígenas, como o autor se referencia a elas?<br />

Anchieta não relata o modo de guerr<strong>ea</strong>r indígena no campo de batalha (não diz nada<br />

sobre a racionalidade das guerras indígenas), nem a maneira como se preparavam para ir à<br />

guerra, embora Anchieta tenha participado de algumas expedições bélicas, porém descreve<br />

que os índios canalizavam todos os seus esforços para a guerra, ou seja, ele percebe que a<br />

guerra tinha uma importância para os índios, e também que eles não empreendiam as<br />

expedições bélicas, apenas para combate aos seus contrários (inimigos), mas para fazer<br />

cativos (prisioneiros):<br />

116<br />

“Muita cousa que se conta dos índios, às quais ajuntarei algumas, de suas guerras, nas quais como<br />

tinham posto quase todos os seus pensamentos e cuidados, e neles se se pudesse ver, quão vagas são a<br />

virtude e doutrina da vida cristã, os dias passados encontrados os inimigos vieram a um lugar, e<br />

tomaram muitos cativos. Um deles dizia haver de se matar em uma povoação perto de Piratininga; com<br />

seus cantos vimos as festas como é costume (…)” 27 .<br />

Sendo que esses prisioneiros de guerra, segundo Anchieta, se constituíam na maior<br />

honra que um índio podia conseguir em campo de batalha. Contudo, esses prisioneiros não<br />

eram destinados a trabalhar para seus donos como escravos, ou serem vendidos/trocados por<br />

outras mercadorias, mas eram tratados com brandura por seu captor, inclusive servindo, não<br />

como moeda de troca, mas como um presente que podia ser destinado a quem o índio que o<br />

capturou quisesse dar, cujo objetivo era quebrar-lhe a cabeça para ganhar um novo nome:<br />

27 Ibid., p. 105.


117<br />

“A maior honra que têm é tomar algum contrário na guerra e disto fazem mais caso que de matar,<br />

porque muitos dos que tomam os dão a matar a outros, para que fiquem com algum nome, (…).<br />

Naturalmente são inclinados a matar, mas não são cruéis: porque ordinariamente nenhum tormento dão<br />

aos inimigos, porque se os não mata no conflito da guerra, depois tratam-os muito bem, e contentam-se<br />

com lhes quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito fácil, (…). Se de alguma crueldade usam,<br />

ainda que raramente e, com o exemplo dos portugueses e franceses” 28 .<br />

Anchieta também relata que os índios inimigos dos portugueses atacavam as<br />

povoações constantemente, e que nesses ataques eles destruíam os mantimentos (plantações),<br />

aprisionavam os cativos – não diz para que finalidade, mas provavelmente era para matar no<br />

ritual antropofágico, e que esses índios, levavam muitas mulheres, cuja finalidade seria não<br />

para serem mortas ritualisticamente, mas de serviram como mancebas a esses índios:<br />

“No ano passado deram em uma casa aqui junto da vila, e cativaram muitas mulheres que tinham saído<br />

de casa, e iam fugindo: embarcando-se nas canoas as levaram, mas entre aqueles uma mestiça, que<br />

freqüentava aqui a doutrina e confissões, com ânimo varonil resistiu aos inimigos para a não levarem, e<br />

como trabalhassem muito para a embarcar, e não podiam conseguir, a mataram com feias feridas, e é de<br />

supor que ela obraria com aquela intenção, que muitas vezes dizia às outras que andavam na mesma<br />

doutrina, principalmente um dia antes que a matassem, quando se despedira delas, a quem costumava<br />

dizer, que, se os contrários dessem em casa de seu padre e a cativassem, não havia de se deixar levar<br />

viva, para que a não tomassem por manceba, como faziam a todas as outras, porque se havia de deixar<br />

antes matar do que ir com eles, pois sabia de certo que corria perigo padecer força a sua castidade” 29 .<br />

3 – O autor descreve algum mito indígena? Se sim, qual e como o descreve?<br />

Com relação aos mitos indígenas, nota-se que Anchieta não se preocupa em descrevê-<br />

los/narrá-los, pois, além desse não ser o seu objetivo, grande parte desses mitos ia contra a<br />

doutrina cristã, a qual Anchieta tinha por missão converter os índios. Porém, em uma ocasião<br />

– nos escritos analisados – Anchieta descreve dois mitos indígenas, contudo, tem-se por<br />

detalhe, que esses dois mitos indígenas descritos por Anchieta, possuem dados que podem ser<br />

utilizados para corroborar a obra catequética entre os indígenas.<br />

O primeiro mito, que Anchieta relata, refere-se a que os índios: “Têm alguma notícia<br />

do dilúvio, mas muito confusa, por lhes ficar de mão em mão dos maiores e contam a história<br />

de diversas maneiras” 30 . Denota-se aqui, além da passagem bíblica do dilúvio, a tradição oral<br />

das tribos indígenas, pois as tribos indígenas do Brasil eram apócrifas, por isso as<br />

tradições/mitos eram passadas de geração a geração através de histórias que sofriam algumas<br />

mudanças, acréscimos e perdas em seu conteúdo. O segundo mito indígena, descrito por<br />

Anchieta, faz referência a um personagem da mitologia indígena chamado de “Çumé”, figura<br />

28 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 46.<br />

29 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 107-108.<br />

30 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 50.


a qual, os portugueses associaram o Apóstolo São Tomé, ou seja, os índios já tiveram um<br />

primeiro e antigo contato com o cristianismo.<br />

118<br />

“Também lhes ficou dos antigos notícias de uns dois homens que andavam entre eles, um bom e outro<br />

mau, ao bom chamaram ‘Çumé’, que deve ser o apostolo S. Tomé, e este dizem que lhes fazia boas<br />

obras, mas não se lembram em particular de nada. Em algumas partes se acham pegadas de homens<br />

impressas em pedra, máxime em São Vicente, onde no cabo de uma praia, em uma penedia mui rija, em<br />

que bate continuamente o mar estão muitas pegadas, como de duas pessoas diferentes, umas maiores<br />

outras menores que parecem frescas como de pés que vinham cheias de areia, mas se verá elas estão<br />

impressas na mesma pedra. Estas é possível que fossem deste Santo Apóstolo e algum seu discípulo. O<br />

outro homem chamavam ‘Maira’, que dizem que lhes fazia mal e era contrário de ‘Çumé’ (…)” 31 .<br />

4 – Com relação aos costumes e à cultura material do gentio, o que o autor descreve?<br />

Sobre a cultura material dos índios, Anchieta, relata que eles viviam em aldeias com<br />

casas muito grandes e extensas, que não possuem portas e janelas, sendo cobertas de folhas de<br />

palma que chamam de ocas, vivendo em espantosa paz, sob a “chefia” de:<br />

“(…) um principal de sua nação a que obedecem em algumas cousas e convivem juntas nestas casas<br />

cento e duzentas pessoas, maridos, mulheres e filhos, não há entre eles todo o ano queixas [furtos] nem<br />

falsidades e com andarem nus não há homem que ponha o olho em mulher alheia” 32 .<br />

Ainda cita, que os índios dormiam “em redes de fios de algodão no ar, por causa das<br />

cobras” 33 , que utilizavam canoas para ir para a guerra (não descreve como produziam as<br />

canoas), que tinham por armas principais, tanto para a guerra quanto para a caça e a pesca, o<br />

arco e a flecha, além de um tacape de madeira, que provavelmente é o ibirapema (tacape<br />

cerimonial). Fabricavam vasilhas (potes) para armazenar os alimentos e bebidas.<br />

Sobre os costumes indígenas, Anchieta relata que os índios tinham por costume<br />

repartir o alimento que produziam, coletavam ou caçavam entre si, e sempre que era possível,<br />

davam aos padres alguma carne de caça, peixes, e farinha de mandioca, que segundo Anchieta<br />

é o principal alimento produzido pelos índios, contudo era preciso ter cuidado ao preparar esta<br />

farinha, como o mesmo relata, pois esta podia matar se preparada de maneira errada.<br />

“O principal mantimento desta terra é uma farinha de pau, que se fez de certas raízes, que se chamam<br />

mandioca, as quais são plantadas e lavradas a este fim, e se se comem cruas ou assadas ou cozidas<br />

matam, porque é necessário deixá-las em água até que apodreçam, e depois de apodrecidas se fazem em<br />

farinha: este é o principal mantimento (…)” 34 .<br />

31<br />

Ibidem.<br />

32<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 13.<br />

33<br />

Ibid., p. 12.<br />

34<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Carta aos Padres e Irmãos da Companhia de Jesus em Portugal, de Piratininga,<br />

1555. In: Op. cit., p. 5.


Sobre a nudez dos índios, Anchieta, nos textos analisados, não a condena, apenas diz<br />

que os índios “(…) têm grande candura natural e com andar nus non verecundant, parece que<br />

representam o estado de inocência” 35 . Entrando na questão religiosa, Anchieta, reporta-nos<br />

que os índios não adoram nenhum ídolo, e que eles não possuem nada, nem mesmo um<br />

animal/criatura que adorem que possa ser comparado com Deus, “somente os trovões cuidam<br />

que são Deus, mas nem por isso lhes fazem honra alguma”, ao mesmo tempo, Anchieta,<br />

procura dissociar os índios de alguma influência do demônio, dizendo que eles não possuem:<br />

119<br />

“(…) comunicação com o demônio, posto que tem medo dele, porque as vezes os mata nos matos a<br />

pancadas, ou nos rios, e, porque lhes não faça mal, em alguns lugares medonhos e infamados disso,<br />

quando passam por eles, lhe deixam alguma flexa ou penas ou outra coisa como por oferta” 36 .<br />

Com relação aos feiticeiros, Anchieta diz que eles se chamam pajé e são pregadores<br />

muitos estimados, cuja função é exortar os índios a guerra, a matar homens (provavelmente<br />

contrários em terreiro), entre outras façanhas, além de cuidarem de outras cerimônias:<br />

“Estes mesmos feiticeiros e outros que não chegam a tanto, costumam esfregar, chupar e defumar os<br />

doentes nas parte que têm lesas e dizem que com isto os saram e disto há já muito uso, porque com o<br />

desejo da saúde muitos se lhes dão a chupar (…)” 37 .<br />

Outro costume indígena que Anchieta descreve, é o modo peculiar como recebem<br />

parentes e amigos em suas aldeias, pois logo que a pessoa chega/volta à aldeia depois de<br />

algum tempo, as mulheres, atiram-se sobre ela e põem-se a chorar como se alguém tivesse<br />

morrido, contudo elas não estão tristes, mas exortam nesse ato uma grande felicidade 38 . Essa<br />

cerimônia é conhecida como saudação lacrimosa e era muito comum entre as tribos tupis.<br />

Também relata que é muito difícil que índios de uma mesma aldeia briguem entre si, contudo<br />

se ocorrer uma briga, o que segundo Anchieta ocorre frequentemente nas festas onde<br />

consumem seus vinhos em demasia, eles escondem suas armas, porque se ocorrer uma morte<br />

desse tipo, “(…) as vezes acontece dividir-se uma nação com guerra civil e matarem-se e<br />

comerem-se como aconteceu no Rio de Janeiro” 39 .<br />

Quando Anchieta fala que os índios são muito dados ao vinho, ele quer se referir à<br />

bebida de raízes de mandioca ou de milho, que os índios chamam de cauim. Anchieta<br />

descreve o modo como essa bebida é preparada e que os índios a consumem no lugar de<br />

outros alimentos, principalmente na ocasião em que matam um índio inimigo:<br />

35<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 12.<br />

36<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 48.<br />

37<br />

Ibid., p. 49.<br />

38<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 13.<br />

39<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 47.


120<br />

“Este vinho fazem as mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho, o mastigam porque com isso<br />

dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais. Deste enchem muitos e grande potes, que somente<br />

servem disso, e depois de ferver dois dias o bebem quase quente, porque assim não lhes faz tanto mal<br />

nem os embebeda tanto, ainda que muitos deles, principalmente os velhos, por muito que bebem, de<br />

maravilha perdem o siso, ficam somente quentes e alegres. Com o vinho das frutas que é muito forte se<br />

embebedam muito e perdem o siso, mas deste bebem pouco, e somente o tempo que elas duram; mas o<br />

vinho comum das raízes de milho bebem tanto que às vezes andam dois dias com suas noites bebendo, e<br />

às vezes mais principalmente nas matanças de contrários e todo este tempo cantando e bailando sem<br />

cansar e dormir. Este vinho comumente o fazem grosso e basto, porque juntamente lhes serve de<br />

mantimento e quando bebem nenhuma outra coisa comem. (…) Os moços pequenos não bebem aqueles<br />

vinhos, e quando algum mancebo há de começar a beber, fazem-lhe grandes festas, empenando-os e<br />

pintando-os como que então começam a ser homens” 40 .<br />

Com relação ao casamento indígena, Anchieta diz que os índios não se casam “até que<br />

tomem ou matem algum homem e, se o matam, tomam por insígnia sarjar-se o corpo por tal<br />

modo e artifício que ficam mui galantes e pintados e nisto têm grande primor” 41 , sendo que a<br />

maioria dos índios tem apenas uma mulher , apenas os guerreiros mais valentes e os principais<br />

possuem muitas mulheres (Anchieta cita dez, doze e vinte mulheres para esse caso). Anchieta<br />

também descreve que as mulheres indígenas não tomam por injúria o fato de seus maridos<br />

arranjarem outras esposas, cita como exemplo, o caso de um principal chamado Araguaçu,<br />

que se casou com uma escrava tamoia que tinha a muito pouco tempo tomado em guerra,<br />

“sem fazerem caso disso nem o tomarem por afronta outras duas mulheres que tinha, e filhos<br />

já homens, e uma filha já mulher casada” 42 , desse modo diz que nunca viu entre os índios<br />

alguma morte causada pelo sentimento de adultério. Essas mulheres capturadas em guerra<br />

eram chamadas pelos índios de temirecô, e os índios se casavam com elas, como se fossem<br />

mulheres de sua própria tribo, por que tinham a seguinte concepção (regra) de parentesco:<br />

“(…) o parentesco verdadeiro vem pela parte dos pais, que são os agentes, e que as mães não são mais<br />

que uns sacos, em respeito dos pais, em que se criam as crianças, e por esta causa os filhos dos pais,<br />

postos que sejam havidos de escravas e contrárias cativas, são sempre livres e tão estimados como os<br />

outros; e os filhos das fêm<strong>ea</strong>s, se são filhos de cativos, os têm por escravo e os vendem, e às vezes<br />

matam e comem, ainda que sejam seus netos filhos de suas filhas (…)” 43 .<br />

As índias, que eram dadas aos portugueses como esposas, também eram chamadas de<br />

temirecô, sendo que os índios, principalmente os tamoios, temiminôs, tupiniquins e<br />

tupinambás, faziam isso para angariar/firmar uma aliança com os portugueses, onde os<br />

europeus davam aos índios ferramentas, roupas, entre outras quinquilharias, mas o mais<br />

importante seria o apoio conseguido contra seus inimigos, em contrapartida os índios fazem<br />

trabalho de roça e pesca, ou seja, fornecem alimentos aos portugueses, além de apoio contra<br />

40 Ibid., p. 47-48.<br />

41 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 12.<br />

42 ANCHIETA, Pe. José de. Informação dos Casamentos dos Índios do Brasil. In: Notícia do Brasil. São Paulo:<br />

Fundação Projeto Rondon – MINTER/Ministério da Educação – SESU, s/d, p. 14-18, p. 14.<br />

43 Ibid., p. 17.


índios e estrangeiros que venham a guerr<strong>ea</strong>r com os portugueses, contudo para Anchieta, isso<br />

não parece significar “suficientes sinais de matrimônio nem da parte dos que se amancebam<br />

com elas, nem dos pais ou irmãos que lhas dão” 44 .<br />

Ainda sobre o casamento, Anchieta diz que muitos homens, servem aos seus sogros<br />

antes que esses lhe dêem suas filhas como esposa, de modo que os índios que têm mais filhas<br />

são mais abastados dos que têm apenas filhos homens. Sobre as regras de casamento dentro<br />

da própria tribo – em especial para os índios tupis –, Anchieta relata que os padres casam tios<br />

com sobrinhas que ascendem por parte de suas irmãs, não sendo permitido, entre os próprios<br />

índios, o casamento com as sobrinhas que ascendem por parte de um irmão ou de outro<br />

qualquer parente da linha de seu pai 45 :<br />

121<br />

“Todos os filhos e filhas de irmãos têm por filhos e assim os chamam; e desta maneira um homem de 50<br />

anos chama pai e por esta ordem tem grande reverência a todas as mulheres que vêm pela linha dos<br />

machos, não casando com elas de nenhuma maneira, ainda que sejam fora do quarto grau. As sobrinhas,<br />

filhas de irmãs e ‘deinceps’ têm por verdadeiras mulheres e comumente casam com elas, ‘sine<br />

discrimine’” 46 .<br />

Anchieta relata, com grande pesar, que são mandadas para o céu, a alma de muitas<br />

crianças que são mortas, por suas próprias mães logo que nascem, mas também que são<br />

mortas crianças que ainda não nasceram (aborto). Contudo, coloca como a causa desse ato, a<br />

questão dessas mulheres estarem bravas com seus maridos e não terem medo dos mesmos, ou<br />

quando bebem, entre inúmeros outros modos que inventam para tal fim, porém Anchieta não<br />

se refere que os indígenas de uma maneira geral, tinham por costume matar as crianças que<br />

nasciam com alguma deficiência, por isso em alguns relatos, os <strong>cronistas</strong> dizem que não<br />

achavam ninguém com deficiência entre os índios, mas também porque os índios concebiam,<br />

como vimos acima, que os filhos de contrários homens eram considerados também como<br />

inimigos, e dessa forma também eram mortos, senão ao nascer, logo após seu pai ser morto na<br />

cerimônia antropofágica.<br />

“Entre estas cousas acontece que se batizam e mandam ao Céu alguns meninos que nascem meio<br />

mortos, e outros movidos, o que acontece muitas vezes mais por humana malícia que por desastre,<br />

porque estas mulheres brasílicas mui facilmente movem [Eufemisticamente, Anchieta usa aqui mover<br />

em lugar de abortar]: ou iradas contra seus maridos, ou os não têm por medo; ou por qualquer ocasião<br />

mui leviana matam os filhos; ou bebendo para isso algumas beberagens; ou apertando a barriga; ou<br />

tomando alguma carga grande, e com outras muitas maneiras que a crueldade humana inventa” 47 .<br />

5 – O que o autor relata em relação às doenças que grassavam na Brasil?<br />

44 Ibid., p. 16.<br />

45 Ibid., p. 17.<br />

46 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 47.<br />

47 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 101-102.


Sobre as doenças que grassavam no Novo Mundo, atingindo europeus e<br />

principalmente os indígenas, Anchieta escreve que: “quando há doenças gerais, como houve<br />

cá muitas vezes de bexigas, priorizes, tabardilho, câmaras de sangue, etc., não há descansar, e<br />

nisto se gasta cá a vida de nossos, com que se têm ganhado em todo o Brasil muitas almas ao<br />

Senhor” 48 . Essa assertiva de Anchieta tem duas implicações. A primeira se refere a enorme<br />

mortandade que essas doenças provocam entre os indígenas, tanto os que estavam nos<br />

ald<strong>ea</strong>mentos, quanto os que estavam em suas próprias aldeias, sendo eles já convertidos<br />

(batizados) ao cristianismo ou não, pois segundo o próprio Anchieta (em carta datada de<br />

1585), “(…) somente na Bahia havia mais de 40 mil cristãos e agora haverá 10 mil, porque<br />

têm morrido de várias enfermidades (…)” 49 . A segunda se refere a que os indígenas na hora<br />

da morte, estão mais suscetíveis a aceitar o batismo: “De outros podia contar, máxime<br />

escravos, dos quais alguns morreram batizados de pouco, e outros já há dias que o foram:<br />

acabando sua confissão iam para o Senhor” 50 ; “(…) quando caem em alguma enfermidade, de<br />

que parece morrerão, procuramos de os mover, a que queiram receber o batismo, porque então<br />

comumente estão mais aparelhados (…)” 51 . Contudo, pelos escritos de Anchieta, nem todos<br />

os índios, na hora da morte, aceitavam o batismo:<br />

122<br />

“Adoeceu outro [índio] em outro lugar [aldeia], e como muitas vezes o admoestávamos, o mesmo dizia,<br />

crendo que se sanaria: mas aumentando-se cada dia a enfermidade, visitei-o, e vendo por outra parte<br />

estar já in extremis [no fim], com palavras brandas o persuadia a tomar o batismo, e ele mui indignado,<br />

levantou a voz, que não podia, gritando que o não molestasse, e que estava são: irava-se com tudo por<br />

todas as vias: desta já alguns irmãos haviam tentado ganhá-lo para o Senhor, trabalhando nisto com<br />

muitas palavras, que parecia já haver dado consentimento, e disse: ‘Pois que assim é, te batizarão e<br />

alcançarás a eterna salvação’; mas não somente não consentiu, que cobrindo a cara me deixou, sem<br />

dizer mais palavra, e no outro dia, permanecendo na mesma condição, morreu” 52 .<br />

De outro lado, Anchieta, reporta-nos que alguns índios vinham, quando estavam<br />

doentes, pedir aos padres para que estes os curassem, ou os chamavam quando estavam para<br />

morrer, para que os padres lhes dessem o batismo, salvando dessa forma suas almas. Na<br />

tentativa de curar os índios, uma das práticas mais comuns utilizadas pelos padres era a da<br />

sangria, como vemos na descrição abaixo:<br />

“Uma catecúmena que havia dois anos estava enferma de calenturas, fez-se trazer a Piratininga pelos<br />

seus parentes, para que a curássemos: fizemos-lhe os remédios que podíamos, mas como a febre já<br />

estava arraigada, curamo-la mais da saúde da alma, incitando-lhe os desejos da eterna vida, a qual ele<br />

abraçando com todo o afeto do coração, rogava e pedia o batismo (…) Depois de alguns dias duas de<br />

suas irmãs caíram em uma grande enfermidade; uma delas morreu em Piratininga , cristã e casada:<br />

48 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 39.<br />

49 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 12-13.<br />

50 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 101.<br />

51 Ibid., p. 97-98.<br />

52 Ibid., p. 98.


123<br />

sangrei-a duas vezes, e ficou melhor; a outra que ainda era catecúmena, e morava em outro lugar, bem<br />

instruída nas cousas da Fé, e que na bondade natural parecia exceder a todas as outras, adoecendo de<br />

febre no-lo fez saber: até que passaram quatro ou cinco dias fomos visitá-la, sangramo-la (…)” 53 .<br />

Anchieta também relata que os padres, não se negavam a ajudar ninguém, tentando<br />

sempre salvar as pessoas que pediam a ajuda dos mesmos, não importado a enfermidade que<br />

essa pessoa possuía, contudo nos casos em que não era possível fazer alguma coisa pela<br />

pessoa enferma, vendo que ela inevitavelmente ia morrer, os padres procuravam ficar ao lado<br />

dessa pessoa, confessando-a, confortando-a com a palavra de Deus, e se essa pessoa era um<br />

índio ainda não batizado, os padres o preparavam para receber o batismo e salvar sua alma.<br />

“Faleceu a pouco uma velha que havia sido manceba de um português quase quarenta anos, e ainda<br />

gerando muitos filhos; esta como os nossos irmãos houvessem muito admoestado que olhasse para si, e<br />

não quisesse ir-se ao inferno por aquele pecado, logo arrependida, e conhecendo a maldade com que<br />

havia vivido, aborreceu o pecado perseverando na castidade, e trabalhava de purgar seus pecados com<br />

muitas esmolas que nos fazia. Agora, ferida de uma longa e incurável enfermidade foi a Piratininga,<br />

onde deixou uma casa para seus filhos e escravos. Entendia somente as cousas tocantes à salvação de<br />

sua alma, confessava e comungava muitas vezes, e dando-nos muitas esmolas, aparelhava eternos<br />

tabernáculos na vida. Visitavam-na muitas vezes os irmãos, confortavam-na nas divinas palavras,<br />

principalmente quando já no último, tendo corruptos os membros secretos (esta era sua enfermidade,<br />

que é mui comum nestas mulheres do Brasil ainda virgens) [trata-se do que se diagnóstica atualmente<br />

de câncer de útero], mas o padre Afonso Braz, e o irmão Gaspar Lourenço, interprete, tendo mais ânimo<br />

ao odor que sua alma havia de dar, venceram o fedor que aos outros era intolerável, estiveram toda a<br />

noite sem dormir, esforçando-a com divinas palavras, em que ela muito se deleitava, até que expirou<br />

com ditoso fim, como é de crer” 54 .<br />

6 – Map<strong>ea</strong>mento étnico feito pelo autor:<br />

Em seus escritos, Anchieta deixa claro que no Brasil do século XVI existia uma<br />

enorme quantidade de índios que se dividiam numa multiplicidade de tribos (etnias) indígenas<br />

que diferiam umas das outras em vários aspectos:<br />

“Os índios desta província são inumeráveis pela terra a dentro, de várias nações e costumes e linguagem<br />

e muitos deles são como selvagens e não se lhes pode entender sua língua e há pouco remédio para sua<br />

salvação, exceto alguns inocentes ou adultos que se batizam in extremis e se vão para o céu” 55 .<br />

Porém, apesar dessa enorme gama de índios, Anchieta os chama genericamente de<br />

Brasis, e diz que todos eles, deveriam ser alvos do trabalho missionário, ou seja, todos os<br />

índios deveriam ser trazidos para o cristianismo. Anchieta r<strong>ea</strong>firma essa multiplicidade<br />

indígena e nos informa que o trabalho missionário era dificultado porque as povoações<br />

(aldeias) tinham por característica serem construídas longe uma das outras: “(…) máxime<br />

sendo tantas estas povoações, estando longe uma das outras, que não somos bastantes a acudir<br />

53 Ibid., p. 99-100. Grifos do autor.<br />

54 Ibid., p. 101.<br />

55 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 11.


tão várias necessidades como ocorrem, e mesmo que fôramos muito mais, não poderíamos<br />

bastar” 56 . Contudo, apesar da multiplicidade de tribos indígenas descritas, e da(s) diferença(s)<br />

que existem entre elas, Anchieta caracteriza a figura do índio da seguinte forma:<br />

124<br />

“São como vermelho de cor, de média estatura, a cara e os mais membros mui bem proporcionados; o<br />

cabelo é corredio de homens e mulheres, são grandes pescadores e como peixes no mar e vão fundo e<br />

estão lá de espaço até trazerem o que buscam. Nos campos e florestas andam e rompem como bichos;<br />

são guerreiros e grandes frecheiros; basta ver um olho só descoberto a um homem para lhe pregar; são<br />

tão destros que não lhes escapa passarinho que não matem, e a frechadas matam o peixe na água;<br />

andam nus, são dados a vinhos que fazem a seu modo, são algo melancólicos e se querem morrer com<br />

apreender somente a morte na imaginação ou com comer terra; ou lhes diga que se há de morrer ou lhes<br />

punham medo morrem brevissímamene” 57 .<br />

Ainda diz que todos os índios andam ordinariamente nus, com exceção dos carijós (1),<br />

que por ser a terra onde moram muito fria, “usam de peles de v<strong>ea</strong>dos e outros animais que<br />

matam e comem, e as mulheres fazem umas como mantas de algodão que cobrem meio<br />

corpo” 58 . Outras características, que Anchieta destaca com relação aos índios, são as que:<br />

“Não têm escrita, nem caracteres, nem sabem contar, nem têm dinheiro: commutatione rerum compram<br />

uns aos outros; sua língua é delicada, copiosa e elegante, têm muitas composições e sincopas mais que<br />

os gregos, os nomes são todos indeclináveis, e os verbos têm conjugações e tempos. Na pronunciação<br />

são sutis, falam baixo que parece que não se entendem e tudo ouvem e penetram; em sua pronunciação<br />

não põem F, L, Z, S e RR, nem põem muta com liquida, como Bra, Crase” 59 .<br />

Com relação ao idioma dos índios, Anchieta relata que:<br />

“Desde o rio do Maranhão, que está além de Pernambuco para o Norte, até a terra dos Carijós, que se<br />

estende para o Sul desde a lagoa dos Patos até perto do rio que chamam de Martim Afonso, em que<br />

pode haver 800 léguas de costa, em todo o sertão dela que se estenderá com 200 ou 300 léguas, tirando<br />

o dos Carijós, que é muito maior e chega até as serras do Peru, há uma só língua” 60 .<br />

Anchieta assevera que a questão de existir apenas uma mesma língua entre os<br />

indígenas da costa constitui num grandíssimo bem para sua conversão, contudo ele também<br />

relata que existem nos matos (sertão) diversas nações de outros bárbaros, que possuem<br />

línguas diferentes da dos povos da costa, e que os índios da costa chamam esses índios dos<br />

matos de tapuias (2), que significa escravos, sendo que os mesmos índios da costa diziam que<br />

toda a costa antigamente estava povoada por esses índios que agora se encontram no<br />

interior. 61 Além disso, afirma que todos os índios da costa que possuem “uma mesma língua,<br />

comem carne humana, posto que alguns em particular nunca comeram e têm grandíssimo nojo<br />

56 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 101.<br />

57 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 12.<br />

58 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 46.<br />

59 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 11.<br />

60 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 45.<br />

61 Ibid., p. 12-13.


dela. Entre os tapuias se acham muitas nações que não a comem, nem matam os inimigos<br />

senão no conflito da guerra” 62 . Anchieta descreve os tapuias da seguinte forma:<br />

125<br />

“(…) têm uma natureza tão inquieta que nunca podem estar muito tempo num lugar, que é o principal<br />

impedimento para sua conversão (…) é gente bem inclinada e muitas nações deles não comem carne<br />

humana e mostram-se muito amigos dos portugueses, dizendo que são seus parentes e por meio deles<br />

têm pazes com os índios que tratam com eles, de que antes eram inimigos. Só uma nação destes que<br />

chamam Guaimuré (3), que ao principio foram amigos dos portugueses, são agora crudelíssimos<br />

inimigos, andam sempre pelos matos e têm posto em grande aperto a capitania de Porto Seguro e Ilhéus,<br />

e já quase chegam a Bahia” 63 .<br />

Com relação à distribuição geográfica dos índios, Anchieta relata que em Pernambuco<br />

e Itamaracá existiam os índios potiguaras (4), que comerciavam com os franceses o pau-<br />

brasil, em troca de ajuda destes, para fazer guerra aos portugueses. Em Ilhéus e Porto Seguro<br />

havia os índios tupiniquins (5) que a principio fizeram guerra contra os portugueses, e que<br />

agora se achavam quase extintos nessa região por causa “parte por doenças, parte com o<br />

maltratamento dos portugueses” 64 , sendo que esses índios também existiam em São Vicente,<br />

onde eram os melhores amigos (aliados) dos portugueses, “salvo no ano de 1562, que uns<br />

poucos do sertão por sua maldade (ficando a maior parte amiga como era dantes) deram<br />

guerra a Piratininga, vila de São Paulo (…)” 65 , que foi salvo por um grande chefe tupiniquim<br />

aliado dos portugueses, Tibiriçá. Ainda em Porto Seguro, segundo Anchieta, existiam os<br />

índios chamados Aimurés (6), que são “(…) homens robustos e feros, aos quais enquanto<br />

houve índios amigos sempre lhes resistiram; mas faltando-lhes estes, foram e são tão<br />

acossados dos selvagens que já a capitania de Porto Seguro esta meio despovoada” 66 . Nesse<br />

trecho denota-se a importância da existência de índios aliados aos portugueses, cuja função<br />

seria defender a terra e a povoação dos portugueses dos ataques dos índios inimigos e dos<br />

estrangeiros. Na região da Bahia, os índios tupinambás (7) eram os senhores das terras,<br />

vivendo no litoral, são tidos por Anchieta como “(…) gente de mui pouca capacidade natural,<br />

se bem que para sua salvação têm, juízo bastante e não são tão boçais e rudes como por lá se<br />

imagina” 67 . No Espírito Santo habitavam os índios temiminôs (8) que haviam deixado o Rio<br />

de Janeiro por causa de seus inimigos, os tamoios (9), sendo que esses índios eram grandes<br />

aliados dos portugueses e ajudaram os mesmos quando estes deram assalto aos franceses e a<br />

seus aliados os tamoios. Quanto aos índios tamoios, Anchieta descreve que eles habitavam o<br />

62 Ibid., p. 46.<br />

63 Ibid., p. 13.<br />

64 Ibid., p. 20.<br />

65 Ibid., p. 18.<br />

66 Ibid., p. 21.<br />

67 ANCHIETA, Pe. José de. Informação da Província do Brasil para nosso Padre – 1585. Op. cit., p. 11.


Rio de Janeiro e o Cabo Frio, sendo estes índios “antes amigos dos portugueses se levantaram<br />

contra eles por grandes agravos e injustiças que lhes fizeram, e receberam os franceses, dos<br />

quais nenhum agravo receberam” 68 , sendo que praticavam comercio com os franceses, em<br />

troca de pau-brasil, pássaros, pimenta, entre outros produtos, recebiam armas de fogo, roupas,<br />

contas de vidro, machados e ajuda para dar guerra aos portugueses e seus aliados os<br />

tupiniquins que eram inimigos dos tamoios. Com relação aos índios carijós, diz que são gente<br />

“mui mansa e capaz das cousas de Deus; estes estão já debaixo do poder do Imperador<br />

(…)” 69 , contudo este Imperador era o de Espanha, pois disse que habitavam a Lagoa dos Patos<br />

(atual estado de Santa Catarina), cuja região sempre foi de conquista de Castela 70 , ainda diz<br />

que esses índios “por não se comer carne humana e por ser mais chegados a razão, esperamos<br />

em o Senhor que quando forem visitados se fará maior proveito e mais firme” 71 .<br />

Anchieta ainda relata uma tribo indígena que chama Ibirajáras (10), sendo que a esta<br />

tribo foi enviado o irmão Pero Corrêa com mais outros dois irmãos (cujos nomes não são<br />

citados, mas adiante um dos dois é identificado com irmão João de Sousa o outro não é<br />

identificado), pois se tinha notícia que esses índios se diferenciavam em muitos aspectos dos<br />

outros índios, por que: “(…) são muito chegados a razão, porque obedecem a um senhor e não<br />

têm mais de uma mulher, nem comem carne humana, nem têm idolatria nem feitiçaria<br />

alguma” 72 . Sendo que esses índios, a princípio receberam bem os padres e favoreceram o<br />

trabalho entre eles, até o dia em que:<br />

126<br />

“(…) mataram um contrário com suas festas costumadas, e o irmão assim enfermo como estava<br />

trabalhava com muitas razões e a apartá-los disto, dizendo-lhes quantas cousas Deus Nosso Senhor<br />

havia criado no mar e a terra para seu mantimento, e depois se foi a suas casas e lhes tomou um pedaço<br />

de carne que achou posta ao fumo. Eles lhe tomaram por isso grande ódio, o enfermo como estava se<br />

veio (…) estando já apartados das povoações, começaram a flechar o irmão Sousa, que (segundo dizem)<br />

se pos de joelhos louvando ao Senhor, e assim o mataram. O Irmão Pero Correia, vendo isto, lhes<br />

começou a falar, e a resposta deles era flechadas; ele todavia esteve falando com eles um pedaço<br />

recebendo-as, até que, não podendo mais sofrê-las, deixou o bordão que trazia e se pos de joelhos,<br />

encomendado sua alma ao Senhor, e assim morreram nossos dois irmãos: bendito seja o Senhor. A nós<br />

outros muito consolação nos causou sua morte e pedimos outra semelhante ao Senhor (…)” 73 .<br />

7 – Com relação ao maravilhoso, a zoologia e a geográfica fantástica. O que o autor descreve?<br />

68<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 23.<br />

69<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Carta aos Padres e Irmãos da Companhia de Jesus em Portugal, de Piratininga,<br />

1555. In: Op. cit., p. 5.<br />

70<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 12.<br />

71<br />

ANCHIETA, Pe. José de. Carta aos Padres e Irmãos da Companhia de Jesus em Portugal, de Piratininga,<br />

1555. In: Op. cit., p. 6.<br />

72 Ibidem.<br />

73 Ibid., p. 7.


Sobre a zoologia fantástica e a geografia fantástica, Anchieta não relata nada, pois não<br />

descreve nenhum animal fantástico, ou reencontra algum animal místico já conhecido na<br />

literatura européia, como também não faz nenhuma referência a reinos lendários, mesmo que<br />

sejam eles cristãos, como seria o caso do reino do Preste João.<br />

Com relação ao maravilhoso, Anchieta, não se utiliza dele, no sentido de relatar<br />

façanhas fantásticas, muito menos para descrever riquezas extraordinárias – contudo descreve<br />

uma única vez que os padres têm quase certeza que existem metais no interior, sendo que essa<br />

alusão de Anchieta refere-se a que isso trará muitos colonos e junto à justiça e o governo, o<br />

que colocará os índios em sujeição para o trabalho catequético dos padres:<br />

127<br />

“Uma cousa desejamos aqui todos e pedimos muito a Nosso Senhor, sem a qual não se poderá fazer<br />

fruto no Brasil, que desejamos, e é que esta terra toda seja mui povoada de cristãos que a tenham sujeita,<br />

porque a gente é tão indômita e está tão encarniçada em comer carne humana e isenta em não<br />

reconhecer superior, que será mui dificultoso ser firme o que se plantar, se não houver este remédio, o<br />

qual continuamente pedem os padres e irmãos a Nosso Senhor e estão mui consolados por haver quase<br />

certeza que pela terra a dentro se descobrem muitos metais, porque com isto se habilitará muito esta<br />

terra, e estes pobres índios, que tão tiranizados estão do demônio, se converterão a seu Criador” 74 .<br />

– mas no sentido de narrar às manifestações do poder de Deus, os milagres por ele r<strong>ea</strong>lizados,<br />

e mostrar que Deus estava ao lado dos padres. Nesse sentido, Anchieta relata que na guerra<br />

contra os tamoios e franceses, os mesmos fugiram depois de uma cruel batalha não por causa<br />

da superioridade dos portugueses, mas por causa “que é de crer que muitos fugiram mais com<br />

o espanto que lhes pôs o Senhor que com as forças humanas” 75 . Sobre os milagres r<strong>ea</strong>lizados<br />

nesta terra, Anchieta descreve em sua “Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584)”,<br />

uma fonte, cuja água brotava debaixo de um altar:<br />

“Em Porto Seguro, uma légua da povoação dos portugueses, se fez a casa de Nossa Senhora D’Ajuda,<br />

onde milagrosamente ela deu uma fonte d’água que parece proceder de debaixo de seu altar, onde se<br />

fizeram e fazem continuamente muitos milagres e é casa de grandíssima romaria e devoção, porque<br />

quase todos quantos enfermos lá vão e se lavam com aquela água saram, e os que não podem lá ir<br />

mandam por ela e bebendo-a faz o mesmo efeito” 76 .<br />

Outro ponto que pode ser inserido dentro desse maravilhoso voltado a esfera religiosa,<br />

são as relíquias que:<br />

“(…) vieram ao Brasil relíquias muito notáveis, a saber: o lenho da Cruz, seus cabeças das Onze Mil<br />

Virgens e as relíquias de São Sebastião, S. Braz. S. Cristóvão, dos Mártires Tebeus e de outros muitos<br />

santos, ‘Agnus Dei’ e Contas bentas, que estão repartidas pelos Colégios e Casas da Companhia, e com<br />

as quais se excitou muito a devoção dos moradores do Brasil e se tem feito muito proveito nas almas” 77 .<br />

74 Ibid., p. 8. Grifos do autor.<br />

75 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 110.<br />

76 ANCHIETA, Pe. José de. Informação do Brasil e de suas Capitanias (1584). Op. cit., p. 32.<br />

77 Ibid., p. 45.


Dessa forma, podemos afirmar que Anchieta não aproxima nenhuma dessas categorias<br />

que marcam a literatura sobre o período das grandes navegações, da descoberta e conquista do<br />

Novo Mundo, com a descrição que faz da prática antropofágica (Anchieta presenciou a<br />

prática antropofágica no Brasil na segundo metade do século XVI). Ou seja, Anchieta, não<br />

procura nenhum vestígio já existente/conhecido na literatura européia para explicar/narrar à<br />

prática antropofágica dos índios brasílicos. Porém, Anchieta não procura descrever essa<br />

prática, no sentido de tentar através dela, entender/compreender os índios e seus costumes,<br />

mas para mostrar que os padres estavam trabalhando no sentido de extirpá-la, pois ela vai<br />

contra os princípios cristãos, já que nas descrições que faz do rito antropofágico Anchieta<br />

descreve que os índios mataram, mas não comeram a carne do morto.<br />

8 – O autor faz alguma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena?<br />

Anchieta não faz nenhuma ligação entre a cosmologia indígena e a prática<br />

antropofágica, pois não cita nenhum mito ou uma causa de origem para tal costume/prática,<br />

como também não relata (e não concebe) nenhum motivo, pelo qual, os indígenas praticavam<br />

tal ato. Como a questão desta ser a morte id<strong>ea</strong>l, almejada por todo guerreiro indígena, por<br />

isso, Anchieta, mostra estranheza ao fato de os índios morrerem felizes e sem medo, tendo<br />

acima de tudo, grande estima por este tipo que morte, a qual é considerada muito gloriosa e<br />

uma honra concebida apenas aos mais valentes guerreiros.<br />

9 – O autor faz algum confronto entre a sua visão de morte e a visão de morte dos indígenas?<br />

Anchieta não confronta a sua visão de morte, que é cristã, com a visão de morte<br />

indígena, pois não cita a visão de morte indígena, onde para estes era melhor morrer no ciclo<br />

valente da vingança, do que como um covarde, porque para os indígenas somente aos valentes<br />

e corajosos era destinado a terra sem mal. Quanto a sua visão (concepção) de morte, Anchieta,<br />

não a exemplifica, apenas descreve que as almas dos índios batizados, iriam para o céu e a dos<br />

índios que não seguiam/aceitavam os preceitos cristãos, teriam suas almas a arder no fogo do<br />

inferno eternamente. Anchieta concebe e id<strong>ea</strong>liza em seus escritos, após descrever a morte de<br />

um índio em ritual antropofágico, uma visão de morte gloriosa para os cristãos, especialmente<br />

para os padres, o martírio: “Praza ao Senhor que tal morte nos dê, sendo-nos quebrada a<br />

cabeça por amor de Cristo” 78 .<br />

78 ANCHIETA, Pe. José de. Carta ao Padre Geral, de São Vicente, em 1° de junho de 1560. Op. cit., p. 107.<br />

128


Padre Manuel da Nóbrega, SJ.<br />

O Padre Manuel da Nóbrega foi o primeiro chefe da missão jesuítica na América<br />

Portuguesa (Brasil), nasceu no dia 18 de outubro de 1517 em Portugal, “na aldeia de Sanfins<br />

do Douro, norte de Portugal, precisamente na região Trás-os-Montes” 1 . Filho de letrados –<br />

seu pai fora desembargador do Tribunal da Relação em Portugal – estudou nas Universidades<br />

de Salamanca e Coimbra, onde se graduou em Direito Canônico no ano de 1541. Foi<br />

Admitido na Companhia de Jesus no dia 21 de novembro de 1544.<br />

Em Portugal, Nóbrega ocupou na Companhia de Jesus, o cargo de Procurador dos<br />

Pobres, r<strong>ea</strong>lizou peregrinações em Salamanca e Santiago de Compostela, e exercitou os<br />

ministérios próprios da Companhia como diretor de almas. Foi nom<strong>ea</strong>do pelo provincial da<br />

Companhia de Jesus em Portugal, o padre Simão Rodrigues de Azevedo, como o responsável<br />

(chefe) da Missão jesuítica do Brasil – na verdade, Nóbrega substituiu, a pedido do próprio<br />

Simão Rodrigues, a função que a ele tinha sido designada: vir para o Brasil 2 –, o que acarretou<br />

sua vinda ao Brasil, junto de outros cinco padres. Este fato ocorreu no dia 1° de fevereiro de<br />

1549, quando partem, junto do Primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, da cidade de<br />

Lisboa rumo à terra brasílica. 3<br />

Esta primeira missão da Companhia de Jesus no Brasil aportou na Baía de Todos os<br />

Santos no dia 29 de março de 1549. Tão logo chegou, Nóbrega deu início à obra de<br />

Conversão do Gentio, a educação dos meninos (crianças) e da morigeração dos Brancos,<br />

sobretudo à pureza dos costumes e liberdade dos índios, pois segundo Nóbrega:<br />

129<br />

“(…) se contarem todas as casas desta terra, todas acharão cheias de pecados mortais, cheias de<br />

adultério, fornicações, incestos e abominações, em tanto que me deito a cuidar se tem Cristo algum<br />

limpo nesta terra, e escassamente se oferece um ou dois que guardem bem seu estado, ao menos sem<br />

pecado publico” 4 .<br />

Sua primeira carta 5 é escrita e enviada a Portugal, aproximadamente duas semanas<br />

após sua chega ao Brasil. Nesta carta escreve sobre a missão que lhe estava incumbida, da<br />

seguinte forma:<br />

1 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial 1500-1808. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2000, p. 460.<br />

2 OLIVEIRA, Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas do Descobrimento. São Paulo:<br />

Ática, 1999, p. 47.<br />

3 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Cartas do Brasil e mais escritos do Padre Nóbrega. Coimbra: Atlântida, 1955,<br />

p. 13.<br />

4 NÓBREGA, Pe. Manuel da. A Tomé de Sousa, Portugal. Baía 5 de julho de 1559. In: NÓBREGA, Pe. Manuel<br />

da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 322.<br />

5 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Carta ao padre mestre Simão Rodrigues de Azevedo, 1549. In: OLIVEIRA,<br />

Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio (Orgs.). Cronistas… Op. cit., p. 47-50.


130<br />

“Esta me parece agora a maior empresa de todas, segundo vejo a gente dócil. Somente temo o mau<br />

exemplo que o nosso cristianismo lhe dá, porque há homens que há sete ou dez anos que se não<br />

confessam e parece-me que põem a felicidade em ter muitas mulheres” 6 .<br />

Nóbrega além de fundador da Missão do Brasil foi o seu primeiro Provincial, nom<strong>ea</strong>do<br />

por Santo Inácio em 1553. Ficou no cargo até 1560, quando o passou ao seu sucessor, o Padre<br />

Luís da Grã. Dez anos após deste fato, em 1570, no mesmo dia que completava cinqüenta e<br />

três anos de idade, Nóbrega morreu no Colégio do Rio de Janeiro, do qual foi fundador e<br />

primeiro Reitor.<br />

Incansável como missionário, id<strong>ea</strong>lizou a política dos ald<strong>ea</strong>mentos indígenas e a<br />

fundação de colégios para a instrução dos filhos de colonos e formação dos quadros da<br />

Companhia. Em 1552, inspecionou as capitanias do sul e os recém fundados colégios de<br />

Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo e São Vicente. Fundou em 1554, juntamente com<br />

Anchieta, o colégio de São Paulo do Piratininga. 7<br />

As cartas de Nóbrega 8 começaram a ser divulgadas ainda em vida do autor, em<br />

diversas coletân<strong>ea</strong>s quer em português, quer traduzidas para o espanhol e até algumas em<br />

latim, porém não foram publicadas todas as suas cartas, apenas as que tinham caráter<br />

informativo geral. 9 Estas cartas causaram admiração na Europa pelas informações que<br />

apresentavam do Novo Mundo. Após este período inicial, as suas cartas foram relegadas e<br />

apenas na segunda metade do século XIX, estudiosos do Brasil, tornaram a estudar esses<br />

documentos históricos. A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e os Anais da<br />

Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro reproduziam as cartas que iam achando. Foi Capistrano<br />

de Abreu que as reuniu pela primeira vez em um único volume. Seus escritos foram<br />

posteriormente reunidos nas Obras completas, publicadas em Coimbra no ano de 1955. Com<br />

relação ao conjunto de seus escritos, mas também quanto aos escritos dos outros padres,<br />

Nóbrega relata que algumas das cartas escritas, tanto as que iam do Brasil para a Europa,<br />

quanto as que vinham da Europa para o Brasil, se perderam:<br />

“(…) por a desconsolação que cá temos de não poderemos ter resposta das muitas cartas que são<br />

escritas, porque as que trazia este navio de João Gómez não nos deram, porque o principal maço em que<br />

deviam de vir se perdeu ou alguém as tomou, de maneira que não vieram a nossa mão; as que trazia o<br />

navio de Domingos Leitão tão pouco, porque não aportou cá” 10 .<br />

6 Ibid., p. 50.<br />

7 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 460.<br />

8 Uma compilação dos escritos do Padre Manuel da Nóbrega encontram-se em: LEITE, Serafim. História da<br />

Companhia de Jesus no Brasil. Tomo IX. Rio de Janeiro: Instituto do Livro, 1949, p. 3-14 & NÓBREGA, Pe.<br />

Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 71-89.<br />

9 LEITE, Serafim. Novas Cartas Jesuíticas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1952, p. 21.<br />

10 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal. Baía 5 de julho de 1559. In<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 294-5.


Podemos dizer que as suas cartas repartem a sua vida em dois períodos distintos. 11 O<br />

primeiro período engloba os dez anos em que foi Superior Maior de todo o Brasil. Neste<br />

período escreve muito, e nestes escritos demonstra que o seu principal e imediato objetivo era<br />

conversão do gentio. Deixa transparecer que os índios já tinham uma noção de Ente supremo,<br />

pois relata que temem e respeitam os trovões (Tupã), o que segundo Nóbrega, sugere a noção<br />

de Deus do Céu. 12 O segundo período se inicia em 1560, quando junto do Governador Mem<br />

de Sá parte para o Sul. Neste período a conversão do gentio continuava a ser uma das pedras<br />

fundamentais de seu pensar, porém, agora este desígnio estava subordinado a uma intenção<br />

política imediata: “o estabelecimento de uma autoridade robusta, que permitisse a segurança<br />

dos moradores e a expansão territorial indispensável para o progresso da conversão” 13 .<br />

Desde o início da missão evangelizadora, Nóbrega revelou dilemas quanto à<br />

possibilidade de conversão dos índios. Em algumas cartas Nóbrega demonstra otimismo, que<br />

pode ser sintetizado em sua celebre frase: “Cá poucas letras bastam, porque é tudo papel<br />

branco e não há mais que escrever à vontade; mas é muito necessária a virtude e zelo de que<br />

estas criaturas conheçam ao seu criador e a Jesus Cristo seu Redentor” 14 . Em outras cartas<br />

parece assustado ao descrever a cerimônia indígena protagonizada pelos caraíbas tupinambás:<br />

131<br />

“(…) na qual os índios fumavam sem parar, entravam em transe coletivo e pregavam a busca de uma<br />

terra de abundancia e imortalidade[Terra sem mal]. Nóbrega viu nisso uma manifestação diabólica e<br />

não hesitou em chamar o pajé de feiticeiro. No entanto foi dele a autoria da expressão santidade para<br />

designar a cerimônia, embora, Nóbrega considerasse evidentemente uma ‘falsa santidade’ ” 15 .<br />

Esse dilema sobre a viabilidade da conversão do gentio se encontra sintetizada, pelo<br />

próprio Nóbrega, no Diálogo sobre a conversão do gentio, onde temos um embate entre dois<br />

personagens (alter-egos de Nóbrega), um defensor da catequese e o outro contrário a ela por<br />

julgar os índios gente inculta e bárbara. Contudo, Nóbrega concebia como possível à<br />

conversão do gentio ao cristianismo, porque em sua concepção eles eram homens, filhos de<br />

Deus – “Todo homem é duma mesma natureza, e todo pode conhecer a Deus e salvar sua<br />

alma” 16 – ao contrário de alguns que pensavam que os índios não possuíam alma e por isso<br />

eram seres inferiores, passíveis de serem escravizados para servir, e de fato mostra em seus<br />

11<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 15.<br />

12<br />

Ibid., p. 16.<br />

13<br />

Ibid., p. 25.<br />

14<br />

Nóbrega, Pe. Manuel da. Cartas do Brasil, Carta ao Dr. Martim de Azpilcueta Navarro [Coimbra], de<br />

Salvador, 10 de agosto de 1549, p. 54 apud NEVES, Luiz Felipe Baêta. O combate dos soldados de cristo na<br />

terra dos papagaios: Colonialismo e Repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 59-60.<br />

15<br />

VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 460-461.<br />

16<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Diálogo sobre a Conversão do Gentio. [Baía 1556-1557]. In: NÓBREGA, Pe.<br />

Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 227.


elatos que alguns já se converteram, mas mesmo assim, dizia que era importante criar<br />

condições extrínsecas aos índios, aptas a facilitar a conversão dos mesmos, pois se fossem<br />

deixados a sua própria vontade, eles voltariam a praticar o costume de seus antepassados. Ou<br />

seja, Nóbrega defende a idéia (política) dos ald<strong>ea</strong>mentos – ponto de atrito com os colonos –,<br />

descrevendo que os colonos apenas queriam os índios como escravos, atrapalhando dessa<br />

maneira a conversão dos índios:<br />

132<br />

“Torno a dizer [Nóbrega] que tão grande o ódio que a gente desta terra tem aos Índios, que por todas as<br />

vias os toma o inimigo? De todo o bem por instrumentos de danarem e estorvarem a conversão do<br />

gentio; porque de Mem de Sá, Governador, ajuntar quatro Aldeias em uma e querer ajuntar outras em<br />

outra parte, não saberei dizer quanto o estorvam por todas as vias, mas neste caso parece-me bem o que<br />

faz Mem de Sá, e eu e D. Duarte assim lho aconselhamos, porque de outra maneira não se podem<br />

doutrinar nem sujeitar nem metê-los em ordem, e os Índios estão metendo-se no jugo da boa vontade, e<br />

não tem misericórdia nem piedade, e tem para si que estes não têm alma” 17 .<br />

Contudo Nóbrega também diz que era necessário não apenas proteger os índios dos<br />

colonos que lhes queriam escravizar, mas também mantê-los submetidos sob uma lei eficaz,<br />

que lhes proibisse certos costumes que também atrapalhavam a catequese. Nóbrega resumiu<br />

assim à lei destinada aos índios:<br />

“A lei, que lhes hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerr<strong>ea</strong>r sem licença do Governador;<br />

fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se, pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirarlhes<br />

os feiticeiros, mantê-los em justiça entre si e para com os cristãos; fazê-los viver quietos sem<br />

mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com<br />

estes Padres da Companhia para os doutrinaram” 18 .<br />

Nóbrega entende que os índios tinham a sua própria cultura e não a queria contrariar,<br />

senão naquilo que se opunha à religião cristã, como a antropofagia e a poligamia, práticas<br />

funestas e hediondas perante a doutrina cristã e que eram consideradas obstáculos à<br />

catequização dos índios e por isso deviam ser banidas de seus costumes, os demais costumes<br />

como as excessivas bebedeiras e a nudez, não os combateu abertamente, apenas procurou<br />

moderá-los. Foi dessa forma, sem lhes impor exterioridades, que começou a ensiná-los,<br />

principalmente as crianças (curumins), – pois “se não vão doutrinados, quando pequenos, dos<br />

grandes nunca homem se satisfaz” 19 –, a ler e a escrever, a confessá-los e a aceitá-los na<br />

Igreja, como já procedia com os batizados (colonos). 20 Em relação aos colonos, Nóbrega<br />

reprovava sua conduta no que diz respeito à obsessão sexual que tinham em relação às índias,<br />

17 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres. Lisboa. Baía 8 de maio de 1558. In: NÓBREGA, Pe.<br />

Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 284. Na obra Novas Cartas Jesuíticas de Serafim Leite está carta<br />

aparece com outro título Apontamentos das coisas do Brasil, p. 75-87, contudo o conteúdo é o mesmo.<br />

18 Ibid., p. 282-283.<br />

19 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Diego Laynes. Roma. São Vicente 12 de junho de 1561. In: NÓBREGA,<br />

Pe. Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 388.<br />

20 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 18.


“posto que a gente da terra vive em pecado mortal, e não há nenhum que deixe de ter muitas<br />

negras [e com nenhuma delas era casado] das quais estão cheios de filhos e é grande mal” 21 , e<br />

os definia da seguinte forma:<br />

133<br />

“É gente a desta terra que desejam a terra senhor<strong>ea</strong>da e sujeita e terem serviço dos Índios, mas isto que<br />

seja sem eles aventurarem nem uma raiz de mandioca. A este estorvo tão grande não sinto remédio se<br />

não se mandar gente que senhoreie a terra (…). Também devia de haver uma carta de Suas Altezas para<br />

a Câmara, em que declare quanto pretende a conversão do gentio, na qual não estorvem tanto; porque se<br />

isto vai como foi até aqui eu sou de voto que será escusado Colégio da Companhia e deviam-nos dar<br />

licença para ir ao Peru ou Paraguai, porque nem com cristãos nem com gentios aproveitaremos nada<br />

desta maneira (…)” 22 .<br />

Na esfera política atuou ao lado de Anchieta, na guerra entre portugueses e franceses<br />

no Rio de Janeiro, onde consegui converter alguns líderes tamoios, que lutavam ao lado dos<br />

franceses, forjando alianças pró-portuguesas. A mais importante aliança forjada foi a com o<br />

chefe temiminó Araribóia – guerreiro fundamental para a vitória portuguesa. Além de ter<br />

selado a paz com os tamoios em Iperoig. 23<br />

Nóbrega opôs-se a escravidão indígena e a considerava uma barreira à ação<br />

missionária, mas teve de fazer concessões, admitindo a escravidão de índios capturados<br />

através da guerra justa e do resgate dos prisioneiros destinados ao ritual antropofágico.<br />

Organizou os ald<strong>ea</strong>mentos em localidades próximas aos núcleos coloniais, o que transformou<br />

esses ald<strong>ea</strong>mentos em lugares propícios para a propagação de doenças (epidemias) que<br />

ceifaram a vida de milhares de índios, além de facilitar os assaltos dos colonos em busca de<br />

mão-de-obra qualificada e barata. O próprio Nóbrega, que era contra a escravização dos<br />

índios, solicitou escravos da Guiné ao rei para o serviço dos jesuítas, alegando que sem<br />

escravos que os servissem, os jesuítas teriam o seu trabalho missionário prejudicado:<br />

“A melhor cousa que se podia dar a este Colégio seria duas dúzias de escravos da Guiné, machos e<br />

fêm<strong>ea</strong>s, para fazerem mantimentos em abastança para casa, outros andariam em um barco pescando, e<br />

estes podiam vir de mistura com os que El-Rei mandasse para o engenho, porque muitas vezes manda<br />

aqui navios carregados deles” 24 .<br />

Depois desta breve apresentação sobre o Padre Manuel da Nóbrega, membro da<br />

Companhia de Jesus, de sua vida e de parte de sua obra como missionário no Brasil, cujo<br />

principal objetivo era a conversão do gentio ao cristianismo, vejamos como ele descreve a<br />

prática da antropofagia indígena em seus relatos (cartas). Essa prática, junto com a da<br />

poligamia, era segundo o próprio Nóbrega, um dos principais obstáculos (empecilhos) que os<br />

21 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Carta ao padre mestre Simão Rodrigues… Op. cit., p. 48.<br />

22 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres. Lisboa… Op. cit., p. 286.<br />

23 VAINFAS, Ronaldo. Op. cit., p. 461.<br />

24 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres. Lisboa… Op. cit., p. 288.


padres que trabalhavam para salvar as almas dos índios, convertendo-os em cristãos (homens<br />

civilizados), tinham de enfrentar e tentar, por conseqüência, bani-las do costume (tradição)<br />

indígena. Contudo devo ressaltar que não seguirei a ordem cronológica das cartas de Nóbrega,<br />

pois não analisarei sua obra de conversão, mas as informações que ele traz em seus escritos<br />

que são concernentes aos pontos de análise propostos.<br />

1 – Com relação à prática antropofágica:<br />

a) Como o autor descreve (narra) o ritual antropofágico?<br />

Com relação à descrição do ritual antropofágico, Nóbrega, nas cartas aqui analisadas<br />

não o descreve, apenas relata várias vezes que os índios comiam carne humana; que os índios<br />

queriam se tornar cristão e deixar de comer carne humana; que era necessário combater esse<br />

costume. Contudo existe uma passagem no Diálogo da Conversão do Gentio: “na Mandisoba,<br />

onde se matavam uns índios Carijós, outro índio, que com os Padres andava, oferecer-se com<br />

grande fervor e lágrimas a morrer pela fé, só porque aqueles morressem cristãos (…)” 25 , que<br />

alude a um episódio, onde Nóbrega, junto de Antonio Rodrigues, tentam impedir uma<br />

matança em terreiro, sendo que esse episódio é narrado pelo Padre Pero Correia.<br />

Nessa carta datada de 18 de julho de 1554, Pero Correia relata que o padre Manuel da<br />

Nóbrega adentrou pelo sertão, junto de mais um irmão – Antonio Rodrigues – e mais cinco<br />

irmãos menores – meninos –, umas cinqüenta ou sessenta léguas, em procissão para levar a<br />

palavra de Deus para os índios. Nisso chegou em uma aldeia onde estava para acontecer um<br />

“grande morticínio”, patrocinado pelos índios da etnia tupiniquim.<br />

Nóbrega trabalhou da melhor maneira que lhe convinha às circunstâncias para tentar<br />

evitar esta matança, mas não obteve sucesso nesta empreitada, pois os índios tupiniquins lhe<br />

informaram que já tinham convidado todos os seus parentes e que a maioria já estava na<br />

aldeia, como Nóbrega constatou. Nisso pediu aos índios para pelo menos poder batizar os<br />

prisioneiros, que seria uma tarefa rápida, mas os índios não permitiram que os seus<br />

prisioneiros fossem batizados, pois diziam que “se os matassem depois de batizados, os que<br />

comessem daquela carne, morreriam” 26 . Mas embora os prisioneiros fossem vigiados,<br />

Nóbrega conseguiu batizar secretamente, com um lenço molhado em água benta os<br />

prisioneiros, que na hora de sua morte pediram para serem postos a vista do padre para este<br />

25 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Diálogo sobre a Conversão do Gentio… Op. cit., p. 247-248.<br />

26 CORREIA, Pero. Carta de Pero Correia. De S. Vicente, 18 de julho de 1554. IN: LEITE, Serafim. Novas<br />

Cartas Jesuíticas… Op. cit., p. 172.<br />

134


lhes encomendar as almas a Nosso Senhor. Contudo, mesmo na presença dos padres, os<br />

prisioneiros foram sacrificados:<br />

135<br />

“O primeiro, que começaram, pôs-se de joelhos com as mãos levantadas chamando pelo nome de Jesus<br />

e deram certas pancadas com a espada na cabeça que o derribavam no chão, mas logo se tornava a<br />

levantar e pôr de joelhos com os olhos no céu e no Padre, chamando sempre pelo nome de Jesus e com<br />

esta voz expirou; e depois, todos os outros. Desta vez mataram três inocentinhos meninos pequeninos,<br />

de maneira que naquele dia foram, mártires e inocentes, a gloria” 27 .<br />

Em seus escritos, Nóbrega relata que os gentios têm matado e comido um grande<br />

número de cristãos em várias capitanias, muitos deles náufragos. Que os índios não podem<br />

acusar os cristãos de lhes terem maltratado e salt<strong>ea</strong>dos, embora o próprio Nóbrega admita que<br />

alguns cristãos assim procederam, dava como fato que a maioria pagava pelos danos<br />

cometidos por alguns contra os indígenas e que muitos mesmo sem fazer mal alguns aos<br />

índios eram por eles devorados. Diz que depois que o Brasil foi descoberto e povoado:<br />

“Têm os gentios mortos e comidos grande número de cristãos e tomadas muitas naus e navios e muita<br />

fazenda (…) não deixando de matar e comer, como e quando puderam (…). E são tão cruéis e bestiais,<br />

que assim matam aos que nunca lhe fizeram mal, clérigos, frades, mulheres de tal parecer, que os brutos<br />

animais se contentariam delas e lhes não fariam mal. Mas são estes carniceiros de corpos humanos, que<br />

sem exceção de pessoas, a todos matam e comem, e nenhum beneficio os inclina nem abstêm de seus<br />

maus costumes, antes parece e se vê por experiência, que se ensoberbecem e fazem piores, com afagos e<br />

bom tratamento” 28 .<br />

A prova desse comportamento “hediondo”, segundo Nóbrega era de que na Bahia eles<br />

(índios) eram bem tratados e doutrinados, mas isso só o fez ficarem piores, pois viam que não<br />

eram castigados pelos maus costumes que apresentavam e por isso continuavam os<br />

praticando. Nóbrega diz que para coibir isso era necessário agir com severidade e castigando<br />

os culpados, pois só dessa forma é que eles se sujeitam. Cita como exemplo desse fato, o caso<br />

do Bispo Sardinha, que foi morto junto de quase toda a sua tripulação (que era formada por<br />

mais de uma centena de pessoas), só escaparam três, segundo Nóbrega dessa carnificina<br />

r<strong>ea</strong>lizada pelos Caetés 29 e diz que era preciso sujeitar esses índios, pois só “desta maneira<br />

cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por<br />

toda a costa; os quais são comidos dos Índios e são mais os que morrem que os que vêm cada<br />

ano (…)” 30 – essa afirmação de Nóbrega (1558) dá a entender, que segundo a sua percepção,<br />

desaparecem mais pessoas por dia, comida pelos índios e em acidentes com embarcações, do<br />

que se acrescentava a população.<br />

27 Ibidem.<br />

28 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres. Lisboa… Op. cit., p. 279.<br />

29 Ibid., p. 279-280.<br />

30 Ibid., p. 281.


Numa de suas peregrinações pelo sertão adentrou em uma aldeia, onde os índios<br />

comiam carne dos contrários, no que começou a pregar contra esse ato odioso à doutrina<br />

cristã, o que surtiu efeito imediato, pois os índios pararam com a festa que estavam fazendo e<br />

pararam de comer a carne de seus contrários. Depois disso, Nóbrega continuou sua<br />

caminhada, e chegou à outra aldeia, “onde havia grande quantidade de vinho e carne dos<br />

contrários; onde pregando pelas casas, aquele dia não a comeram por nossa chegada; e a sua<br />

festa cessou de tal maneira que eles fizeram calar os seus que cantavam” 31 .<br />

Relata que um menino índio fugiu de sua mãe, quando os padres passavam por uma<br />

aldeia, e ficou com os padres na Casa dos meninos, sendo que este índio, depois de algum<br />

tempo, já instruído na doutrina cristã, voltou a sua aldeia pregar a palavra de Deus, porém<br />

encontrou sua mãe “com uma cabeça e pedaços de carne humana, dependurados junto ao<br />

fumo prontos para comer. Nisso ele teve coragem e repreendeu a própria mãe por causa dos<br />

maus costumes que ela praticava” 32 .<br />

Em carta dirigida ao rei de Portugal no dia primeiro de junho de 1560, Nóbrega relata<br />

que os colonos cristãos queriam que os índios guerr<strong>ea</strong>ssem e se comessem entre si, e até certo<br />

ponto eles incentivavam algumas tribos a fazer isso, pois dessa forma os índios dariam o<br />

pretexto aos colonos da guerra justa, e poderiam ser feitas incursões contra essas tribos para<br />

fazer desses índios escravos desses colonos. Também relata que esses colonos eram contra o<br />

ajuntamento (ald<strong>ea</strong>mento) dos índios para que os padres lhes ensinassem a doutrina cristã,<br />

porque isto atrapalharia os seus propósitos que eram os de utilizar a mão-de-obra indígena em<br />

proveito próprio.<br />

136<br />

“A contradição de todos os cristãos desta terra que era quererem que os Índios se comessem, porque<br />

nisso punham a segurança da terra e quererem que os Índios se furtassem uns aos outros para eles terem<br />

escravos e quererem tomas as terras aos Índios contra razão e justiça e tiranizarem-nos por todas as vias,<br />

e não querem que se ajuntem para serem doutrinados por os terem mais a seu propósito e de seus<br />

serviços, e outros inconvenientes desta maneira, os quais todos, ele [Governador Men de Sá] vence, a<br />

qual eu não tenho por menor vitória, que as outras que Nosso Senhor lhe deu; e defendendo a carne<br />

humana aos Índios tão longe quando seu poder se estendia, a qual antes se comia o redor da cidade e às<br />

vezes dentro nela, prendendo os culpados, e tendo-os presos até que eles bem conhecessem seus erro,<br />

sem nunca mais matar ninguém” 33 .<br />

31 Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech. Da Baía, 5 de agosto de<br />

1552. In: LEITE, Serafim. Novas Cartas Jesuíticas… Op. cit., p. 145-146. Sobre esta carta, Serafim Leite diz<br />

que “umas vezes fala por palavras dos meninos na 1ª. Pessoa do plural, outras fala deles na 3ª. Pessoa, e outras<br />

ainda na 1ª. Pessoa do singular, de alguém que redigisse pessoalmente a carta, talvez o próprio Nóbrega, que<br />

estava então na Bahia à frente de tudo (…). Entre Nóbrega e Francisco Pires (…) se terá que repartir a autoria ou<br />

inspiração desta carta. Novas Cartas Jesuíticas… Op. cit., p. 141-142.<br />

32 Ibid., p. 153.<br />

33 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao Card<strong>ea</strong>l Infante D. Henrique de Portugal. São Vicente 1 de junho de 1560. In:<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Cartas do Brasil… Op. cit., p. 362-363.


Sobre sua vinda para São Vicente, Nóbrega relata que antes de sua vinda, junto de<br />

outros padres, tinha-se proibido comer carne humana, mas diz que essa proibição foi feita de<br />

tal modo que “ainda que a comessem, não se fazia nada por isso” 34 , sendo esse o motivo,<br />

segundo Nóbrega, por que esse costume ainda existia nessa região. Diz, ainda que os colonos<br />

queriam repartir entre si os índios dos ald<strong>ea</strong>mentos onde os padres lhes ensinavam a doutrina<br />

cristã, para que estes lhes servissem como escravos, e afirmava que se isso acontecer, muitos<br />

desses índios vão fugir da doutrina crista lhes ensinada e voltariam a viver de acordo com<br />

seus antigos costumes, como comer carne humana 35 .<br />

Desse modo podemos dizer que o padre Manuel da Nóbrega não relata a prática<br />

antropofágica pormenorizadamente – em seus escritos –, ou seja, descreve o ritual, não<br />

porque não quer, ou porque não o tenha visto, pois temos que ele esteve presente em um<br />

desses rituais e viu como os prisioneiros eram mortos, mas porque isso não lhe interessava<br />

narrar, pois esse ritual ia contra o seu objetivo que era converter os índios ao cristianismo,<br />

sendo que para tal fim, Nóbrega dizia que era necessário extirpar alguns costumes dos índios,<br />

sendo que a prática antropofágica era um deles, por isso ele não se preocupa em narrar tal<br />

costume, mas logo após dizer que os índios comiam carne humana ele se refere a que era<br />

necessário proibir, sujeitar e punir os índios que praticavam tal ato.<br />

b) Há referência ou não à antropofagia funerária.<br />

Nos relatos analisados do Padre Manoel da Nóbrega não há nenhuma referência, nem<br />

mesmo um indício sobre a prática desse tipo de antropofagia. Sendo esta prática antropofágica<br />

associada aos grupos indígenas chamados de tapuias (grupos jê) – estes achavam que seu<br />

estômago era melhor sepultura para seus parentes e amigos do que a terra –, e que os padres<br />

jesuítas dedicaram seu esforço na conversão dos grupos de língua tupi, provavelmente, não<br />

apenas Nóbrega, mas os padres da Companhia de Jesus estiveram em poucas oportunidades<br />

em meio a esses índios, por isso não observando tal prática.<br />

c) Existe referência à participação de elementos não indígenas, ou seja, europeus, no ritual<br />

antropofágico, mas sem ser no papel de vítima?<br />

O padre Manuel da Nóbrega, na carta escrita “A Tomé de Sousa, Portugal. Baía 5 de<br />

julho de 1559”, denúncia que alguns cristãos, em vez de tirar os pecados do mundo, os estão<br />

34 NÓBREGA, Pe. Manuel da. A Tomé de Sousa, Portugal… Op. cit., p. 332.<br />

35 Ibid., p. 341-342.<br />

137


trazendo ao mundo, pois estão matando em terreiro, a moda dos índios, alguns gentios,<br />

embora não comam a sua carne, a dão a outros índios e a seus próprios escravos.<br />

138<br />

“Outros matam em terreiro a maneira dos Índios, tomando nomes, e não somente o fazem homens<br />

baixos e mamelucos, mas o mesmo capitão, às vezes! Ó cruel costume! Ó desumana abominação! Ó<br />

cristãos tão cegos que em vez de ajudarem ao Cordeiro, cujo oficio foi (diz São João Batista) tirar os<br />

pecados do mundo, ele por todos os modos que podem os metem nessa terra, seguindo a bandeira de<br />

Lúcifer, homicida e mentiroso desde o principio do mundo” 36 .<br />

Também diz que algumas pessoas acham que é<br />

“(…) serviço de Nosso Senhor fazer aos gentios que se comam e se travem uns com os outros, e nisto<br />

tem mais esperança que em Deus vivo, e nisto dizem consistir o bem e segurança da terra, e isto<br />

aprovam capitães e prelados, eclesiásticos e seculares, e assim o põem por obra todas as vezes que se<br />

oferece; daqui vem que, nas guerras passadas que se tiveram com o gentio, sempre davam carne humana<br />

a comer não somente a outros índios, mas a seus próprios escravos. Louvam e aprovam ao gentio o<br />

comerem-se uns a outros, e já se achou cristão mastigar carne humana para dar com isso bom exemplo<br />

ao gentio” 37 .<br />

Segundo Nóbrega, tivemos casos de colonos (europeus) não apenas participando do<br />

ritual antropofágico, como tendo nele um papel de destaque, o de matador, inclusive<br />

ganhando um nome como no costume indígena, e inclusive consumindo a carne do morto.<br />

2 – Com relação às guerras indígenas, como o autor se referencia a elas?<br />

Nóbrega não relata o modo de guerr<strong>ea</strong>r indígena (campo de batalha), nem a maneira<br />

como se preparavam para ir à guerra, porém em uma passagem deixa transparecer que os<br />

índios faziam guerra com a finalidade de capturar prisioneiros para executá-los no ritual<br />

antropofágico. Sobre essa passagem, Nóbrega relata que um principal – não diz de que etnia<br />

ele era, contudo podemos dizer que provavelmente era um índio tupinambá – disse que:<br />

“(…) quer ser cristão e não comer carne humana, nem ter mais de uma mulher e outras cousas; somente<br />

que há de ir à guerra, e os que cativar, vendê-los e servir-se deles, porque estes desta terra sempre têm<br />

guerra com outros e assim andam todos em discórdia, comem-se uns a outros, digo contrários. É gente<br />

sem nenhum conhecimento de Deus” 38 .<br />

Em outras passagens, Nóbrega apenas narra que os índios por algum motivo, como diz<br />

que no Espírito Santo, os índios pelos maus tratos infringidos pelos colonos, lhes fizeram<br />

guerra destruindo os engenhos 39 , ou quando descreve os acontecimentos em Ilhéus, onde<br />

ocorreu uma guerra entre os colonos e os índios tupiniquins, porque os colonos mataram no<br />

36 Ibid., p. 324.<br />

37 Ibid., p. 323-324. Grifos do autor.<br />

38 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Carta ao padre mestre Simão Rodrigues… Op. cit., p. 48.<br />

39 NÓBREGA, Pe. Manuel da. A Tomé de Sousa, Portugal… Op. cit., p. 328.


caminho de Porto Seguro, um índio sem motivo algum, contudo os índios revidaram<br />

queimando todos os quatro engenhos da região, provocando grande pânico entre a população,<br />

o qual só acabou quando o Governador mandou tropas para a região, sujeitando os índios em<br />

dois meses de embate. Como punição os índios tiveram que reconstruir os engenhos, aceitar a<br />

doutrina pregada pelos padres da Companhia de Jesus e não comerem mais carne humana, e<br />

por causa disso Nóbrega diz – em carta “Ao Card<strong>ea</strong>l Infante D. Henrique de Portugal. São<br />

Vicente 1 de junho de 1560” – que: “a ação de conservação dos gentios estava sendo bem<br />

conduzida onde encontrava elementos propícios e que por causa disso, toda a geração dos<br />

Tupiniquins, que é muito grande, poderá entrar no reino do céu” 40 .<br />

Sobre a questão, do Governador, ter punidos os índios por sua ação, Nóbrega diz que<br />

quando o Rei enviou os Governadores e justiça a essa terra, os colonos pararam de salt<strong>ea</strong>r o<br />

gentio como antes o faziam, contudo, nem por isso os índios deixaram “de tomar muitos<br />

navios e matarem e comerem muitos cristãos, de maneira que lhes convêm” 41 . A isso<br />

Nóbrega, relata que o Governador teve de declarar guerra aos índios da localidade do<br />

Parauaçu – que sempre foram inimigos dos cristãos – porque estes tinham matado e devorado<br />

quatro pescadores que teriam invadido seu território 42 .<br />

Diz que quanto o Governador Mem de Sá, se preparava para vingar a morte do Bispo<br />

Sardinha, teve de abortar tal intento para mandar tropas para o Rio de Janeiro, por causa da<br />

invasão francesa. Nesse confronto, Nóbrega, junto com Anchieta, tentaram convencer alguns<br />

índios tamoios a virar de lado, sendo que esse episódio ficou conhecido como conversão de<br />

Iperoig. Sobre a guerra em si, relata que os portugueses tomaram um navio francês que estava<br />

carregado de pau-brasil, e que os franceses e seus aliados indígenas tinham se refugiado no<br />

forte, contudo não relata como se deu o combate, apenas que “mostrou então Nosso Senhor<br />

sua misericórdia e deu tão grande medo nos franceses e índios que com eles estavam que se<br />

acolherão da fortaleza e fugiram, todos deixando o que tinham sem o poderem levar” 43 . Além<br />

de que esses franceses seguiam as heresias de Calvino, e que o Governador assaltou algumas<br />

aldeias, onde muitos índios foram mortos 44 .<br />

3 – O autor descreve algum mito indígena? Se sim, qual e como o descreve?<br />

40 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao Card<strong>ea</strong>l Infante D. Henrique de Portugal… Op. cit., p. 364.<br />

41 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres. Lisboa… Op. cit., p. 279-280.<br />

42 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao Card<strong>ea</strong>l Infante D. Henrique de Portugal… Op. cit., p. 364-365.<br />

43 Ibid., p. 368.<br />

44 Ibid., p. 370.<br />

139


Com relação aos mitos indígenas, temos que Nóbrega não os descreve em seu sentido<br />

indígena, pois este não era o seu objetivo, mas sim alterar grande parte desses mitos ou os<br />

utilizar em proveito da conversão dos indígenas ao cristianismo. Temos apenas dois mitos<br />

indígenas narrados por Nóbrega nos escritos analisados, contudo esses mitos por ele narrados<br />

tinham a função de aviltar o trabalho de conversão.<br />

Encontramos esses dois mitos, na “Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao<br />

Padre Pedro Domenech, escrita da Baía, 5 de agosto de 1552”. Esta carta se refere a uma<br />

romaria onde os padres junto dos meninos adentraram o sertão, em direção a uma aldeia que<br />

se referem como a “Aldeia das pegadas”, pois perto dela se encontrava uma pedra que tinha<br />

marcas de pegadas nela. Essas pegadas incrustadas na rocha eram, em lenda, “atribuídas a um<br />

vago herói chamado Zumé, que os portugueses, [segundo Serafim Leite] antes dos jesuítas, se<br />

referiam ser São Tomé” 45 . Ao chegar ao destino, o padre relata:<br />

140<br />

“Ao chegar, era meia maré baixa, e vimos às pegadas, que as cobre a maré cheia, que estão em pedra<br />

muito dura, e as pegadas marcadas como de homem que fugindo, resvalava, e a pedra deu lugar a seus<br />

pés, como se fosse barro, assim se abaixou e humilhou” 46 .<br />

Sobre o outro mito indígena, temos que durante a romaria, os meninos carregavam<br />

uma cruz de madeira, e entoavam cantos de louvor a Deus:<br />

“(…) Deus que fez os céus e a terra e todas as coisas para nós, para que o conhecêssemos e servíssemos,<br />

e nós, a quem Ele fez da terra e deu tudo, não o queremos conhecer, nem crer, obedecendo a seus<br />

feiticeiros e maus costumes, e que dali em diante não teriam escusa, pois Deus lhes enviaria a<br />

verdadeira santidade, que é a cruz, e aquelas palavras e cantares, e que Deus tinha vida para os que<br />

crêem (…)” 47 .<br />

Sendo que os índios mais velhos e os padres ficaram espantados por “saberem tanto os<br />

meninos, porque lhes falava, do inferno e do diabo, de quem eles [índios] têm muito medo” 48 .<br />

Provavelmente essa é uma apropriação do mito de Anhã ou Anhangá, uma figura da mitologia<br />

indígena tupi que os mesmos têm muito medo, a qual os padres associaram o diabo.<br />

4 – Com relação aos costumes e à cultura material do gentio, o que o autor descreve?<br />

Em relação aos costumes e a cultura material do gentio, temos que Nóbrega não relata<br />

muitos, e os que relata, não o faz pormenorizadamente, não traz detalhes, pois está não era sua<br />

função, muito menos sua intenção, pois seu objetivo era converter os índios a fé cristã, sendo<br />

45 Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech… Op. cit., p. 145.<br />

46 Ibidem.<br />

47 Ibid., p. 143.<br />

48 Ibid., p. 143-144.


então que muitos dos costumes dos nativos deviam ser extirpados porque iam contra a<br />

doutrina católica, e outros, para se conformarem a ela deviam ser adaptados/manipulados, e<br />

ainda há costumes dos colonos que foram adaptados pelos índios as suas necessidades. A par<br />

disso, sobre a cultura material dos indígenas, Nóbrega relata suas habitações:<br />

141<br />

“As casas de cá são como as de aí, e muito compridas, todas cobertas de palmeira desde o chão até<br />

cima, onde ficávamos e passávamos durante o dia, e de noite éramos muito bem hospedados, e davamnos<br />

do que tinham em abundância” 49 .<br />

Também diz que dormiam em redes, que eles próprios fabricavam. Relata que<br />

comumente os índios andavam com arco e flechas, pois este aparato servia-lhes tanto para<br />

caçar e pescar (coletar alimento) como para guerr<strong>ea</strong>r contra seus inimigos. Sobre a música,<br />

Nóbrega relata que os índios gostavam muito dela, sendo que em uma aldeia, os meninos<br />

cantaram e dançaram durante a noite com “maracás que são de umas frutas uns cascos com<br />

cocos, e furados, com uns paus, por onde deitam pedrinhas dentro, o qual tocam” 50 .<br />

Sobre os costumes dos índios, relata que eles (padres) sempre que passavam por<br />

alguma aldeia, os índios lhes forneciam farinha e carne de caça, ou seja, o costume indígena<br />

de repartir os alimentos entre eles. Também diz que os índios tinham por costume não morar<br />

mais do que quatro a cinco anos no mesmo lugar. 51 Sobre a nudez dos índios, Nóbrega relata:<br />

“(…) parece-nos que não podemos deixar de dar roupa que trouxemos a estes [índios] que querem ser<br />

cristãos, repartido-lha até ficarmos todos iguais com eles, ao menos por não escandalizar aos seus meus<br />

irmãos de Coimbra, se souberem que por falta de algumas ceroulas deixa uma alma de ser crista e<br />

conhecer seu Criador e Senhor e dar-lhe glória (…)” 52 .<br />

Reporta que a grande maioria das crianças, depois que crescem mesmo as que foram<br />

ensinadas nos colégios: “voltam à mesma vida dos seus pais, que antes tinham, em partes,<br />

onde não tem sujeição, nem há possibilidade na terra para lhes dar; onde tem sujeição basta<br />

ensiná-los nas próprias povoações 53 , contudo o próprio Nóbrega, em carta a Diego Laynes no<br />

ano de 1561, diz que “ainda que muitos rapazes voltam atrás, para seguir os costumes de seus<br />

pais, onde não tem sujeição, ao menos isto se ganha: que não voltam a comer carne humana,<br />

antes o estranham a seus pais (…)” 54 . Ainda sobre os meninos diz que “é perigoso criá-los,<br />

porque têm mais ocasiões para não guardar a castidade depois que se fazem grandes (…)” 55 .<br />

49 Ibid., p. 144.<br />

50 Ibid., p. 147-148.<br />

51 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Diego Laynes. Roma… Op. cit., p. 386.<br />

52 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Carta ao padre mestre Simão Rodrigues… Op. cit., p. 49.<br />

53 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Diego Laynes. Roma… Op. cit., p. 387.<br />

54 Ibid., p. 388.<br />

55 Ibid., p. 390.


Com relação aos feiticeiros (pajés), Nóbrega relata alguns casos e diz que os padres<br />

sempre os perseguem e os desacreditam frente aos índios. Um primeiro caso diz respeito há<br />

um índio que foi ao mato onde tinha “uma velha guardando a fruta é a matou, dizendo que<br />

esta velha e o seu espírito o fizera estar muito doente” 56 . Em outro caso, relatado na carta “Ao<br />

P. Miguel de Torres e Padres de Portugal. Baía 5 de julho de 1559”, Nóbrega diz que um<br />

índio escravo trouxe uma santidade 57 a um engenho:<br />

142<br />

“(…) e a santidade que pregava era que aquele santo que fizera abalar o Engenho e ao senhor com ele, e<br />

que converteria a todos os que queria em pássaros, e que matava a lagarta das roças que então havia, e<br />

que nós não éramos para matar, e que havia de destruir a nossa igreja, e os nossos casamentos que não<br />

prestavam, que o seu santo dizia que tivessem muitas mulheres, e outras cousas desta qualidade” 58 .<br />

Outro caso diz respeito a que um menino viu um feiticeiro retirar um pedaço de palha<br />

de uma pessoa doente e que o mesmo se vangloriou que esta era a causa de sua doença, do<br />

que o menino retrucou que mentia e foi correndo chamar um padre que estava nas redondezas<br />

– Antonio Rodrigues. 59 Em outra aldeia havia muitas feiticeiras que tinham armado laços em<br />

uma cabana com o intuito de prender a morte se ali viesse tirar a vida de um menino doente,<br />

sendo que os pais desse menino recusavam o batismo 60 .<br />

Sobre os costumes impostos pelos padres aos indígenas, diz que os meninos tinham<br />

adornado a “cruz toda pintada de pluma da terra e muito formosa 61 . Que os jovens e as<br />

crianças cantavam nas missas, e ainda “os meninos tem cuidado de ensinarem há doutrina a<br />

seus pais e mais velhos e velhas, os quais não podem tantas vezes ir há Igreja, e é grande<br />

consolação ouvir por todas as casas louvar-se Nosso Senhor e dar-se gloria ao nome de Jesus”<br />

62 . Os indígenas também participavam de procissões, em grande número, sendo que em<br />

algumas dessas procissões os índios se auto imolavam “os índios que da paixão de Nosso<br />

Senhor Jesus Cristo, já tinham alguma notícia, e movidos de grande compunção se davam<br />

bofetadas muito asperamente, derramando muitas lágrimas, segundo soube de todos os<br />

cristãos que estavam na Igreja” 63 .<br />

Vê-se que os padres de certa forma controlam os costumes indígenas, especialmente<br />

aqueles que queriam eliminar, porque segundo a concepção dos padres atentam contra a<br />

56 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal… Op. cit., p. 297.<br />

57 Sobre este assunto ver o livro de Ronaldo Vainfas: VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios. São Paulo:<br />

Companhia das Letras, 1996.<br />

58 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal… Op. cit., p. 297.<br />

59 Ibid., p. 310-311.<br />

60 Ibid., p. 311.<br />

61 Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech… Op. cit., p. 149.<br />

62 NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal… Op. cit., p. 296.<br />

63 Ibid., p. 299.


eligião crista, sendo que outros costumes que os índios possuíam eram utilizados pelos<br />

padres, logicamente recebendo algumas adaptações, em prol da conversão do gentio. Os<br />

padres também controlavam os índios:<br />

143<br />

“(…) a obediência que tem é muito para louvar a Nosso Senhor, porque não vão fora sem pedir licença,<br />

porque lho temos assim mandado por sabermos aonde vão, pêra que não vão comunicar, ou comer carne<br />

humana, ou embebedar-se a alguma Aldeia longe; e se algum se desmanda é preso e castigado pelo seu<br />

meirinho, e o Governador faz deles justiça como de qualquer outro cristão e com maior liberdade” 64 .<br />

Ainda existem os costumes ou como Nóbrega se refere, pecados ensinados aos índios<br />

pelos colonos. O principal desses seria que os cristãos (colonos) ensinaram ao “gentio a<br />

furtar-se a si mesmos e venderem-se como escravos” 65 ou, como ocorreu na Bahia, Ilhéus e<br />

Porto Seguro, onde os índios aliados foram ensinados a não se venderem, mas a vender os do<br />

“sertão que vem ao mar fazer sal, os salt<strong>ea</strong>ssem e os vendessem e assim praticaram porque a<br />

rapina lhes parece bem à rapina que os cristão lhes ensinaram” 66 .<br />

5 – O que o autor relata em relação às doenças que grassavam na Brasil?<br />

Com relação às doenças, Nóbrega não descreve nenhuma através de uma designação<br />

(nome), também não relata sintomas dessas doenças, com uma única exceção, que se refere ao<br />

episódio em que relata que o padre João Gonçavez ao ir pregar em uma aldeia, batizar as<br />

crianças e rezar a missa no dia de Nossa Senhora, acabou pegando uma grande febre da qual<br />

veio a falecer 67 .<br />

Com relação aos índios, diz que alguns “vinham pedir-nos saúde; outros nos rogavam<br />

lhes não deitássemos a morte, com medo de nós, porque a eles parecia-lhes que lançávamos a<br />

morte” 68 , desse modo alguns índios não deixavam os padres irem a suas aldeias para<br />

pregarem, para tanto queimavam sal e pimenta, de modo que os padres não podiam adentrar<br />

em suas aldeias, por causa da fumaça que a queima dessa mistura provocava. Já outros índios,<br />

ficam em grande gratidão com os padres, pois estes evitavam com suas orações a morte de<br />

alguns índios, como na caso da filha de um chefe, que se encontrava muito doente, e que o<br />

chefe a levou aos padres para estes darem a ela saúde, sendo que com as orações, ela dentro<br />

de poucos dias estava recuperada 69 .<br />

64<br />

Ibid., p. 296.<br />

65<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. A Tomé de Sousa, Portugal… Op. cit., p. 326.<br />

66<br />

Ibid., p. 327.<br />

67<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal… Op. cit., p. 305-306.<br />

68<br />

Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech… Op. cit., p. 143.<br />

69 Ibid., p. 147.


Também relata que nas aldeias onde os jesuítas frequentemente visitavam, os índios<br />

tinham o costume (obrigação) de chamar os padres e que os índios doentes “é de nos curado e<br />

remediado assim no corpo como na alma o melhor que podemos, e assim poucos morrem que<br />

não sejam batizados no artigo da morte, quando eles amostram sinais de fé e de contrição, e<br />

assim destes como dos inocentes regenerados com a água do batismo se salvam muitos” 70 .<br />

Vemos que as doenças tinham uma presença constante na vida e no trabalho dos<br />

jesuítas, quer estejam grassando entre os indígenas – o que era mais comum, principalmente<br />

quando a prática dos ald<strong>ea</strong>mentos foi posta em prática – que entre os próprios padres, sendo<br />

que a esse respeito, Nóbrega, diz que o ano de 1559: “Foram este ano tantas doenças e<br />

trabalhos que ouve nesta casa que não saberei contar, porque todos os Padres achegarão as<br />

portas da morte (…)” 71 .<br />

6 – Map<strong>ea</strong>mento étnico feito pelo autor:<br />

As cartas de Nóbrega gravitam em torno da obra missionária, por isso Nóbrega<br />

descreve as etnias indígenas que são contatadas com essa finalidade. Logo ao aportar na Bahia<br />

no ano de 1549, Nóbrega relata que na incipiente povoação que lá existia, colonos e índios<br />

conviviam em paz, sendo esses índios amigos de Diogo Álvares, o Caramuru, sendo então da<br />

etnia tupinambá (1). Sobre esses índios, diz que comiam carne humana, faziam guerra, e que<br />

os padres trabalhavam, no sentido de “saber [aprender] a língua deles e nisto o padre Navarro<br />

nos leva vantagem a todos” 72 , sendo por isso que Nóbrega disse “trabalhei por tirar em sua<br />

língua as orações e algumas práticas de Nosso Senhor e não posso achar língua que l’o saiba<br />

dizer, porque são eles tão burros que nem vocábulos têm” 73 , pois não sabia ainda a língua<br />

nativa, pois esta ainda não se encontrava compilada.<br />

Andando pelo sertão, Nóbrega diz que “achávamos muita diferença de negros<br />

[índios]” 74 , porém não cita nenhuma etnia indígena durante suas andanças pelo sertão. Quanto<br />

aos índios que comeram o bispo Sardinha, os chama de caetés (2), sendo que por causa dessa<br />

ação, eles sofreram, mas não imediatamente, um grande agravo do governador.<br />

Cita as experiências do Peru e do Paraguai, sendo que neste último, com poucos<br />

homens os castelhanos construíram uma cidade cristã – Assunción – no meio do gentio<br />

70<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal… Op. cit., p. 296-297.<br />

71<br />

Ibid., 307-308.<br />

72<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Carta ao padre mestre Simão Rodrigues… Op. cit., p. 48.<br />

73<br />

Ibid., p. 48-49.<br />

74<br />

Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech… Op. cit., p. 150.<br />

144


denominado de carijó (3), selando com eles as pazes, sendo que os que descumprem essa paz<br />

são punidos. 75<br />

Mostra a força de persuasão do Governador Mem de Sá, com o fato de que numa<br />

região da Bahia, encontravam-se aldeias de índios principais, Tubarão e Mirangaoba muito<br />

perto uma da outra e que por esse motivo viviam em cruelíssima guerra, se matando e<br />

comendo uns aos outros a cada dia que passava. E que por esse motivo não era possível lhes<br />

ensinar nenhuma doutrina. Nisso o Governador emitiu uma ordem para que se ajuntassem em<br />

um assentamento, mandando-lhes não guerr<strong>ea</strong>r, mas também deu a notícia de que não queria<br />

que fossem amigos, de modo que eles obedeceram e depois de juntos “tendo contentamento<br />

do bem da paz, não quiseram mais guerr<strong>ea</strong>r, nem tampouco estão amigos” 76 . Contudo,<br />

Nóbrega não cita de que etnia eram esses índios, porém por estarem sempre em guerra deviam<br />

ser de etnias diferentes, mas ao que parece, ambas pertenciam ao grupo tupi.<br />

Na região de São Vicente, diz que existem índios tupiniquins – topinachins – (4), que<br />

não se vendiam como escravos aos portugueses, sendo que os colonos de São Vicente<br />

conseguiam no Rio de Janeiro, do “gentio do Gato muitas fêm<strong>ea</strong>s que pediam por mulheres<br />

dando a seus pais algum resgate, mas elas ficavam escravas para sempre” 77 . Ainda sobre os<br />

tupiniquins diz que eles também habitavam as capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, contudo<br />

também existiam nessas capitanias índios da etnia dos tamoios (5) e dos aimorés (6) 78 .<br />

Sobre os índios do Gato, diz que seu principal se chamava Maracajáguaçu (Grande<br />

gato) e que originalmente habitavam o Rio de Janeiro, sendo que tiveram guerra contra os<br />

tamoios e a perderam, sendo que para não serem massacrados, pediram ajuda aos portugueses<br />

e se transferiram para o Espírito Santo por um tempo, porém depois de algum tempo,<br />

voltaram ao Rio de Janeiro junto dos portugueses para dar combate aos tamoios e seus aliados<br />

franceses. Os índios do gato são da etnia temiminós (7), sendo grandes aliados dos<br />

portugueses, ajudando-os a derrotar a Confederação dos Tamoios e a expulsar os franceses do<br />

Rio de Janeiro, sob a chefia de Araribóia. 79<br />

Nóbrega também cita a etnia Papaná (8): “como a alma do vosso escravo Papaná” 80 .<br />

Segundo Serafim Leite, esta etnia habitava o sul da capitania do espírito santo e teriam<br />

comunicação pelo Rio Paraíba com o interior da Capitania de São Vicente, em princípios de<br />

75<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres. Lisboa… Op. cit., p. 285.<br />

76<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. A Tomé de Sousa, Portugal… Op. cit., p. 337.<br />

77<br />

Ibid., p. 326.<br />

78<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Diálogo sobre a Conversão do Gentio… Op. cit., p. 236.<br />

79 Ibid., p. 219/220.<br />

80 Ibid., p. 234.<br />

145


1555 os índios do Principal de Piratininga Martim Afonso Tibiriçá “cativaram um índio<br />

papaná que o mesmo principal queria matar em terreiro, impedindo-lho os jesuítas” 81 .<br />

7 – Com relação ao maravilhoso, a zoologia e a geográfica fantástica. O que o autor descreve?<br />

Sobre a zoologia fantástica e a geografia fantástica, Nóbrega não relata nada, pois não<br />

descreve nenhum animal fantástico, ou reencontra algum animal místico já conhecido na<br />

literatura européia, como também não faz nenhuma referência a reinos lendários, mesmo que<br />

sejam eles cristãos, como seria o caso do reino do Preste João.<br />

Com relação ao maravilhoso, Nóbrega não se utiliza dele, no sentido de relatar<br />

façanhas fantásticas, muito menos para descrever riquezas extraordinárias, mas no sentido de<br />

narrar às manifestações do poder de Deus, os milagres por ele r<strong>ea</strong>lizados, por intermédio da<br />

obra jesuíta e mostrar que Deus estava ao lado dos padres, como no trecho abaixo:<br />

146<br />

“A nosso pouco saber, ajudou Nosso Senhor, por que passamos a gente por várias vezes com uns paus<br />

de jangadas (barcos) que ajuntávamos e atamos com as cordas dos leitos que levamos para dormir, e<br />

assim passamos a boca de um rio que entra no mar, que era mais mar o do que rio, ao presente muito<br />

perigoso, segundo nos contaram depois, que aconteciam muitos desastres” 82 .<br />

Ou quando se diz perdido, em uma de suas andanças pelo sertão no ano de 1552: “sem<br />

acertar com o caminho, até que ao fim fomos dar a uma baixa de trás de um rio Matuim onde<br />

nos atolávamos até os joelhos, e tudo, por onde andamos, cheio de ostras, o que bastaria para<br />

cortar-nos as pernas se Deus não estivesse conosco” 83 . Também relata que “uma criança<br />

esteve morta, chorada de seu pai e mãe, e, estando para espirar, foi batizada do Irmão e logo<br />

sarou, de que todos ficarão espantados e muito edificados e com crédito o batismo” 84 . Há um<br />

relato sobre possessão, este ocorreu segundo Nóbrega, na mesma aldeia – Espírito Santo –<br />

onde o Padre João Gonçalvez pegou a febre, da qual veio a falecer tempos mais tarde. Nesta<br />

aldeia um dos meninos:<br />

“(…) foi arrebatado do espírito maligno, segundo que todos julgamos pelos sinais que fez naquela ora e<br />

três dias contínuos; e ele mesmo como assombrado das visões que via, bramava e não queria estar senão<br />

com os olhos tapados, dizendo que via demônios, e foi muito cruelmente atormentado de tal maneira<br />

que parecia que morria, e tornei a batizá-lo e sarou pela misericórdia de Nosso Senhor” 85 .<br />

81<br />

Ibidem.<br />

82<br />

Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech… Op. cit., p. 146.<br />

83<br />

Ibid., p. 151.<br />

84<br />

NÓBREGA, Pe. Manuel da. Ao P. Miguel de Torres e Padres de Portugal… Op. cit., p. 309.<br />

85 Ibid., p. 309-310.


Podemos afirmar que Nóbrega não aproxima nenhuma dessas categorias que marcam a<br />

literatura sobre o período das grandes navegações, da descoberta e conquista do Novo Mundo,<br />

com a descrição – muito sucinta – que faz da prática antropofágica (Nóbrega presencia a<br />

prática antropofágica no Brasil no terceiro quarto do século XVI). Ou seja, Nóbrega não<br />

procura nenhum vestígio já existente/conhecido para explicar/narrar à prática antropofágica,<br />

mas também não a descreve, e quando faz isso, não a procura entender, porque essa prática<br />

indígena vai contra o motivo que o trouxe ao Brasil, a conversão do gentio ao cristianismo.<br />

8 – O autor faz alguma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena?<br />

Nóbrega não faz nenhuma ligação entre a cosmologia indígena e a prática<br />

antropofágica. Ele não cita nenhuma concepção indígena sobre a matança em terreiro,<br />

relacionando esse tipo de morte a morte id<strong>ea</strong>l, que era almejada pelos guerreiros. Ele descreve<br />

a morte de índios como se fossem europeus, pois estes estavam na hora de morrer, chamando<br />

por Deus em vez de estarem se vangloriando dos feitos de sua tribo e que a sua morte seria<br />

vingada por seus amigos.<br />

9 – O autor faz algum confronto entre a sua visão de morte e a visão de morte dos indígenas?<br />

Nóbrega não faz nenhuma comparação entre sua visão de morte com a visão de morte<br />

indígena, pois não faz nenhuma referência à visão que os índios tinham da morte, ou seja, não<br />

descreve nada sobre o além indígena. Quanto a sua visão de morte, Nóbrega ao pregar em<br />

uma aldeia, dizia aos índios que “cumpriam as coisas de Deus, que lhe ensinávamos, as quais<br />

davam para sempre vida nos céus, e que os maus, que morriam, iam para o inferno a arder<br />

com os diabos, o que lhes metia grande medo e espanto” 86 , ou seja, Nóbrega traz uma visão<br />

cristã bipartida, sendo que suas ações na terra definiram o seu destino: Céu ou Inferno.<br />

Nóbrega, quando narra à morte do bispo Sardinha, Nóbrega traz uma visão (concepção)<br />

gloriosa da morte cristã, especialmente para os padres, o martírio:<br />

147<br />

“(…) que fugindo ele dos gentios e da terra, tendo poucos desejos de morrer em suas mãos, fosse<br />

comido deles, e a mim que sempre o desejei e pedi a Nosso Senhor, e metendo-me nas ocasiões mais<br />

que ele, me foi negado. O que eu nisto julgo, posto que não fui conselheiro de Nosso Senhor, é que<br />

quem isto fez, porventura quis pagar-lhe suas virtudes e bondades grande, e castigar-lhe juntamente o<br />

descuido e pouco zelo que tinha da salvação do gentio. Castigou-o, dando-lhe em pena a morte que ele<br />

não amava, e remunerou-o em ela ser tão gloriosa como já contariam a V. M. que ela foi, pois em poder<br />

dos infiéis e com tantas boas circunstâncias como teve” 87 .<br />

86 Sem Autor. Carta dos Meninos do Colégio de Jesus da Baía ao P; Pedro Domenech… Op. cit., p. 150.<br />

87 NÓBREGA, Pe. Manuel da. A Tomé de Sousa, Portugal… Op. cit., p. 319-320.


Comparação entre os Cronistas Leigos – Knivet e Staden – e os Cronistas<br />

Religiosos – Anchieta e Nóbrega<br />

Após estruturar a concepção de cada cronista separadamente dentro dos pontos<br />

propostos, vamos comparar essas concepções de modo a verificar se existe ou não<br />

diferença(s) entre os quatro <strong>cronistas</strong> analisados: os <strong>leigos</strong> Hans Staden (alemão) e Anthony<br />

Knivet (inglês) e os <strong>religiosos</strong> que pertenciam a Companhia de Jesus Pe. José de Anchieta<br />

(português) e Pe. Manuel da Nóbrega (jesuíta). Mesmo não comparando esses <strong>cronistas</strong> em<br />

bloco, um leigo e um religioso, as diferenças e semelhanças que surgirem na comparação de<br />

suas concepções, pode indicar, não apenas a diferença que existe entre esses <strong>cronistas</strong>, mas<br />

uma tendência no modo de descrever a prática antropofágica e ritos circundantes por parte<br />

desses e de outros <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>.<br />

Sobre o modo como esses <strong>cronistas</strong> vieram à América portuguesa, na qual vislumbram<br />

a prática antropofágica que posteriormente descreveram em seus relatos, temos que: Staden,<br />

embora tenha vindo em sua primeira viagem ao Brasil, não tinha por objetivo em sua segunda<br />

viagem vir ao Brasil, ficou por contingência de um naufrágio na altura de Santa Catarina;<br />

Knivet ao acompanhar Cavendish em sua segunda viagem, não tinha por objetivo ficar no<br />

Brasil, mas por seu estado debilitante, foi deixado no Brasil para morrer, na ilha de São<br />

Sebastião (Rio de Janeiro); Nóbrega e Anchieta vieram ao Brasil com o objetivo de converter<br />

os indígenas à religião cristã, sendo que Nóbrega, além de integrar, chefiou a primeira leva de<br />

jesuítas que vieram ao Brasil, enquanto Anchieta veio ao Brasil na terceira leva de jesuítas –<br />

Nóbrega veio ao Brasil já ordenado padre, enquanto Anchieta veio ao Brasil na condição de<br />

irmão (noviço), sendo ordenado padre após alguns anos de estada (trabalho missionário) no<br />

Brasil – na Bahia no ano de 1565.<br />

As circunstâncias (motivo) que levaram cada um desses <strong>cronistas</strong> a vislumbrar o ritual<br />

antropofágico são diferentes para cada um deles: Staden vislumbrou esse costume quando se<br />

encontrava como prisioneiro dos tupinambás; Knivet vislumbrou esse costume quando se<br />

encontrava como prisioneiro dos tamoios e quando participou de uma expedição bélica contra<br />

os petiguaras; Nóbrega e Anchieta vislumbraram esse costume indígena quando tentavam<br />

evitar a morte desses prisioneiros. Com relação ao período que esses <strong>cronistas</strong> vislumbraram<br />

essa prática indígena, temos que: Staden presenciou a prática antropofágica em m<strong>ea</strong>dos do<br />

século XVI; Nóbrega presenciou a prática antropofágica no terceiro quarto do século XVI;<br />

Anchieta presenciou a prática antropofágica na segunda metade do século XVI; Knivet<br />

presenciou a prática antropofágica na última década do século XVI.<br />

148


1 – Com relação à prática antropofágica:<br />

a) Como o autor descreve (narra) o ritual antropofágico?<br />

Encontra-se nas descrições que os quatro <strong>cronistas</strong> analisados – Staden, Nóbrega,<br />

Knivet e Anchieta – apresentam em suas obras, sobre o ritual antropofágico, diferenças e<br />

semelhanças, sendo que as diferenças que existem entre essas descrições são mais<br />

significativas que as semelhanças, pois essas diferenças mostram de que forma esses <strong>cronistas</strong><br />

presenciaram a cerimônia antropofágica, como também qual era o intuito que esses <strong>cronistas</strong><br />

tinham ao descrever o ritual antropofágico.<br />

Quanto à descrição do ritual antropofágico, temos que: Staden descreve-o<br />

pormenorizadamente em duas oportunidades. Em ambas às vezes o prisioneiro destinado à<br />

morte em terreiro era de origem indígena. No primeiro caso Staden descreve a morte de um<br />

prisioneiro de guerra com minúcias, desde o início da preparação do festim, o qual se inicia<br />

quando os índios trazem algum prisioneiro para sua aldeia, passando pela execução do<br />

prisioneiro em terreiro (ponto alto é a descrição do diálogo que é travado entre o algoz e a<br />

vítima) e o modo como os índios preparavam e distribuíam a carne do morto para o consumo<br />

– Staden percebe que existiam regras para a distribuição da carne do prisioneiro morto. O<br />

segundo caso refere-se à morte não de um prisioneiro de guerra, mas de um índio carijó que<br />

vivia entre os tupinambás, o qual ficou doente e como não mostrava sinais de melhora, sendo<br />

seu estado cada vez mais debilitante, foi morto pelos tupinambás, mas sem as mesmas<br />

cerimônias, sua carne foi consumida, com exceção da cabeça e das tripas. O motivo dessas<br />

mortes que levam ao consumo de carne humana, segundo Staden: é a hostilidade e o grande<br />

ódio que os índios têm por seus inimigos. Dessa forma pode-se dizer que Staden tem uma<br />

visão pragmática do ritual antropofágico, pois não apresenta a morte do prisioneiro em<br />

terreiro, como simples modo de os índios comerem carne humana para saciar seu apetite, mas<br />

como um ritual altamente organizado, cheio de regras que deviam ser obedecidas, cujo<br />

sentido/significado era muito forte (importante) para os indígenas, sendo que o propósito<br />

dessa morte ultrapassa a questão do consumo da carne do prisioneiro/inimigo morto; Knivet<br />

descreve-o pormenorizadamente em duas oportunidades. Contudo no primeiro caso o<br />

prisioneiro(s) morto(s) é (são) europeu(s) e no segundo caso é de origem indígena. No<br />

primeiro caso Knivet descreve a morte de doze portugueses, os quais não foram capturados<br />

em guerra, mas se entregaram junto com Knivet aos índios tamoios quando voltavam de uma<br />

expedição bélica malograda, por uma rota diferente do grupo principal. Nesse caso Knivet não<br />

descreve nada sobre a preparação para o festim, em compensação descreve com detalhes a<br />

149


morte do prisioneiro em terreiro, enfatizando o diálogo travado entre a vítima e o matador,<br />

também descreve com detalhes o modo como os índios preparavam o corpo do prisioneiro e o<br />

destrinchavam, sendo que cada parte do corpo era dado a um grupo (mulheres, crianças,<br />

homens e etc.), ou seja, Knivet também descreve regras para a distribuição do corpo do<br />

prisioneiro. O segundo caso descrito por Knivet refere-se à morte de um prisioneiro de guerra<br />

indígena. Nesse caso, Knivet relata de maneira sucinta alguns preparativos antes da execução<br />

do prisioneiro, passando a narrar (novamente), com grandes detalhes a morte do prisioneiro<br />

em terreiro e o modo como preparavam e consumiam a carne do prisioneiro morto, além<br />

disso, atribuí a esse ato uma significação, pois diz que os índios acreditavam que a carne<br />

humana os torna fortes e valentes (absorção/incorporação das características do morto). Pode-<br />

se dizer que Knivet também têm uma visão pragmática da antropofagia, pois em nenhum dos<br />

dois casos que descreve pormenorizadamente, ele descreve tal ritual com requintes de<br />

crueldade ou diz que tal ato vai contra a natureza humana. Ao contrário do que descreve dos<br />

portugueses, embora esses não comessem carne humana, ele comumente aponta para a<br />

crueldade com que os portugueses tratavam os indígenas (também os escravos africanos);<br />

Nóbrega descreve o ritual antropofágico pormenorizadamente em apenas uma ocasião<br />

(levando em conta, apenas as suas cartas que foram objeto de análise neste trabalho), sendo<br />

que o prisioneiro(s) executado(s) é (são) de origem indígena. Nesse caso, Nóbrega não relata<br />

nada acerca da preparação da matança, apenas que tentou evitá-la, mas não consegui, pois os<br />

índios tinham convidados seus parentes e amigos (aliados) e que estes já se encontravam no<br />

local. Também pede para batizar os prisioneiros, o que lhe é negado sob a alegação dos índios<br />

de que, se os prisioneiros fossem batizados, os que comessem de sua carne morreriam –<br />

embora os índios vigiassem os prisioneiros, Nóbrega conseguiu batizá-los com um pano/lenço<br />

molhado em água benta. Durante a matança em terreiro, Nóbrega relata que os índios pediram<br />

que fossem postos às vistas do padre Nóbrega, para que este encomendasse suas almas para o<br />

céu, sendo que os índios receberam os golpes de maça de joelhos com as mãos levantadas<br />

para o céu chamando pelo nome de Jesus. Nóbrega não relata nada sobre o modo como<br />

preparavam e distribuíam a carne do morto, sua descrição se encerra quando os índios<br />

recebem a pancada na cabeça, não a cena (descrição) do consumo de sua carne. Desse modo<br />

podemos dizer que o Nóbrega não relata a prática antropofágica pormenorizadamente, não<br />

porque não quer, ou porque não o tenha visto, pois temos que ele esteve presente em um<br />

desses rituais e viu como os prisioneiros eram mortos, mas porque isso não lhe interessava<br />

narrar, pois esse ritual ia contra o seu objetivo que era converter os índios ao cristianismo,<br />

sendo que para tal fim, Nóbrega dizia que era necessário extirpar alguns costumes dos índios,<br />

150


sendo que a prática antropofágica era um deles, por isso ele não se preocupa em narrar tal<br />

costume, mas logo após dizer que os índios comiam carne humana ele se refere a que era<br />

necessário proibir, sujeitar e punir os índios que praticavam tal ato; Anchieta descreve o ritual<br />

antropofágico com detalhes duas vezes, sendo que em ambas às vezes ele narra à morte de<br />

indígenas. Anchieta não traz detalhes sobre o primeiro caso que descreve, apenas diz que os<br />

índios tinham o costume de convidar as tribos aliadas para estas participarem do repasto<br />

canibal, de resto não diz quase nada, apenas que tentou evitar a matança, mas não conseguiu<br />

por causa de um índio infiel e ainda por cima incitado por algumas velhas, que para ganhar<br />

um nome e as honras que tal morte confere matou o prisioneiro, mas nem tudo estava perdido,<br />

pois o prisioneiro tinha sido batizado – por isso sua alma estava salva. Anchieta sintetiza essa<br />

descrição quando descreve que os índios fizeram as festas como é costume. Esse caso<br />

apresenta um dado peculiar, pois o prisioneiro destinado ao ritual antropofágico é um menino<br />

de três anos de idade! O qual Anchieta não especifica se fora capturado em uma expedição<br />

guerreira, ou se era filho de algum prisioneiro, pois os índios concebiam o filho de um<br />

prisioneiro, mesmo que gerado por uma mulher da tribo, como um inimigo, que tinha o<br />

mesmo destino de seu pai, a morte ritual, que podia dar-se logo ao nascer ou algum tempo<br />

depois, como parece ser o caso. Anchieta descreve o segundo caso, com mais detalhes no que<br />

concerne aos aspectos do ritual antropofágico que dizem respeito, a preparação do ritual e à<br />

morte do prisioneiro, que nesse caso era um menino de quinze anos de idade, o que não<br />

chama tanto a atenção, pois geralmente entre quatorze e dezesseis anos, os meninos eram<br />

iniciados na vida adulta. Novamente Anchieta relata que mesmo não conseguindo evitar a<br />

matança, a alma dele estava salva, pois tinha sido batizado. Com relação ao consumo da carne<br />

do prisioneiro, Anchieta não descreve nada, a sua descrição do ritual antropofágico acaba<br />

quando a cabeça do prisioneiro é quebrada, findo isso, os índios se retiram e os padres entram<br />

em ação, levando o corpo do morto para ser enterrado na Igreja. Dessa forma, podemos dizer<br />

que Anchieta, descreve o ritual antropofágico de forma pragmática, pois não apresenta a<br />

morte do prisioneiro, como simples modo dos índios comerem carne humana, na verdade, as<br />

descrições que Anchieta faz pormenorizadamente, trazendo detalhes do ritual antropofágico,<br />

não acabam com os índios destrinchando o corpo do inimigo e ingerindo sua carne, mas<br />

quando estes quebram a cabeça do prisioneiro. Embora Anchieta descreva que os índios se<br />

sentem honrados por ter este tipo de morte, a qual consideram gloriosa, sendo que o matador<br />

ganha um novo nome e insígnias de honra, que se constituem em marcas na própria pele, não<br />

descreve nenhum motivo do por que os índios estimavam tanto este tipo de morte.<br />

151


A partir dessa explanação, pode-se dizer que são quatro as principais diferenças que<br />

existem entre as descrições dos <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> – Staden e Knivet – e dos <strong>religiosos</strong> –<br />

Nóbrega e Anchieta –, sendo que mesmo entre eles, ou seja, entre Staden e Knivet e entre<br />

Anchieta e Nóbrega, há diferenças entre as descrições – cada um deles enfatiza mais, um<br />

aspecto deste ritual. Essas diferenças referem-se mais a ocultação, ou seja, a não descrição dos<br />

padres de certos detalhes da cerimônia, não porque eles não tenham visto tais detalhes, mas<br />

porque não lhes interessava em narrar.<br />

A primeira diferença notada refere-se que os padres não relatam quase nada sobre o<br />

que acontece antes da morte em terreiro ao contrário dos <strong>leigos</strong> que detalham as cerimônias de<br />

preparação para a morte do prisioneiro; a segunda diferença refere-se que os <strong>religiosos</strong> não<br />

descrevem nada sobre os acontecimentos depois da morte do prisioneiro, ou seja, a preparação<br />

e o consumo do corpo do prisioneiro, ao contrário dos <strong>leigos</strong> que descrevem a consumo do<br />

morto com detalhes, inclusive apresentado regras para a distribuição e o consumo de sua<br />

carne; a terceira diferença existente refere-se que os padres não citam nenhum motivo para os<br />

índios matarem e consumirem a carne dos prisioneiros, ao contrário dos <strong>leigos</strong> que relatam<br />

que os índios procedem dessa forma, não para consumir carne humana, mas por grande<br />

hostilidade de seus inimigos (vingança); a quarta diferença refere-se à morte em si, pois os<br />

padres a descrevem de forma simples sem toda aquela pompa, apenas descrevendo que os<br />

índios trazem as vítimas para terreiro, onde lhes era quebrada a cabeça com um grande pau,<br />

ao contrário dos <strong>leigos</strong> que a descrevem detalhadamente, mostrando que ela era uma<br />

cerimônia altamente ritualizada e organizada, principalmente num de seus aspectos centrais<br />

que é o diálogo travado entre vítima e matador, o qual perpetua e renova o ciclo de vingança.<br />

b) Há referência à antropofagia funerária?<br />

A procura de referências sobre a antropofagia funerária nesses relatos, revelou que três<br />

desses quatros <strong>cronistas</strong>, a saber, Staden, Anchieta e Nóbrega não fazem referência alguma,<br />

nem mesmo apresentam um indício da existência da prática desse tipo de antropofagia entre<br />

os indígenas brasileiros, nem entre tupis nem entre tapuias. Em contrapartida, Knivet, mesmo<br />

não se referindo diretamente a prática da antropofagia funerária, nos apresenta um forte<br />

indício de sua existência/prática entre os indígenas designados de tapuias.<br />

Esse indício aparece quando Knivet descreve uma tribo indígena na região da Bahia,<br />

que ele chama de mariquitás, e relata que outros índios os chamam de tapuias, mas ele não diz<br />

que índios eram esses, a qual tribo (etnia) pertenciam, sendo que podemos aventar que eram<br />

152


índios tupinambás. Sobre os mariquitás, Knivet diz que sua língua difere de todos os outros,<br />

que eles não possuem moradia, e por isso vagueiam pelo sertão como animais ferozes, entre<br />

outras características que encaixam nas descrições dos índios que pertencem ao tronco macro-<br />

jê, os quais nesse período eram chamados de tapuias pelos índios de língua tupi e pelos<br />

portugueses. Sobre a prática da antropofagia (canibalismo), Knivet diz que eles comiam carne<br />

humana, mas que quando faziam isso, não usavam as mesmas cerimônias que os petiguaras,<br />

ou seja, mesmo que Knivet não descreva se esses índios comem a carne de um prisioneiro de<br />

guerra (exocanibalismo) ou de um parente morto (endocanibalismo), o fato de Knivet<br />

comparar e dizer que o modo que esses índios comem carne humana difere dos petiguaras, um<br />

grupo que pertence ao tronco tupi-guarani e que praticava a antropofagia guerreira – o próprio<br />

Knivet narra em seu relato como os petiguaras matam um prisioneiro de guerra –, nos faz<br />

pensar que esses índios praticavam a antropofagia funerária, pois esta é atribuída por grande<br />

parte da historiografia aos índios alcunhados de tapuias, os quais devoravam seus mortos e<br />

não prisioneiros de guerra, pois achavam que seu estômago era melhor sepultura para seus<br />

parentes e amigos do que a terra.<br />

c) Existe referência à participação de elementos não indígenas, ou seja, europeus, no ritual<br />

antropofágico, mas sem ser no papel de vítima?<br />

Os relatos de Knivet e Anchieta não trazem nenhuma descrição de participação de um<br />

europeu no ritual antropofágico a não ser no papel de vítima, nem mesmo como expectadores,<br />

com exceção de ambos, sendo que Knivet se encontrava na posição de prisioneiro dos tamoios<br />

enquanto estes matavam os portugueses que o estavam acompanhando e Anchieta estava<br />

cumprindo o seu papel de tentar salvar os índios, e se não pudesse, pelo menos salvar suas<br />

almas, batizando os cativos destinados ao ritual antropofágico. Em contrapartida, nos relatos<br />

de Staden e Nóbrega, temos descrições que apontam para a participação de europeus no ritual<br />

antropofágico não sendo na condição de vítima, sendo que também, excluí-se a participação<br />

como expectadores de Staden e Nóbrega, os quais participaram do ritual pelos mesmos<br />

motivos de Knivet e Anchieta respectivamente.<br />

Contudo há uma diferença entre a descrição de ambos. Na de Staden, mesmo não<br />

ficando claro, podemos dizer que os europeus (franceses) participavam do ritual<br />

antropofágico com a finalidade de forjar uma aliança com os índios tupinambás, sendo que<br />

ambos tinham o mesmo inimigo comum, o qual se personifica na figura do português. Não se<br />

pode dizer, se esses europeus, apenas participavam da festividade ou se eles também comiam<br />

153


a carne do inimigo executado, desse modo, a participação deles nesse ritual possuí o mesmo<br />

sentido do convite que os índios faziam para seus aliados, ou seja, para forjar alianças. Já<br />

Nóbrega é enfático ao relatar, não apenas a participação de europeus (colonos portugueses),<br />

como expectadores no ritual antropofágico, mas também a participação deles como matadores<br />

a moda gentílica, inclusive ganhando nomes tal como manda o costume indígena. Quanto à<br />

questão desses europeus comerem ou não a carne dos inimigos (índios) mortos, Nóbrega diz<br />

que a grande maioria deles não comia, mas davam-na a seus escravos, embora relate que já se<br />

achou cristão mastigando a carne humana, mas não diz que era para comer, mas para dar bom<br />

exemplo ao gentio, pois achavam que a prática dos índios comerem-se uns aos outros era de<br />

grande importância para a segurança da colônia.<br />

2 – Com relação às guerras indígenas, como o autor se referência a elas?<br />

Contata-se uma diferença no modo de descrever as guerras indígenas entre os relatos<br />

de Staden e Knivet (<strong>leigos</strong>) e de Nóbrega e Anchieta (<strong>religiosos</strong>), embora a descrição entre<br />

esses <strong>cronistas</strong> também apresente diferença, pois cada cronista enfatiza um dado diferente que<br />

se refere à guerra empreendida pelos indígenas. Com relação aos <strong>religiosos</strong>, temos que,<br />

embora tenham participado de algumas expedições militares, como a que Mem de Sá<br />

empreendeu contra os franceses na Guanabara, Nóbrega e Anchieta, não descrevem o modo<br />

de guerr<strong>ea</strong>r dos indígenas no campo de batalha, nem a maneira como os índios se preparavam<br />

para ir à guerra, mas também não contestam a racionalidade das guerras indígenas. Com<br />

relação à finalidade (objetivo) e ao motivo dessas guerras, temos que: Nóbrega relata que as<br />

guerras empreendidas pelos indígenas tinham por finalidade (objetivo) capturar prisioneiros<br />

para executá-los no ritual antropofágico, sobre o motivo dessas guerras, Nóbrega não relata o<br />

motivo das guerras inter-tribais – vingança –, apenas relata o motivo que levava os índios a<br />

empreender guerra contra os portugueses, sendo este os maus tratos que os portugueses<br />

infringiam aos nativos; Anchieta descreve que os índios canalizavam todos os seus esforços<br />

para a guerra, ou seja, ele percebe que a guerra tinha uma importância para os índios, e<br />

também que a finalidade das expedições não era apenas dar combate a seus inimigos, mas<br />

para fazer cativos, sendo que esses prisioneiros de guerra constituíam a maior honra que um<br />

índio podia conseguir em campo de batalha, cujo destino seria a morte em terreiro para que<br />

seu captor ganhasse um novo nome – o qual era signo de honra e prestígio entre os índios.<br />

Sobre o motivo dessas guerras, Anchieta não descreve nem o motivo das guerras inter-tribais,<br />

nem contra os portugueses.<br />

154


Já com relação aos <strong>leigos</strong>, temos que Knivet, apensar de ter participado de inúmeras<br />

expedições bélicas e de apresamento contra os indígenas, de ter lutado ao lado dos indígenas<br />

contra outros indígenas, mas também contra os portugueses, pouco relata o modo de guerr<strong>ea</strong>r<br />

indígena, muitas vezes, apenas se reporta ao número de componentes dessas expedições, ou<br />

ao número de cativos feitos. Quando descreve o modo de guerr<strong>ea</strong>r indígena, ele não descreve<br />

como os índios se preparavam para a guerra, contudo relata o modo como eles combatiam no<br />

campo de batalha, sendo que neste, Knivet vê uma total desorganização, onde os índios<br />

simplesmente se atiravam como “touros” contra seus inimigos. Embora Knivet não veja<br />

nenhuma organização nas guerras indígenas, ele não contesta sua racionalidade, sendo que em<br />

nenhum momento de seu relato, é descrito o motivo dessas guerras, nem mesmo descreve a<br />

finalidade (objetivo) dessas guerras, mesmo reportando que ao final de cada guerra existia<br />

uma quantidade exagerada de prisioneiros, sendo que todos seriam destinados ao repasto<br />

canibal; Staden também pouco relata o modo de guerr<strong>ea</strong>r indígena em campo de batalha, mas<br />

em contrapartida relata pormenorizadamente o modo como eles se preparam para a execução<br />

de uma expedição guerreira – desde o anúncio de uma expedição militar, passando por seus<br />

preparativos, tanto alimentares, quanto materiais (confecção de armas, meio de transporte<br />

como canoas) até chegarem à aldeia inimiga, inclusive a volta dessa expedição guerreira e o<br />

modo como os índios tratavam os prisioneiros que faziam em guerra. Staden é enfático<br />

quando descreve os motivos que levam os índios a empreender guerras, sendo este a pura e<br />

simples hostilidade com os inimigos – vingança. Com relação à finalidade dessas guerras,<br />

Staden relata que os índios a empreendiam com o intuito de fazer prisioneiros (cativos), os<br />

quais eram destinados ao ritual antropofágico.<br />

3 – O autor descreve algum mito indígena? Se sim, qual e como o descreve?<br />

Sobre os mitos indígenas citados nas obras dos quatro <strong>cronistas</strong> analisados, temos que:<br />

Staden, Anchieta, Knivet e Nóbrega fazem referência ao mito de Sumé, Staden e Anchieta<br />

descrevem o mito do dilúvio, Nóbrega e Staden descrevem o mito de Anhangá e Knivet<br />

descreve o mito do Curupira. Contudo, mesmo descrevendo quase os mesmos mitos<br />

indígenas, vê-se que o sentido desses mitos é diferente para cada cronista.<br />

Nóbrega e Anchieta não descrevem os mitos indígenas em seu sentido indígena, pois<br />

este não era o objetivo que ambos tinham, além de grande parte desses mitos, irem contra a<br />

doutrina cristã, a qual os padres jesuítas tinham por objetivo converter os índios. Dessa forma<br />

os padres procuravam identificar elementos cristãos nos mitos indígenas com a finalidade de<br />

155


alterar esses mitos, para utilizá-los em proveito da conversão dos indígenas ao cristianismo,<br />

ou seja, Nóbrega e Anchieta apenas descrevem em seus relatos, mitos indígenas que podem<br />

ser utilizados para corroborar a obra catequética entre os indígenas. Já Staden e Knivet<br />

descrevem não apenas mitos indígenas que apresentam elementos cristãos, ou melhor, ambos<br />

não tentam encontrar elementos cristãos nos mitos indígenas, pois não tinham como missão<br />

converter os índios ao cristianismo, dessa forma os mitos descritos por Knivet e Staden têm<br />

sua lógica indígena, ou seja, seu significado (sentido) “original”, sendo que de certa forma,<br />

Knivet e Staden procuram entender o significado que esses mitos têm para os indígenas.<br />

4 – Com relação aos costumes e à cultura material do gentio, o que o autor descreve?<br />

De uma maneira geral, os quatro <strong>cronistas</strong> descrevem a cultura material dos povos<br />

indígenas – sendo que esta vai desde a construção de suas habitações, a enorme gama de<br />

utensílios de madeira como arcos, flechas (armas), canoas; de barro como os potes onde<br />

conservam os alimentos; de ossos, tanto humanos como de animais como as pontas de fechas<br />

e flautas; de penas como os ornatos de penas que fazem em seus corpos e em alguns objetos<br />

como o tacape cerimonial (ibirapema); de algodão como as redes que usavam para dormir etc.<br />

– de uma maneira idêntica, a única diferença consiste no maior ou menor número de objetos<br />

fabricados/utilizados pelos indígenas citados/descritos nesses relatos, sendo que os <strong>leigos</strong> –<br />

Staden e Knivet – citam muito mais que os <strong>religiosos</strong> – Nóbrega e Anchieta –, principalmente<br />

Staden, já que conviveu entre os tupinambás por nove meses, participando dessa forma de<br />

atividades como a guerra, a caça, as festas, ou seja, a vida rotineira de uma aldeia indígena.<br />

Em relação aos costumes indígenas, temos quase que a mesma situação, ou seja, os<br />

quatro <strong>cronistas</strong> analisados relatam em suas obras muitos costumes indígenas, contudo,<br />

mesmo que citem os mesmos costumes, como exemplo, temos que: Staden, Knivet e Anchieta<br />

descrevem a saudação lacrimosa, a preparação do cauim e o costume dos índios present<strong>ea</strong>rem<br />

outro índio ou um europeu com mulheres; Staden e Knivet descrevem que os grandes<br />

guerreiros têm muitas mulheres, que as mulheres poucos dias após darem à luz já se<br />

encontram trabalhando, os ornatos de penas que fazem em seus corpos – Knivet se mostra<br />

curioso como fato dos índios de enfeitarem seu corpo com penas –, e o modo como os índios<br />

tratam e preparam o prisioneiro de guerra para ser morto no ritual antropofágico – Staden<br />

detalha pormenorizadamente os procedimentos desde a captura até a hora da morte em<br />

terreiro, já que tinha sido capturado para esse fim; Staden e Anchieta descrevem a prática do<br />

casamento, sendo que Anchieta descreve as regras de parentesco tupinambá que deviam ser<br />

156


obedecidas para o casamento, além de ambos relatarem alguns pré-requisitos, que tanto os<br />

homens como as mulheres deviam obedecer para se casarem, também relatam alguns dos<br />

procedimentos que os índios utilizam para a agricultura, sendo que Anchieta detalha o modo<br />

como os índios preparam a farinha de mandioca, alertando que se preparada de modo errado<br />

podia ser fatal a quem a consumisse; Nóbrega e Anchieta relatam que os índios tinham por<br />

costume repartir (fornecer) alimentos com os padres quanto estes passavam por suas aldeias,<br />

que eles não moravam mais de quatro a cinco anos no mesmo lugar, sobre os feiticeiros<br />

(pajés) dizem que eram muito estimados, possuindo várias funções, sendo que os padres<br />

sempre os perseguiam e procuravam-nos desacreditar frente aos índios; Staden, Knivet,<br />

Anchieta e Nóbrega descrevem a nudez dos indígenas, contudo os <strong>leigos</strong> a descrevem se<br />

mostrando curiosos quanto a esse costume, já os padres o fazem condenando-o. Desse modo,<br />

percebe-se que mesmo que relatem os mesmos costumes existe uma diferença na maneira e na<br />

intenção (sentido) que esses <strong>cronistas</strong> possuíam ao descrevem tais costumes. Os <strong>cronistas</strong><br />

<strong>leigos</strong> – Staden e Knivet – demonstram certa curiosidade quando descrevem alguns costumes,<br />

detalham muitas vezes a sua descrição e não imputam características negativas (que<br />

denigrem) esses costumes, mesmo sendo esses costumes estranhos a cultura européia de onde<br />

provinham tais <strong>cronistas</strong>, já os <strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong> – Nóbrega e Anchieta –, descrevem alguns<br />

costumes indígenas procurando demonstrar que eles deviam ser extirpados, pois iam contra a<br />

ideologia cristã, a qual os padres tinham por missão converter os indígenas, outros costumes<br />

que os padres descreveram eram utilizados por eles em prol da conversão, logicamente<br />

recebendo algumas adaptações para se enquadrarem dentro da ideologia cristã.<br />

5 – O que o autor relata em relação às doenças que grassavam na Brasil?<br />

Os quatros <strong>cronistas</strong> analisados referem-se em suas obras as doenças que grassavam<br />

no Novo Mundo, sendo que Knivet e Anchieta descrevem as doenças as nom<strong>ea</strong>ndo e<br />

descrevendo seus sintomas, enquanto que Staden e Nóbrega não nomeiam as doenças e não<br />

descrevem seus sintomas – com uma única exceção para Nóbrega, pois ele descreve que o<br />

padre João Gonçavez pegou uma grande febre, da qual veio a falecer, quando foi pregar em<br />

uma aldeia. Além dessa característica, cada um desses <strong>cronistas</strong> descreve as notícias acerca<br />

das doenças com uma intenção/significado: Knivet as descreve simplesmente comentando a<br />

enorme mortandade que essas doenças provocavam entre os indígenas, principalmente as que<br />

vinham de fora, ou seja, as que não existiam na América anteriormente a chegado dos<br />

europeus (choque microbiano); Staden descreve como manipulou as doenças que grassavam<br />

157


entre os indígenas que o mantinham aprisionado com objetivo de devorar-lhe, em proveito<br />

próprio, ou seja, para salvar sua vida, também descreve que se um prisioneiro ficava doente e<br />

os índios não viam sinal de melhora em seu estado, este era morto, mas sem os cerimoniais de<br />

costume, antes que morresse em decorrência da doença; Nóbrega relata que as doenças<br />

tinham uma presença constante (marcante) na vida e no trabalho dos jesuítas, sendo que elas<br />

faziam com que os índios vissem os padres de dois modos diferentes: com medo, pois alguns<br />

índios achavam que os padres lançavam a morte na forma das doenças e com grande gratidão<br />

(apreço), pois outros índios tinham que os padres evitavam muitas mortes com suas orações.<br />

De modo geral, Nóbrega quer dizer que as doenças afetam o trabalho de conversão, tanto de<br />

maneira positiva quanto de maneira negativa, mas de modo geral elas eram benéficas ao<br />

trabalho de conversão, pois elas propiciavam a conversão, ou seja, a salvação de muitas almas<br />

no limiar da morte – era mais fácil os índios aceitarem o cristianismo na hora da morte;<br />

Anchieta segue a linha de Nóbrega, pois relata que as doenças facilitavam a conversão dos<br />

índios ao cristianismo, principalmente na hora/limiar da morte, contudo descreve que nem<br />

todos os índios aceitavam o batismo – que simbolizava a conversão – na hora da morte, ou<br />

seja, houve resistência por parte dos indígenas, além disso, também relata que essas doenças<br />

tinham um efeito devastador entre os indígenas, sendo que os padres não negavam ajuda a<br />

quem a pedisse, não importando a enfermidade que a pessoa possuía, sendo que os padres,<br />

segundo Anchieta, tentavam salvar tanto a pessoa (corpo) quanto (principalmente) a alma.<br />

6 – Map<strong>ea</strong>mento étnico feito pelo autor:<br />

Os próprios <strong>cronistas</strong> deixam claro em suas obras que existe na América portuguesa<br />

(Brasil) do século XVI uma imensa diversidade de tribos (etnias) indígenas, que diferiam uma<br />

das outras em vários aspectos, sendo que os principais aspectos levados em conta pelos<br />

<strong>cronistas</strong> para a diferenciação dos indígenas eram: a questão lingüística, a forma de moradia e<br />

a cultura material que esses índios possuíam. Contudo, a descrição do índio enquanto pessoa<br />

(ser humano) é feita de uma maneira similar nesses relatos, sendo os índios descritos como<br />

pessoas que possuíam um corpo bem proporcionado, com a pele avermelhada – queimada<br />

pelo sol –, cujas habilidades com o arco e a flecha impressionavam, além de andarem, quase<br />

todos os indígenas contatados, inteiramente nus.<br />

Dessa forma, temos nas obras dos quatro <strong>cronistas</strong> analisados, a descrição de muitas<br />

etnias (tribos) indígenas, contudo a forma que cada um desses <strong>cronistas</strong> conheceu/entrou em<br />

contato com as etnias indígenas que descreve difere: Staden conheceu intrinsecamente a etnia<br />

158


tupinambá, pois foi seu prisioneiro por nove meses, e dentro desse espaço de tempo conheceu<br />

as demais etnias indígenas que descreve; Knivet também foi prisioneiro, mas dos tamoios,<br />

sendo que também conheceu etnias indígenas participando de expedições bélicas e nas de<br />

comércio – troca de quinquilharias por escravos; Nóbrega e Anchieta descrevem as etnias<br />

indígenas que entram em contato durante o trabalho missionário.<br />

As descrições sobre as etnias indígenas variam de acordo com cada cronista e com o<br />

conhecimento que este adquiriu desta etnia. Tomando por exemplo a obra de Staden, temos<br />

que ele descreve pormenorizadamente os índios tupinambás, pois conviveu como prisioneiro,<br />

nove meses entre esses índios, sendo o contato que teve com as outras etnias foi esporádico,<br />

por isso a descrição que faz delas é bem sucinta. Junto da descrição e da nom<strong>ea</strong>ção das etnias<br />

indígenas, os <strong>cronistas</strong> geralmente as localizam geograficamente (região onde habitavam) e<br />

indicam quais eram as relações que esta etnia tinha em relação aos europeus – principalmente<br />

os portugueses –, ou seja, se eram inimigas ou aliadas, bem como descrevem, mas não em<br />

todos os casos, as relações que possuíam com outras etnias indígenas. Não me deterei na<br />

descrição dessas relações, já que se encontram expostas no tópico de cada cronista, mas no<br />

número de etnias indígenas que cada cronista cita, sendo que: Knivet cita dezessete, sendo<br />

elas: Guaianases (1), Puris (2), Petiguaras (3), Carajás (4), Tupinambás (5), Lôpos (6),<br />

Aimorés (7), Mariquitás (8), Guaitacases (9), Guaianaguaçus (10), Tomiminós (11),<br />

Morupaques (12), Tupinaquis (13), Mataiás (14), Tamoios (15), Carijós (16), Tapuias (17);<br />

Staden cita dez, sendo elas: Tupinambás (1), Guaitacás (2), Tupiniquins (3); Carajás (4),<br />

Guaianás (5), Maracajás (6), Caetés (7), Potiguarás (8), Carijós (9), Tabajaras (10); Anchieta<br />

também cita dez, sendo elas: Carijós (1), Tapuias (2), Guaimuré (3), Potiguaras (4),<br />

Tupiniquins (5) Aimurés (6), Tupinambás (7), Temiminôs (8), Tamoios (9), Ibirajáras (10);<br />

Nóbrega cita oito, sendo elas: Tupinambá (1), Caetés (2), Carijó (3), Tupiniquins (4),<br />

Tamoios (5), Aimorés (6), Temiminós (7), Papaná (8) – deve-se levar em conta que se<br />

analisei apenas uma fração dos relatos de Anchieta e Nóbrega. De modo geral, excluindo-se a<br />

questão de gramática dos nomes das etnias, são citadas pelos quatro <strong>cronistas</strong> analisados,<br />

vinte e cinco etnias indígenas diferentes.<br />

7 – Com relação ao maravilhoso, a zoologia e a geográfica fantástica. O que o autor descreve?<br />

Podemos afirmar que nenhum dos quatro <strong>cronistas</strong> aproxima essas três categorias que<br />

marcam a literatura do período das grandes navegações, da descoberta e da conquista do Novo<br />

Mundo a descrição da prática antropofágica ou de qualquer outro costume indígena, ou seja,<br />

159


nenhum desses <strong>cronistas</strong> procura algum vestígio já existente/conhecido na literatura européia<br />

para explicar/narrar (procurar entender) à antropofagia indígena, contudo cada um dos<br />

<strong>cronistas</strong> descreve a antropofagia de um modo: Nóbrega procura não descrever a antropofagia<br />

e quando faz isso procura não a entender, porque essa prática indígena vai contra o motivo<br />

que o trouxe ao Brasil, a conversão do gentio ao cristianismo; Anchieta descreve a<br />

antropofagia, não no sentido de tentar entendê-la, mas para mostrar que os padres estão<br />

trabalhando para extirpá-la, pois ela vai contra os princípios cristãos. Desse modo Anchieta<br />

descreve a morte do índio em terreiro e para por aí, ou seja, não descreve que os índios<br />

comem a carne do morto; Staden descreve a antropofagia no sentido de tentar entender a<br />

alteridade que se apresenta frente a seus olhos, a qual é diferente em vários aspectos da<br />

européia, cuja qual se constitui no seu referencial; Knivet descreve a antropofagia de um<br />

modo similar ao de Staden, ou seja, procura através de sua descrição, observar e distinguir<br />

uma alteridade que se personifica no elemento indígena, o qual difere de seu referencial<br />

europeu.<br />

Com relação à descrição dessas categorias nas obras desses <strong>cronistas</strong>, temos que:<br />

Anchieta, Nóbrega e Staden não fazem referência a nenhum elemento da geografia fantástica,<br />

ao contrário de Knivet que cita o lendário reino católico de Preste João. Sobre a zoologia<br />

fantástica, Anchieta e Nóbrega não fazem referência alguma, já Staden se refere, a animais<br />

que não pertencem à fauna americana, mas não no sentido de reencontrar algum animal<br />

mitológico, ao contrário de Knivet, que faz inúmeras referências, em sua obra, a animais<br />

fantásticos (mitológicos) e monstros. Quanto ao maravilhoso, Anchieta, Nóbrega e Staden não<br />

descrevem em seus relatos, façanhas extraordinárias, nem riquezas fabulosas, o que se<br />

assemelha ao maravilhoso nesses relatos são as descrições que fazem sobre as manifestações<br />

do poder de Deus, os padres ainda relatam milagres por ele r<strong>ea</strong>lizados, a fim de mostrar que<br />

Deus estava ao lado dos padres e Anchieta ainda faz descrições de relíquias que vieram ao<br />

Brasil. Em contrapartida, o maravilhoso marca forte presença na obra de Knivet, as descrições<br />

sobre riquezas extraordinárias são freqüentemente aludidas, principalmente durante suas<br />

peregrinações pelo interior (sertão).<br />

8 – O autor faz alguma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena?<br />

Nenhum dos quatro <strong>cronistas</strong> descreve ou relata a existência de alguma ligação entre a<br />

prática antropofágica e a cosmologia indígena, nem mesmo relatam uma concepção indígena<br />

sobre tal ato (mito de origem), como a questão dessa ser a morte id<strong>ea</strong>l, almejada por todo<br />

160


guerreiro, a qual o levaria para um além id<strong>ea</strong>lizado. Porém, cada um vê/interpreta o sentido de<br />

tal ato de um modo (maneira) diferente: Knivet, embora não opine sobre a matança em<br />

terreiro, relata que os tamoios lhe disseram que comeram os portugueses porque estes eram<br />

seus inimigos, e que os petiguaras consumem a carne do prisioneiro morto porque concebem<br />

que ela os tornará fortes e valentes; Staden descreve que os índios não comem a carne humana<br />

por caráter alimentar, mas por grande hostilidade (vingança) de seus inimigos, ou seja, a<br />

morte e o consumo da carne do inimigo (prisioneiro) são meros detalhes frente ao significado<br />

desse costume altamente ritualizado; Nóbrega não interpreta o sentido de tal morte, apenas<br />

descreve os índios na hora da morte como europeus, chamando por Deus em vez de estarem<br />

se vangloriando de seus e dos feitos de sua tribo; Anchieta estranha o fato dos índios<br />

morrerem felizes e sem medo, tendo acima de tudo, grande estima por este tipo de morte, a<br />

qual os índios consideram muito gloriosa e uma honra, concebida apenas aos mais valentes<br />

guerreiros.<br />

9 – O autor faz algum confronto entre a sua visão de morte e a visão de morte dos indígenas?<br />

Nenhum dos quatro <strong>cronistas</strong> confronta a sua visão de morte com a visão de morte<br />

indígena, pois nenhum deles descreve a visão de morte indígena em sua obra, também não<br />

fazem nenhuma referência ao além indígena. Sobre a visão de morte dos <strong>cronistas</strong>, temos que:<br />

Knivet não descreve sua visão de morte; Staden descreve a sua visão de morte apenas uma<br />

vez em sua obra, quanto dialoga com o índio maracajá, o qual estava prestes a morrer em<br />

terreiro, sendo que a visão de morte que Staden apresenta/descreve é embasada na ideologia<br />

cristã, ou seja, é uma visão de morte cristã; Nóbrega apresenta uma visão de morte cristã<br />

bipartida, na qual as ações de cada pessoa na terra decidiriam seu destino: Céu ou Inferno,<br />

além dessa visão, Nóbrega nos apresenta uma concepção gloriosa da morte cristã,<br />

especialmente para os padres: o martírio; Anchieta, embora não exemplifique a sua visão de<br />

morte – nos escritos analisados –, segue a mesma linha de Nóbrega, pois divide o além em<br />

Céu e Inferno, além de id<strong>ea</strong>lizar o martírio como uma morte gloriosa para os cristãos,<br />

especialmente os padres.<br />

161


Considerações Finais<br />

A comparação, mesmo tendo sido feita de forma fragmentada, ou seja, em pontos, os<br />

quais circundam o ritual antropofágico indígena, demonstrou que existem semelhanças e<br />

diferenças entre os relatos dos quatro <strong>cronistas</strong> analisados: Hans Staden, Anthony Knivet, Pe.<br />

José de Anchieta e Pe. Manuel da Nóbrega. Sendo que as diferenças que existem entre esses<br />

relatos do século XVI são muito mais significativas (relevantes) que as semelhanças<br />

existentes entre eles.<br />

A diferença que existe entre esses <strong>cronistas</strong> na descrição do ritual antropofágico<br />

refere-se que Staden e Knivet o descrevem, embora cada um enfatize um aspecto diferente,<br />

pormenorizadamente, desde a captura do prisioneiro, passando pela morte em terreiro, até o<br />

consumo de sua carne, já os <strong>religiosos</strong> descrevem apenas a morte em terreiro, dando por<br />

encerrado tal ritual com a quebra da cabeça do prisioneiro. Outra diferença consiste que os<br />

<strong>religiosos</strong> procuram em suas descrições afastar essa morte do id<strong>ea</strong>l indígena, ou seja, eles<br />

descrevem essas mortes mostrando o cativo com medo ou rogando a Deus, em vez de, como<br />

fazem os <strong>leigos</strong>, mostrar o cativo altivo e feliz com tal destino. Desses <strong>cronistas</strong>, apenas<br />

Knivet relata a existência de um outro tipo de antropofagia, a funerária. Nóbrega e Staden<br />

descrevem que europeus participavam do ritual antropofágico, sem ser no papel de vítima,<br />

sendo que Staden apenas mostra que eles participavam, mas não comiam a carne do<br />

prisioneiro morto, enquanto Nóbrega descreve que europeus não apenas participavam como<br />

às vezes assumiam a função do matador e ainda que alguns deles comessem a carne do<br />

prisioneiro, mas era para dar bom exemplo a seus índios (escravos).<br />

A diferença entre as descrições de Staden e Knivet (<strong>leigos</strong>) com as descrições de<br />

Anchieta e Nóbrega (<strong>religiosos</strong>), também é notada na descrição sobre as guerras indígenas<br />

(questão 2), nos mitos indígenas (questão 3) e na cultura material e nos costumes – muito<br />

mais nos costumes (questão 4). As descrições dos quatro <strong>cronistas</strong> são iguais, ou seja, não<br />

apresentam nenhuma diferença significativa, no tocante ao map<strong>ea</strong>mento étnico (questão 6) e<br />

por não apresentarem nenhuma ligação entre a antropofagia e a cosmologia indígena (questão<br />

8). Em três pontos a descrição de Knivet difere das descrições de Staden, Nóbrega e Anchieta,<br />

sendo elas a descrição sobre o maravilhoso, a zoologia e a geografia fantástica (questão 7), a<br />

descrição das doenças (questão 5) e o confronto entre as visões de morte do cronista com a<br />

dos indígenas (questão 9). Contudo, deve-se ressaltar, que mesmo tendo semelhanças, as<br />

descrições de Nóbrega e Anchieta diferem principalmente quanto à intenção (objetivo) da<br />

descrição de Staden.<br />

162


De uma maneira geral, podemos dizer que essas diferenças apontam uma tendência no<br />

sentido de distinguir os <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> – Staden e Knivet – dos <strong>cronistas</strong> <strong>religiosos</strong> –<br />

Nóbrega e Anchieta. Embora também haja diferença entre as descrições de Staden e Knivet<br />

(<strong>leigos</strong>) e de Nóbrega e Anchieta (<strong>religiosos</strong>). Um dos principais motivos dessa diferença(s)<br />

entre as descrições dos <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> e <strong>religiosos</strong>, pode ser vislumbrado na descrição do<br />

ritual antropofágico, pois os <strong>cronistas</strong> <strong>leigos</strong> – Staden e Knivet – ao descrever a antropofagia<br />

procuram entender a sua lógica, ou seja, eles interpretam tal prática indígena, pois não tinham<br />

a preocupação que a antropofagia representasse uma crença (religião) para os indígenas, ao<br />

contrário dos <strong>religiosos</strong> – Nóbrega e Anchieta – que procuram, ao descrever a antropofagia,<br />

não a interpretar, pois se a antropofagia se constituísse numa crença (religião) para os<br />

indígenas, todo o projeto de catequização estaria comprometido, dessa forma, eles procuram<br />

mostrar que a antropofagia não passava de um costume, um mau costume (hábito) que os<br />

índios tinham e que precisava ser extirpado, pois ia contra a religião cristã. Dessa forma a<br />

antropofagia não se constituía numa barreira a conversão dos índios, pois estes não tinham,<br />

para os padres, nenhuma crença (religião), apenas maus costumes, que podiam, com a<br />

intervenção dos padres, serem facilmente eliminados.<br />

163


A) Fontes Primárias:<br />

Referências Bibliográficas<br />

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